Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 20 de Outubro de 2003, aworldtowinns.co.uk
Iraque: Mais quente que o inferno
Toda a gente – talvez toda a gente, menos George Bush – sabe que os EUA estão em grandes dificuldades no Iraque. Os ocupantes estão a ser mais fortemente atacados, mais frequentemente, em mais cidades e por um círculo mais alargado de forças.
Não há nenhuma maneira de negar que a guerra não acabou quando Bush a declarou terminada, a 1 de Maio. Talvez tenha apenas começado. Neste momento, já morreram tantos soldados da coligação dirigida pelos EUA desde 1 de Maio como antes dessa data. Os ataques à bomba e as armadilhas à beira da estrada contra as tropas norte-americanas são tão comuns que os meios de comunicação já raramente se incomodam a relatá-los. A 2 de Outubro, o chefe da coligação disse aos jornalistas que havia entre 15 a 20 ataques por dia, aproximadamente metade deles envolvendo tiroteios frente-a-frente. O ritmo aumentou drasticamente desde essa declaração.
A razão é simples: o povo iraquiano quer o seu país de volta. Quanto mais eles o exigem, mais os ocupantes os agridem e disparam contra eles, e uma maior opressão gera resistência.
As autoridades norte-americanas gostam de reivindicar que a resistência vem de forças do antigo regime de Saddam. Mesmo que elas constituam uma parte importante, porque é que deve ser Bush a dizer quem é que pode fazer o quê no Iraque? Claramente, muitas e diferentes forças políticas iraquianas estão envolvidas, e as suas acções militares são guiadas por diferentes linhas políticas e objectivos. Mas nenhuma resistência poderia sobreviver muito tempo sem o apoio popular. Ninguém, excepto George Bush, pode negar que a resistência representa a vontade de milhões e milhões de iraquianos. O ódio contra a ocupação é mais forte, não entre os membros da elite do antigo regime que, com excepção de um punhado deles, estão a receber ofertas de trabalho por parte dos norte-americanos, mas entre os pobres e os desfavorecidos.
Eis um incidente típico: Baiji, uma cidade refinaria de petróleo a norte de Bagdad, tem visto uma espiral crescente de combates. Nos princípios de Outubro, a polícia criada pelos EUA disparou contra uma manifestação e feriu quatro pessoas. A polícia disse que era um protesto a favor de Saddam. Mesmo que isso fosse um slogan, isto mostra que tipo de “democracia” o substituiu. As gentes dos bairros ficaram tão enfurecidas que a polícia teve que fugir para uma base dos EUA a norte da cidade. “As tropas dos EUA regressaram, com atiradores nos telhados e carros blindados nas ruas, mas só conseguem controlar a cidade usando a força militar”, escreveu o jornal Independent. “Esta semana foi morto um soldado dos EUA e outros ficaram feridos quando o seu veículo blindado tocou numa mina terrestre.”
Um jovem de 14 anos foi morto quando tentava reparar uma antena de televisão no seu telhado. Os soldados dos EUA também mataram um clérigo que tinha saído de manhã cedo para dizer as suas orações antes de o recolher obrigatório ter terminado.
Um jornalista sueco disse a um jornalista do Independent que tinha testemunhado soldados dos EUA a espancarem um velho religioso quase até à morte. “De repente, vi os soldados a empurrar uma porta e a arrastar um velho que gritava, ‘Não disparem! Por favor, senhor.’ Os soldados gritaram: ‘Shut the fuck up! Shut the fuck up!’”
“Amarraram as suas mãos dele atrás das suas costas e então, quando ele estava deitado no chão, um deles disse: ‘Mantenham a cabeça dele quieta.’ Bateu repetidamente na cabeça com a coronha da sua espingarda. E então os outros pontapearam-no. Havia sangue por todo o lado.” O artigo noticioso inglês continuava: “oficiais dos EUA admitiram mais tarde que provavelmente estavam enganados sobre o velho, mas disseram que ‘coisas destas acontecem no calor da acção’.”
Em Bagdad, ex-soldados iraquianos manifestaram-se a 4 de Outubro para exigirem os 40 dólares que os ocupantes lhes tinham prometido quando dissolveram o exército iraquiano e os deixaram desempregados.
“Começou quando um homem foi procurar água, depois que termos estado em fila durante cinco horas”, disse um homem entrevistado mais tarde pelo jornal britânico Independent na sua cama do hospital. “Os soldados dos EUA não o deixaram voltar para a sua fila e bateram-lhe e a nós com longos bastões e com picadores eléctricos de gado. Então, nós começamos a atirar-lhes pedras e eles responderam com disparos.” À medida que os manifestantes, gritando “América, Não! Não!”, se deslocavam do antigo aeroporto – agora uma base dos EUA – para o palácio do centro da cidade onde tem assento o Conselho de Governo Iraquiano, escolhido a dedo pelos EUA, helicópteros norte-americanos dispararam sobre eles. As autoridades não emitiram nenhum relatório sobre as vítimas.
A cidade de Baçorá, no extremo sul, está sob ocupação dos britânicos, que gostam de pensar que são mais sofisticados que os simplesmente brutais norte-americanos. Durante manifestações semelhantes no mesmo dia, as tropas da Grã-Bretanha dispararam contra uma multidão de pessoas que tinham ficado inquietas depois de esperar durante horas ao sol, e mataram um homem. Também dispararam balas de borracha, cujo uso aperfeiçoaram disparando contra manifestantes e crianças na Irlanda do Norte.
Bush disse que os xiitas dariam as boas-vindas como libertadores aos norte-americanos. Supostamente, os vastos bairros de Bagdad antes conhecidos como Saddam City, onde habitam quatro milhões de pessoas, seriam particularmente receptivos às tropas estrangeiras que derrubaram Saddam. Agora, Saddam City, rebaptizada Sadr City, é aquilo que os ocupantes chamam de “zona de linha vermelha”, uma armadilha de morte para as tropas norte-americanas.
A 9 de Outubro, uma bomba matou dez pessoas numa esquadra da polícia em Sadr City. Como os EUA tentaram contratar iraquianos para lutar e morrer por eles – principalmente homens que foram da ex-polícia de Saddam –, os ataques contra eles têm crescido continuamente. As tropas norte-americanas que entraram no bairro nessa noite em três veículos Humvee ficaram debaixo de um ataque que as autoridades dos EUA recusaram explicar. Aparentemente, envolveu uma grande multidão de pessoas que se diz terem convencido os soldados a deixar os seus veículos e depois abriram fogo sobre eles com armas ligeiras e foguetes lança-granadas, matando dois deles. No dia seguinte houve um cortejo funerário em Sadr City para dois dos iraquianos mortos naquele tiroteio. Relatos dão conta que dez mil pessoas desfilaram, algumas delas armadas, e uma vez mais colidiram com as tropas dos EUA.
Em Karbala, uma cidade santa xiita a sul de Bagdad, começou um tiroteio quando uma patrulha da polícia militar dos EUA começou a disparar sobre homens que se encontravam à volta do escritório de um clérigo muçulmano, depois do recolher obrigatório. Os homens ripostaram, alguns com armas automáticas e outros com espadas. Mataram três soldados dos EUA e dois dos seus polícias fantoches. Entre eles estava um tenente-coronel, o norte-americano de mais alta posição morto até agora nesta guerra. Foram mortos cinco dos apoiantes do clérigo. No dia seguinte, a 17 de Outubro, as tropas dos EUA voltaram ao local e novamente houve combates. As tropas polacas, que supostamente estão encarregadas da área, observavam de longe, aparentemente nenhum deles muito ansiosos em morrerem pelo Tio Sam e por George Bush. A cidade continua bloqueada pelos ocupantes.
Kirkuk, no Curdistão, tal como Baçorá, uma zona antes descrita como “sossegada” pelos ocupantes, está agora cheia de armas automáticas e de tiros de morteiro. Os combatentes da resistência montaram três operações-relâmpago em duas horas a 7 de Outubro, disparando morteiros contra uma base dos EUA e lançando uma granada de mão contra a câmara municipal controlada pelos EUA, e fizeram explodir um Humvee fora da cidade. Os residentes relatam que um centro de detenção dos EUA para prisioneiros iraquianos tem estado regularmente debaixo de fogo de morteiro. Um plano para inaugurar uma nova sede da polícia teve que ser cancelado. A casa do chefe da polícia, um restaurante popular com GI's e os escritórios de um clérigo xiita aliado dos EUA também foram atacados. A 19 de Outubro, os iraquianos emboscaram uma patrulha dos EUA em Kirkuk e outra numa cidade vizinha.
Ao contrário de Karbala e Kirkuk, Falluja, a norte de Bagdad, tem sido cenário de constantes combates desde que os soldados dos EUA assassinaram dezenas de manifestantes em Abril. Os ocupantes tentaram amedrontar as pessoas através de rusgas de punição e demolições de casas. A 19 de Outubro, uma escolta de dois Humvees foi atacada e um camião-tractor com reboque que levava mísseis foi destruído por explosivos colocados à beira da estrada, num sinal em que se lia: “Bem-vindo a Falluja”. Os soldados do camião saltaram para dentro dos Humvees e fugiram a toda a velocidade. Uma multidão gritava de alegria, regando de gasolina o camião de mísseis e deixando-o em chamas. Um homem explicou a um jornalista: “Os norte-americanos destruíram Falluja”. Quando o veículo explodiu, os jovens celebraram dançando enquanto os condutores faziam soar as suas buzinas.
Várias horas depois, quando os soldados dos EUA voltaram para recuperar o que podiam, não encontraram nada mais que destroços e os combatentes abriram fogo sobre eles com foguetes lança-granadas e armas automáticas. “Os projécteis voavam por todo o lado como fogo de artifício”, contou um lojista ao Independent. As autoridades norte-americanas detiveram dois jornalistas sem explicação – embora a humilhação e uma sede de vingança o pudessem explicar.
O que vão fazer os EUA? Eles dizem que a resistência é um “guerra de baixa intensidade” que conseguem aguentar, e é verdade que os iraquianos estão longe de poder expulsar os seus ocupantes. Mesmo com quatro mortos por dia – como a 16 de Outubro – os EUA não vão esgotar os rapazes e raparigas para alimentar esta guerra. Mas, mesmo nas actuais condições, estão a ter dificuldade em sustentar a ocupação.
Já foi dito aos GI que servirão um ano em vez dos prometidos seis meses, porque os EUA já enviaram as suas reservas para o terreno e têm poucas tropas de combate disponíveis para os aliviar. O jornal Stars and Stripes, financiado pelo Pentágono – que circula quase exclusivamente entre os soldados – fez uma sondagem em que aproximadamente metade das tropas avaliou a moral na sua unidade como “baixa” ou “muito baixa”. Quase um terço disse que a guerra “não valia a pena”. As forças armadas dos EUA reconhecem que dez por cento das suas vítimas totais são suicídios. A percentagem de soldados dos EUA que estão fartos do papel que estão a ser forçados a ter pode ser na realidade mais alto que o admitido, mas o que é muito significativo sobre a sondagem é que parece representar um grito de alarme dentro da própria hierarquia militar.
O recente voto da ONU para pôr o seu selo de aprovação sobre a ocupação foi criminoso, mas terá sido realmente uma vitória para os EUA? Os EUA foram à ONU à procura de uma solução e tudo o que obtiveram foi uma resolução vazia. Em vez de encorajar mais países a enviarem tropas, de longe a maior esperança dos EUA, a Turquia está a hesitar. O único país disposto a dar algum dinheiro real é o Japão. Em termos do apoio concreto à ocupação que os EUA procuravam desesperadamente, essa jogada foi um fracasso.
Numa grande medida, a resolução da ONU foi uma manobra das potências europeias para responder ao poderio dos EUA, deixando o povo iraquiano debilitar os EUA de uma maneira que elas não podem. O ex-conselheiro de política externa de Clinton, James Steinberg, explicou: “Esses tipos [os governos europeus] pensam todos que vai falhar, mas não querem ser os culpados. Não é que eles estejam a bordo, em qualquer sentido. É que, deste modo, eles podem evitar tornar-se os meninos do chicote do fracasso dos EUA.”
Actualmente, o Pentágono está a discutir como “vietnamizar” a guerra. Do mesmo modo que os EUA tentaram pôr “asiáticos a lutar contra asiáticos” para reduzir as vítimas norte-americanas no Vietname, também agora contam criar um exército mercenário para lutar por eles no Iraque. O objectivo político é contrariar a unidade iraquiana contra os norte-americanos e transformar isso numa guerra civil.
De acordo com o jornal Washington Post de 19 de Outubro, a transferência de obrigações de rotina da ocupação para 18 batalhões iraquianos dirigidos por norte-americanos é uma possibilidade para que os planificadores militares dos EUA estão a olhar. Além deste “melhor cenário”, há também um “cenário intermédio” caso “as tropas iraquianas se mostrem pouco fiáveis” e contrariem o objectivo de reduzir as forças dos EUA. O “pior cenário” (o qual o artigo liga ao aumento da resistência armada dos xiitas) requereria um aumento das tropas norte-americanas. Mas nenhum político norte-americano importante está a pedir a retirada das forças armadas dos EUA. Pelo contrário, o Pentágono diz que está a tentar reduzir as forças de ocupação para que eles aí possam ficar indefinidamente.
Este contexto ajuda a explicar por que o Secretário da Defesa dos EUA, Rumsfeld, defendeu publicamente o tenente-general William Boykin, do Exército dos EUA, face às críticas de muita gente dentro do sistema norte-americano. Boykin, o seu subsecretário da defesa para os serviços secretos, tinha dito perante audiências de cristãos fanáticos que a “guerra contra o terror” dos EUA – cuja “frente central”, disse o vice-presidente Cheney, é o Iraque – é realmente uma “guerra contra Satanás”.
Durante uma interrupção numa recente série de palestras, Boykin, comandante da incursão dos EUA na Somália em 1993, usando o seu uniforme, relembrou uma conversa com um chefe muçulmano somali do outro lado. “O meu deus era maior que o dele. Eu sabia que o meu deus era um deus verdadeiro, e que o dele era um ídolo.”
Este legislador ignorante não sabe que cristãos, muçulmanos e judeus, todos adoram o mesmo deus, de maneira que ele é um ídolo para todos. Mas havia algo muito sério nos comentários ridículos do general. Se esta é uma guerra contra o diabo, então a rendição não é uma opção. Se a razão diz que a guerra vai mal, então as tropas deveriam pôr a sua fé em deus, pedir a admissão aos céus no campo de batalha, calar as suas bocas e matar em nome de Jesus. Há um método por trás da loucura de Bush ao abraçar a direita cristã fanática.
“Grande Deus” ou não, os EUA foram expulsos da Somália, não porque foram esmagados mas porque sofreram perdas que não podiam sustentar politicamente. Parece haver um consenso entre a classe dominante norte-americana – e certamente entre os principais políticos de ambos os partidos – que os EUA não podem deixar isso acontecer no Iraque. Há mais do que um país em jogo. É suposto que o Iraque seja a principal via de passagem para uma reorganização radical do mundo debaixo das botas norte-americanas.
Nesta situação, a resistência iraquiana terá que fazer mais que lutar. Precisará de uma estratégia militar que não aponte apenas para tornar a ocupação tão dolorosa quanto possível para os EUA e a Grã-Bretanha. Precisará de unir todas as formas e forças de resistência e infligir-lhes uma derrota militar.
Seja o que for que aconteça, a guerra de resistência no Iraque já representa um importante papel no moldar dos acontecimentos mundiais.