Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 10 de Maio de 2004, aworldtowinns.co.uk
Iraque: A tortura é a essência do império
As fotografias de soldados norte-americanos a torturar prisioneiros iraquianos expuseram muitas coisas, mas o que mais precisa de ser revelado é isto: a utilização da tortura como política sistemática dos governos dos EUA e da Grã-Bretanha é uma consequência da natureza da própria guerra.
A intenção norte-americana de utilizar a tortura onde quer que a considere necessária nunca foi nenhum segredo. O governo dos EUA disse claramente que se considerava acima das Convenções de Genebra e declarou que não permitiria que o Tribunal Penal Internacional de Haia julgasse cidadãos norte-americanos por crimes de guerra ou contra a humanidade. Desde o início que afirmaram que os seres humanos não têm nenhum direito que o governo dos EUA seja obrigado a respeitar. Por que é que ficaríamos surpreendidas por de repente vermos fotografias que provam que eles fazem o que dizem fazer?
As humilhações sexuais que agora foram divulgadas fazem parte de uma abordagem global que incluiu violações brutais de homens e mulheres, espancamentos e violações de crianças com 12 anos, atirar pessoas de torres de vigia e pontapeá-las e bater-lhes até à morte.
Num relatório enviado em Fevereiro ao governo dos EUA e recentemente divulgado publicamente, a Cruz Vermelha dizia: “É claro que o que descobrimos não [nos] permite concluir que aquilo com que estamos a lidar no caso de Abu Ghraib sejam actos isolados de membros individuais das forças da coligação. O que descrevemos revela um padrão, um sistema alargado.” Um porta-voz do Crescente Vermelho disse recentemente: “As fotografias são certamente chocantes, mas os nossos relatórios são piores.”
Este sistema de tortura tem um duplo objectivo. O primeiro é obter informações militares de forma a encontrarem e eliminarem os combatentes da resistência. Não é verdade que, como afirmam os cínicos e alguns pacifistas, todas as guerras requerem tortura. Como disse Mao, uma das principais vantagens que os exércitos revolucionários têm são as massas populares que lhes dão informação preciosa. O seu objectivo – emancipar as massas – requer que confiem nas massas. De facto, não há mais nada em que possam realmente confiar e se fossem tratar as massas como os reaccionários o fazem, assegurariam a sua própria destruição. Os exércitos reaccionários não têm nenhum outro modo de obterem informações e a cooperação das massas que geralmente os odeiam, senão a intimidação e a tortura.
Perante o desenvolvimento da resistência iraquiana, os EUA tornaram a tortura mais sistemática e alargaram deliberadamente o âmbito daqueles a que ela é aplicada, detendo não apenas suspeitos de serem combatentes, mas também outras pessoas, frequentemente levadas aleatoriamente em detenções em massa, incluindo em rusgas por atacado e em postos de fiscalização nas estradas.
O Major-General Geoffrey Miller, comandante do campo prisional norte-americano de Guantânamo, visitou o Iraque pela primeira vez em Agosto passado para “Gitmoizar a operação de detenção” (“Gitmo” é a gíria militar norte-americana para Guantânamo) e tornar os interrogatórios “mais efectivos e eficientes”. Mais recentemente, ele foi transferido para coordenar as detenções e os interrogatórios no Iraque. Um resultado da sua visita foi que a população prisional quase triplicou. Outro resultado foi a sistematização do tipo de sadismo cujas culpas o governo dos EUA está agora a tentar fazer passar para meia dúzia de GI’s.
Miller insistiu que os guardas prisionais deveriam transformar-se em “facilitadores dos interrogatórios”. Um dos guardas mostrado a sorrir atrás de uma pirâmide de prisioneiros nus explicou-o numa mensagem de correio electrónico: “O trabalho do PM [polícia militar] é tornar isto num inferno, de modo a que eles falem.” As técnicas que eles utilizaram estão descritas num “Manual de Treino de Exploração de Recursos Humanos” do exército norte-americano publicado em 1983 e que já esteve classificado como secreto. Os serviços de informações militares e os agentes da CIA disseram aos guardas: “Bom trabalho, eles estão a quebrar muito rapidamente. Respondem a todas as perguntas. Estão a fornecer boas informações.” O próprio Rumsfeld visitou Abu Ghraib em Setembro passado e aparentemente gostou do que viu.
O outro objectivo da tortura – não admitido nem sequer por pessoas que alegam que ela é um “mal necessário” – é pura e simplesmente aterrorizar a população, ensiná-la que não deve resistir. Aparentemente, algumas das torturas tiveram lugar em locais onde nem um único norte-americano falava árabe nem havia nenhuma intenção de “extrair” informações. Algumas dessas fotografias não foram tiradas apenas como “troféus”, nem simplesmente como parte da humilhação destinada a esmagar os torturados. Os advogados dos soldados que enfrentam castigos dizem que o objectivo de algumas fotografias era serem mostradas a outros prisioneiros. Provavelmente também tencionavam exibi-las às famílias e aos vizinhos dos prisioneiros e – embora não fosse suposto serem difundidas pela comunicação social da “pátria” – também para aterrorizar e humilhar o povo iraquiano no seu todo, mostrando-lhe o que pode esperar se não obedecer às ordens norte-americanas.
Um porta-voz da Human Rights Watch (Observatório dos Direitos Humanos) disse que essas fotografias da prisão são “uma janela para um fenómeno generalizado”. O que elas mostram é uma amostra de tudo o que os EUA têm feito no Iraque, desde os bombardeamentos de cidades no início da invasão ao actual cerco de Falluja, nas vizinhanças de Abu Ghraib. Em vingança pela morte de quatro mercenários norte-americanos e pelo desrespeito dos seus corpos – o mesmo tipo de coisas que os soldados norte-americanos têm feito em larga escala em Abu Ghraib e noutros campos prisionais – os EUA têm mantido refém uma cidade inteira e utilizado franco-atiradores e aviões para matar muitas centenas de pessoas. Seja feita com botas e bastões, com tanques e helicópteros ou com aviões e mísseis de alta-tecnologia, a violência da opressão tem o mesmo objectivo: subjugar o povo.
Estes actos estão a par com o que se passa em Guantânamo e noutros campos de concentração norte-americanos em todo o mundo, incluindo no Afeganistão onde, de acordo com Theo van Boven, relator da ONU para a tortura, a situação é ainda pior do que se sabe até agora sobre o Iraque. Pode ser coincidência que Seymour Hersh, o mesmo jornalista que durante a Guerra do Vietname primeiro relatou o massacre de My Lai (uma aldeia cujos habitantes foram assassinados por soldados dos EUA em 1968), também tenha representado um importante papel na divulgação da verdade sobre a prisão de Abu Ghraib, mas a conduta dos EUA na guerra contra o Vietname não foi nada distinta da sua conduta na guerra contra o Iraque.
E essas são as mesmas políticas que levam a cabo nos EUA desde 11 de Setembro de 2001, quando em nome da “protecção da pátria” o governo prendeu cerca de 1200 estrangeiros e manteve muitos deles em isolamento durante um ano sem qualquer acusação, abusando e torturando alguns deles do mesmo modo que no Iraque. O governo ainda mantém dois homens em custódia militar com a alegação de que qualquer pessoa que o presidente chame de “combatente inimigo” não tem qualquer direito.
De facto, esses crimes são um concentrado da própria sociedade norte-americana. Tal tratamento é rotineiro nas prisões e nas esquadras da polícia onde os oprimidos são presos, como se viu numa outra fotografia famosa do espancamento punitivo feito pela polícia a um negro chamado Rodney King e na tortura pela polícia da cidade de Nova Iorque do imigrante haitiano Abner Louima, sodomizado com um desentupidor, ao estilo de Abu Ghraib. A satisfação nas caras dos soldados nas fotografias de Abu Ghraib – alguns são guardas prisionais na vida civil – registam a mesma satisfação que as caras dos membros das turbas de linchamento que torturavam e enforcavam os negros e outros norte-americanos.
As fotografias de Abu Ghraib pertencem a uma galeria muito mais alargada, a uma exposição quase infinita de crimes que se prolongam há muitos séculos atrás e em todo o mundo. Estes crimes são uma parte essencial dos fundamentos políticos e sociais que definem os EUA como país imperialista.
Algumas pessoas, tanto porta-vozes de Bush e Blair como dos seus rivais políticos – de facto, o essencial da ordem política e económica de ambos os países – estão a tentar dissociar a guerra e a ocupação dessas imagens horríveis. Alegam que a guerra pode e deve ser feita por outros meios. Isso é impossível e muitos deles sabem isso. O seu ponto de partida e a sua verdadeira preocupação é saber como manter a ocupação.
A questão mais importante não é apenas saber se alguns soldados se transformaram em bestas ou se as bestas responsáveis os mandaram executar esses actos. Os crimes desta guerra não começam nem terminam com a tortura, mas a tortura é uma expressão concentrada dos seus objectivos e da própria natureza da guerra: conquistar um país e declarar o seu povo como sub-humano é parte da ofensiva para conquistar a hegemonia sobre as nações oprimidas de todo o mundo e para escravizar e desumanizar ainda mais a humanidade.
A própria guerra é o cerne da questão. Não importa o que possam querer as pessoas (e os responsáveis nem se preocupam com isso), os meios “humanitários” nunca podem garantir fins injustos. Esta guerra é ela própria injusta e tudo o que os ocupantes fazem reflecte isso.
Tudo o que debilite o domínio desses assassinos será bem-vindo, mas nenhuma demissão ou substituição pode mudar a natureza fundamental desta guerra – não a de secretários ou ministros, nem mesmo de primeiros-ministros ou presidentes. Mesmo que alguns políticos estejam agora a cacarejar sobre os “abusos”, eles estão genericamente de acordo sobre os planos para enviar mais soldados.
Em Setembro passado, o Pentágono exibiu A Batalha de Argel, um filme anti-imperialista de 1965 que expõe os crimes cometidos pelos franceses durante a sua guerra contra o movimento argelino de independência no final dos anos 50 e início dos anos 60. O exército francês usava extensivamente a tortura, bem como os massacres, e essa prática despertou muitos franceses (incluindo soldados) para a oposição activa a essa guerra, de diferentes maneiras. Numa cena culminante, o comandante-geral francês na Argélia – com base numa personagem da vida real – alega que é hipocrisia denunciar esses métodos, porque, explicava ele, sem eles a França não pode ter esperança de ganhar. Se querem que a Argélia continue francesa, dizia ele, têm que aceitar a tortura.
O filme torna claro que o que aconteceu foi exactamente o contrário – os métodos franceses ajudaram a provocar a sua derrota. O que o Pentágono aprendeu com esse filme não foi divulgado. Se alguns deles pensam que podem evitar os “erros” franceses, estão enganados, porque os actos bárbaros são uma consequência deliberada e inevitável dos objectivos bárbaros. Mas parece que muitos militares assistiram ao filme simplesmente para estudar as técnicas dos interrogadores franceses.
Eles, tal como os imperialistas franceses, pensam que a sua derrota é inconcebível.
Quanto mais cometem esses crimes, maior será o ódio concentrado e a oposição e energia potencial dos povos do mundo contra eles.