Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 14 de Julho de 2008, aworldtowinns.co.uk
Karzai: Os negócios escuros são “absolutamente necessários” para a estabilidade do Afeganistão
Der Spiegel: “Os negócios escuros continuam a ser necessários para a estabilidade do Afeganistão”?
Karzai: “Absolutamente necessários, porque não temos o poder para resolver esses problemas de outra forma. O que é que se quer? A guerra? Deixe-me dar-lhe um exemplo. Quisemos prender um senhor da guerra verdadeiramente terrível, mas não o conseguimos fazer porque ele está a ser protegido por um determinado país. Descobrimos que ele estava a receber 30 mil dólares por mês para ficar do lado certo. Eles chegaram mesmo a usar os soldados dele como guardas.”
É isto o que Hamid Karzai, presidente do governo fantoche do Afeganistão, diz sobre o país actual numa entrevista dada a Susanne Koelbl e Ullrich Fichtner para a revista alemã Der Spiegel (16 de Junho). Ele também fala sobre alguns dos males que afectam o país: a guerra, a corrupção, as drogas e os brutais chefes locais que são aliados dos EUA. Mas ele não fala na mais importante característica do Afeganistão actual – a brutalidade e a morte, infligidas ao seu povo pelos ocupantes imperialistas e pelos fundamentalistas islâmicos, e a pobreza e a miséria do povo que cada vez mais perde a paciência com todos os reaccionários.
Nessa entrevista, Karzai exprime uma atitude ligeiramente crítica em relação a algumas das potências ocupantes, embora não as nomeie. Noutras ocasiões recentes, ele tem criticado os EUA pelos seus “duros” ataques aéreos a civis e a Grã-Bretanha por ter as suas próprias negociações directas com os talibãs e outros senhores da guerra na província meridional de Helmand, bem como a Alemanha e a França por tentarem manter as suas tropas longe das zonas de combate. Mas no que diz respeito a toda a extensão dos crimes dos ocupantes contra o povo que ele alega representar, ele é de longe muito menos crítico que mesmo o altamente conservador responsável pelo Comité Internacional da Cruz Vermelha, que denunciou que pelo menos 250 civis tinham sido mortos ou feridos durante as primeiras semanas de Julho. Mas o chamado presidente do Afeganistão não menciona essa questão na entrevista dada à Spiegel. Pelo contrário, ele tenta proteger os interesses do sector da classe dominante afegã que os ocupantes seleccionaram para representar, em seu nome, um papel na governação do país.
Contudo, embora Karzai minta e distorça a realidade, e por vezes se contradiga e tente tornar as suas respostas tão curtas quanto possível para evitar provocar uma trapalhada e enfurecer os ocupantes, mesmo assim ele dá ao leitor cuidadoso um vislumbre da grande crise que os reaccionários enfrentam e do tipo de planos que eles estão a urdir. O que Karzai diz poderá não ser novo para as pessoas familiarizadas com esse país que tem sido ocupado de tempos a tempos e que durante os últimos 30 anos sofreu às mãos dos fundamentalistas religiosos. Mas algumas das coisas que saem da sua boca revelam a extensão da crise para os imperialistas e a sua hipocrisia.
A corrupção
Não é segredo nenhum para qualquer pessoa vagamente familiar com o Afeganistão de hoje que sobre alguns dos mais próximos adjuntos e altos funcionários do regime de Karzai, entre os quais membros do governo, governadores e chefes da polícia, recaem suspeitas de roubo de terras, contrabando de drogas e de manterem as suas próprias milícias informais.
Quando a Spiegel pergunta por isso a Karzai, ele exprime a sua discordância com essas afirmações, mas não responde à pergunta sobre corrupção no seu próprio círculo interno. Porém, acrescenta: “Eu sei dos problemas com a polícia. A comunidade internacional finalmente concordou, após dois anos de negociações muito intensas e agitadas, que a polícia é um problema e, em meados de 2007, começou a trabalhar connosco. Por exemplo, os postos de controlo nas estradas foram criados no tempo da invasão soviética, uma altura em que o país ficou sem lei e cada chefe local montou o seu próprio posto de controlo para recolher dinheiro”. Por outras palavras, esses problemas são apenas um legado dos russos que ele acabou por herdar e pelos quais não pode ser responsabilizado.
Os entrevistadores da Spiegel recordaram-lhe que esses postos de controlo deixaram de existir no tempo dos talibãs. Então, Karzai aproveitou a oportunidade não só para mudar de assunto como também para elogiar os talibãs. “Esse era o melhor aspecto dos talibãs. Eles fizeram muitas coisas más, mas também fizeram algumas coisas boas. Eu gostava de ter os talibãs como meus soldados.” Esta é uma mensagem – uma de muitas – de Karzai para os talibãs, chamando-os a juntarem-se ao seu governo. Ele tem razão sobre as semelhanças fundamentais entre os talibãs e ele. Ambos chegaram ao poder com a ajuda dos imperialistas e ambos servem as mesmas forças de classe do Afeganistão, embora também haja diferenças, a mais importante das quais a de que os talibãs estão agora ligados a uma jihad mais alargada, política e ideologicamente, contra os EUA, enquanto Karzai é o agente local dos Estados Unidos. Como os ocupantes estão a ter dificuldades no Afeganistão, eles estão à procura de uma solução, incluindo uma possível integração de pelo menos parte dos talibãs na estrutura do poder dominante. Isto tem sido um tema de conflito entre as diferentes forças reaccionárias e ocupantes envolvidas no Afeganistão. À medida que aumenta o poder dos talibãs, também aumenta a tensão entre elas.
Mas a corrupção e o caos em várias esferas da vida afegã são tão generalizados e, agora, notórios, que não é assim tão fácil limitar-se a eliminar qualquer referência a isso. O entrevistador da Spiegel e o próprio Karzai acabam por voltar repetidamente ao assunto.
O Afeganistão foi invadido e ocupado a pretexto de falsas promessas – libertar o povo e em particular as mulheres do domínio do fundamentalismo religioso, trazer a paz, reduzir a pobreza e permitir o regresso do exílio de milhões de afegãos que procuraram refúgio nos países vizinhos ou no resto do mundo. O fracasso da ocupação em fazer algo de positivo em relação a qualquer dessas promessas é não só óbvio para o próprio povo afegão, que está a passar por um dos períodos mais difíceis da sua vida, e para os observadores afegãos e internacionais que seguem de perto os acontecimentos, como é mesmo abertamente declarado por muitos antigos e actuais altos funcionários da Nato e da ocupação.
Isto está directamente ligado a uma espectacular intensificação das acções dos talibãs, agora sem dúvida no seu ponto mais alto desde a sua derrota na invasão. Em 2007, os talibãs desencadearam quatro vezes mais operações que em 2005, segundo um artigo do Grupo Internacional de Crise (“O Caos Estratégico e o Ressurgimento dos Talibãs no Afeganistão”, de Mark L. Schneider). O número de operações este ano é ainda mais elevado e inclui muitos avanços com sucesso. Por exemplo, 800 prisioneiros, cerca de metade dos quais combatentes talibãs, fugiram em Junho de uma prisão na cidade meridional de Kandahar. Alguns dias depois, foi noticiado que os talibãs tinham assumido o controlo de 18 aldeias a oeste do rio Argandab, perto da cidade de Kandahar. Tentando pôr a sua melhor cara face a esse desastre, o governador da província, Asadullah Khaled, apenas conseguiu dizer: “Pelo menos os talibãs não estão no Argandab”. A 14 de Julho, os talibãs marcaram a sua maior vitória militar contra os EUA desde a invasão, ao atacarem e invadirem um posto avançado norte-americano na província de Kunar, no nordeste do país, matando nove soldados e ferindo 19.
Muitos observadores internacionais admitem que uma importante razão para o ressurgimento dos talibãs não é tanto que as pessoas gostem deles mas que elas estão cada vez mais frustradas com os ocupantes e com o regime fantoche. Estão frustradas porque a corrupção é tão grande e invadiu todos os cantos do governo. Na entrevista, o próprio Karzai não pode deixar de reconhecer porque é que ele e o seu governo são alvo de tanto ódio popular, embora tente apresentar isso como se ele não tivesse outra alternativa.
Depois da sua extraordinária admissão de que considera os “negócios escuros” como sendo “absolutamente necessários” e de que o seu governo não se atreveu a prender esse “senhor da guerra verdadeiramente terrível”, Karzai prossegue dizendo: “Não quero dizer o nome do país, porque isso feriria um amigo e aliado próximo. [A Spiegel comenta que ele se poderia estar a referir ao líder jihadista Nasir Mohammed, da província nordeste do Badazkhshan, que faz fronteira com o Tajiquistão, onde estão baseados os soldados alemães.] Mas também há muitos outros países que contratam as milícias afegãs e os seus líderes.”
Karzai quer dizer que a ausência de forças policiais e militares para controlarem o país torna “absolutamente necessário” negociar com os líderes jihadistas. Mas ele esquece que há cerca de 63 mil soldados estrangeiros e outras dezenas de milhares mais sob as ordens do chamado exército nacional treinado pelos EUA e mesmo assim eles não conseguem controlar o país. Diz-se que nesta altura os talibãs controlam quase um terço do país. É verdade que para o conseguirem eles têm usado a mesma brutalidade extrema contra as pessoas que empregavam quando governavam todo o país, mas as forças estrangeiras não são de forma nenhuma menos brutais e estão equipadas com o mais sofisticado armamento e equipamento.
Karzai disse, pouco depois: “Alguns membros da comunidade internacional estão fortemente empenhados em corromper elementos e em usá-los como suas fontes. Deixe-me contar-lhe outro caso: um dos nossos aliados na coligação deu terras e dinheiro a um chefe de uma outra parte do país em troca da sua lealdade. Devo levá-lo a julgamento? Devo levar os Sr. Jalali a julgamento?” Ali Ahmad Jalali é um antigo ministro do interior de Karzai que alegou “ter uma lista de senhores da droga e contrabandistas de topo e de algumas pessoas conhecidas do poder.” A lista incluía conselheiros de Karzai e membros do gabinete. Jalali foi acusado de corrupção por apropriação de terras para construção em Cabul.
Drogas
Karzai alega estar frustrado com a corrupção e é algo franco na sua exposição de algumas das suas fontes entre as potências ocupantes e as facções rivais dentro do seu regime, mas nega a corrupção dos seus aliados e familiares mais próximos. Defende os seus irmãos, que de repente estão entre as pessoas mais poderosas do país nos negócios e na política. O mais controverso deles é Ahamd Vali Karzai, que foi acusado de envolvimento no tráfico de droga. Karzai diz que isso é “um monte de lixo”. A Spiegel responde perguntando a Karzai o seguinte: “O sul é o centro do contrabando de droga. Será possível que Ahmad Wali Karzai, um dos mais influentes políticos de Kandahar e que dirige o conselho provincial, não tenha a mais pequena ideia do que acontece ou que não tenha nada a ver com isso?” Karzai responde resolutamente: “É muito possível”, mas acrescenta: “A parte de leão do dinheiro vai para a máfia internacional e não para os afegãos”. Aqui, não é claro como é que Karzai sabe isso e exactamente de que é que ele se está a queixar.
Em menos de sete anos, o Afeganistão tornou-se na fonte de quase todo o ópio do mundo, e é a partir dele que é feita a heroína. As mulheres do Afeganistão não foram libertadas, os fundamentalistas islâmicos não foram derrotados, antes se tornaram mais fortes, o problema da falta de habitação para milhões de pessoas não foi resolvido mas, com a ocupação e o seu regime Karzai, o Afeganistão teve sucesso numa coisa: “Produzir 93% do ópio do mundo em 193 mil hectares, com uma produção potencial de 8200 toneladas métricas”. (Relatório do Gabinete da ONU para as Drogas e o Crime 2007, citado pelo ICG.)
Segundo a mesma fonte, “na sua investigação, a ONU descobriu que 100% dos produtores de papoilas da região sul relataram estar a ser forçados a pagar impostos pelo ópio a vários grupos”. Entre esses grupos armados estão os talibãs, os chefes locais aliados de Karzai, os EUA e outras potências ocupantes – todos eles cobram esses impostos. Nalguns lugares isso toma a forma de suborno aos inspectores; noutras, impostos e subornos. Segundo o relatório da ONU, os laboratórios de droga do Afeganistão produzem narcóticos refinados (ópio e heroína) no valor de pelo menos 4 mil milhões de dólares, equivalente a metade do PIB do país. Por isso, hoje em dia, as duas principais fontes de rendimentos do Afeganistão são, sem dúvida, as drogas e a ajuda externa. É disso que a sua economia depende e é assim que o Afeganistão se integra na economia capitalista mundial.
A nova classe dominante capitalista burocrata que é agora suposto dirigir o país em nome do Ocidente sob a mira das armas estrangeiras, e talvez em seu próprio nome nalgum momento futuro, não tem nenhuma outra grande fonte de rendimentos. Os camponeses do país estão acorrentados aos sindicatos internacionais do crime e a esses reaccionários afegãos que enriquecem com o seu labor. Qualquer que seja a informação específica sobre indivíduos que ele possa ou não ter, em geral Karzai está totalmente ciente dessa situação. É claro que os EUA e as outras potências ocupantes também sabem de tudo. Esse tipo de economia e a corrupção andam inevitavelmente juntos e os ocupantes imperialistas fecham deliberadamente os olhos a isso, uma vez que essa situação serve os seus interesses e os seus planos.
O que está por trás da corrupção, das drogas e da guerra que são os principais factores da manutenção da instabilidade no Afeganistão? A ocupação estrangeira. Os “negócios escuros” são uma parte essencial e inevitável da subjugação do país aos exércitos imperialistas, a um regime imposto pelos imperialistas e ao mercado imperialista global. Apesar da aparência, os imperialistas não têm nenhum interesse em mudar essa situação geral. A guerra, a instabilidade e os “negócios escuros” que são o seu produto inevitável têm sido as principais características do país nos dois últimos séculos de ocupação estrangeira e não acabarão enquanto os imperialistas não forem expulsos do poder pelo povo e não por outras forças imperialistas ou reaccionárias.