Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 1 de Março de 2010, aworldtowinns.co.uk
“Estado de Guerra”, “Avatar” e um mundo em que poderíamos viver
Estado de Guerra [The Hurt Locker, no título original] e Avatar estão entre os principais candidatos aos Óscares deste ano, os mais cobiçados prémios de cinema de Hollywood, imediatamente a seguir aos prémios Bafta de Londres, onde foram considerados os dois principais concorrentes (Estado de Guerra ganhou o prémio do melhor filme). Eles têm sido muitas vezes comparados um ao outro, e muito justamente porque eles se opõem de muitas formas.
Para começar, um grande número de críticos de cinema desprezou Avatar como filme “político” e criticou o realizador James Cameron por introduzir sorrateiramente as suas próprias ideias controversas sobre o capitalismo, a política norte-americana e a ecologia em algo que é suposto ser entretenimento. O Estado de Guerra de Kathryn Bigelow é, em comparação, suposto ser “apolítico” e “não controverso”, um estudo de carácter de soldados na guerra do Iraque que não toma posição sobre a própria guerra.
Trata-se de uma abordagem por parte dos principais meios de comunicação social de tal forma comum que normalmente não é posta em causa mas que, no entanto, muito revela sobre a perspectiva e os critérios dos críticos e outras autoridades que tomam essas posições. Os filmes são criticados por serem “políticos” se a sua política vai contra a ordem dominante; caso contrário, as ideias que eles veiculam são consideradas senso comum e, por isso, não precisam de nenhuma justificação. Se alguém faz um filme que desafia as opiniões dominantes, é acusado de usar inadequadamente esse meio para promover as suas próprias ideias pessoais, como se não fosse verdade que toda a arte promove ideias e formas de ver o mundo.
Estado de Guerra
Um olhar mais profundo a Estado de Guerra mostra a falsidade desse argumento. O filme centra-se numa brigada de desactivação de bombas, constituída por três elementos do exército norte-americano, e em particular no seu líder, o Sargento William James (interpretado por Jeremy Renner). Ao procurar e ao desactivar bombas nas bermas das estradas, James é não só imprudente – arriscando-se desnecessariamente a si próprio e aos seus companheiros – mas também obsessivo. Ele tem dificuldade em lidar com emoções; como ele próprio diz ao seu jovem filho antes de se voltar a alistar para uma nova missão no Iraque, desmantelar bombas é a única coisa que ele realmente ama na vida. Pouco a pouco, o filme leva a audiência de uma perspectiva negativa sobre essa personagem que não se consegue relacionar com outras pessoas – uma antipatia partilhada pelos seus companheiros – para uma compreensão da forma como a descarga de adrenalina da batalha é uma droga viciante que permite que homens como ele encerrem as lesões [hurt em inglês] da vida num cofre [locker] mental onde eles não precisam de as sentir. [The hurt locker é aparentemente uma gíria militar para quem é ferido em combate.] Ele desactiva bombas para ele próprio não explodir.
Isto só não é controverso se se aceitar a legitimidade – política e moral – do que esse pobre coitado está a fazer. Um crítico escreveu em defesa dele que, afinal de contas, se trata de um indivíduo que desactiva bombas e não de alguém que as despeja sobre as pessoas. Se não fosse esse o caso, muito menos gente seria atraída por um filme sobre uma guerra amplamente impopular. Mas, na realidade, a justiça ou a injustiça dessa guerra deveria ser o nosso ponto de partida para julgar esse soldado. O seu trabalho não é “salvar vidas” de uma forma genérica. É salvar as vidas de soldados norte-americanos cuja função é impor uma humilhante ocupação estrangeira ao Iraque, ao serviço de interesses contrários aos do povo iraquiano. Eles são membros de um exército que destruiu o Iraque. Eles assassinaram directamente dezenas de milhares de iraquianos, usando desde o bombardeamento de cidades e o disparo de mísseis sobre aldeias às incursões violentas em casas e a violação e o assassinato de membros das famílias. Também criaram as condições nas quais as forças mais reaccionárias do Iraque floresceram rapidamente, ao mesmo tempo que os EUA instigavam e se aliavam a facções opostas, em esquemas de dividir-para-reinar. Será que esses soldados alguma vez se questionaram: O que é que nós estamos a fazer aos iraquianos que os faz quererem matar-nos?
Por outras palavras, o Sargento James é cúmplice de assassinato e de outros crimes a uma escala massiva e ele não se importa com isso. Qualquer pessoa que perceba isto tem dificuldade em se importar com ele. Isto é um problema num filme cujo motivo é suposto ser o suspense de se saber se ele sobrevive ou morre – e onde os seus companheiros por vezes pensam vê-lo morto. Tal como eles, ele prefere não ter interesse nas vidas dos iraquianos; a principal diferença é que ele também não se preocupa muito com as vidas dos norte-americanos, incluindo a sua própria. Os espectadores que se sintam atraídos por este tipo de abordagem de “apoio aos soldados e não à guerra” podem sentir pena dele, mas ele devia ter continuado a desmantelar máquinas e rádios ou ter mudado para os relógios. Em vez disso, ele encontrou o seu lugar como um mais que solícito dente da engrenagem de uma máquina que, a julgar pelos seus efeitos, é nefasta. Vários críticos, sobretudo na Grã-Bretanha, têm salientado que dada a antipatia generalizada pela guerra do Iraque, este filme é o mais perto de uma defesa da guerra que muita gente consegue engolir. Isto é verdade, independentemente das intenções da realizadora (na entrega dos Bafta, Bigelow dedicou o seu troféu a que “nunca se abandone a necessidade de se encontrar uma decisão para a paz”). O seu tema pode muito bem ser “a descarga da batalha é um vício potente e muitas vezes letal”, mas algumas pessoas na audiência concluirão indubitavelmente que é uma droga que gostariam de experimentar.
Avatar
Quando o conhecemos inicialmente, o protagonista central de Avatar é muito semelhante ao Sargento James. Jake Sully (Sam Worthington), um ex-fuzileiro norte-americano, passou ele próprio pelo cofre das lesões e perdeu a capacidade de usar as suas pernas. Esteve em serviço na Nigéria e na Venezuela e percebemos que ele não esteve lá para distribuir gelados à população local. Agora, foi contratado pela RDA, uma mega-empresa que quer explorar até à exaustão Pandora, uma paradisíaca lua arborizada do sistema solar de Alfa Centauro, muito afastada da Terra. O problema da RDA são os Na'vis, um simpático povo que se recusa obstinadamente a abandonar as suas casas, inconvenientemente situadas no topo do principal depósito de “inobtânio”, um minério com propriedades antigravidade pelo qual a RDA tudo faria para o obter.
Sully é contratado para substituir um cientista, o seu recém-falecido irmão gémeo, como operador de um avatar, uma criatura híbrida criada geneticamente que se parece e age como um Na'vi alto, de pele azul e sobre-humanamente atlético, mas que se mantém sob controlo humano – e portanto da RDA. O seu suposto trabalho é perceber como é que os Na'vis podem ser persuadidos a partir, mas o coronel que comanda o exército privado da RDA (interpretado por Stephen Lang) também lhe pede que reporte como é que eles podem ser destruídos se as outras formas de desencorajamento não resultarem.
Ironicamente, Estado de Guerra, apresentado como sendo um estudo hiper-realista de homens na guerra e admitidamente hábil na sua prospecção das profundidades psicológicas do seu protagonista, é na realidade bastante tacanho e exíguo na sua representação da realidade, porque ignora o contexto e as consequências dos actos dos seus protagonistas. Basicamente, aceita a fantasia de que a guerra é divertida, no máximo preocupando-se com o perigo de os soldados se entusiasmarem com ela e de forma nenhuma com o que eles estão a fazer ao povo do Iraque, e porquê. Em contraste, Avatar é um filme de ficção científica em 3D, com efeitos especiais digitais que inevitavelmente lhe dão um carácter de fantasia e mesmo de desenhos animados, em contraste com a tentativa de subtileza, sensibilidade e acção efectiva de Estado de Guerra. (Podíamos passar todo este artigo a exaltar a beleza e o prazer desses efeitos; apenas diremos que deve ser visto em 3D.) Contudo, Avatar, que se passa em 2154, está muito mais próximo da verdade sobre o mundo em que neste momento vivemos.
Olhando para a frente, no rescaldo do duro colapso da conferência de Copenhaga sobre as alterações climáticas de Dezembro passado, em que os governos capitalistas do mundo se recusaram a tomar qualquer medida séria para evitar uma potencial catástrofe global, parece de bom senso imaginar que dentro de século e meio este sistema terá destruído completamente a Terra e que mesmo nessa altura tentará prolongar a sua miserável vida devastando integralmente novos mundos. Olhando para trás, Avatar é uma metáfora da história: a conquista europeia da América Latina e da Ásia, a escravização de África e sobretudo as guerras de extermínio contra os povos nativos da América do Norte – desta vez com um final feliz.
Avatar está cheio de referências à “guerra contra o terrorismo” e à invasão do Iraque, mas a sua referência visual mais fundamental é à guerra do Vietname. É nisso que os espectadores pensam quando vêem as luxuriantes selvas tropicais de Pandora, as impenetráveis colinas e os demasiadamente familiares e predatórios helicópteros militares norte-americanos que se abatem sobre os seus habitantes. O realizador não podia ter escolhido imagens mais icónicas da guerra do Vietname que as suas cenas de soldados couraçados a disparar através das portas abertas dos helicópteros sobre os pouco revestidos guerrilheiros em baixo.
Uma das coisas que torna o filme de Cameron tão realista em relação à vida, mesmo nos seus momentos mais fantásticos, é que ele compreende os antagonismos que caracterizam a sociedade contemporânea. A RDA e os Na'vis não podem coexistir no mesmo mundo (ou pelo menos na mesma lua). A RDA não tem nenhuma outra forma de existência que não seja uma cruel expansão, e o seu insaciável apetite pelo lucro económico tem uma expressão militar que só pode ser parada por uma outra força militar. O coronel, que se parece ao general comandante das forças norte-americanas no Iraque, encarna a perspectiva do império, e prefere morrer a abandoná-lo.
Cameron tem sido criticado por fazer um paralelo tão forte entre as guerras pelo império e a violação do(s) planeta(s), mas essa ligação é real. Não é apenas uma estranha noção pessoal que ele inventou e que está a tentar impor às audiências com os seus efeitos especiais. Ele não menciona o sistema económico e político, embora muitos críticos, hostis e favoráveis, tenham colocado a palavra “imperialismo” na boca dele, mas descreve o seu horror. É difícil criticar Avatar por distorcer a vida real. É por isso que muitos críticos tiveram que ir ao cerne da questão e, em vez disso, criticaram-no pelo lado que toma.
A certa altura, Sully diz que, nos velhos tempos, os ex-fuzileiros contratados pela RDA foram “combatentes da liberdade”, mas que agora se tornaram “mercenários” a soldo de uma empresa gananciosa. Não é claro que Cameron acredite realmente nesta alegada distinção moral entre o imperialismo do sector público e do privado ou se está a fazer com que se digam essas palavras apenas para evitar acusações de ser antipatriótico (ele nasceu no Canadá, mas isso é irrelevante). É provável que se se tratasse de um filme “alternativo” ou “underground” de baixo orçamento, em especial feito por alguém chamado Mohammad, se Cameron não fosse um mestre do cinema popular, o autor do filme que gerou os maiores lucros de sempre até hoje (Titanic), se Avatar não fosse tão popular nas audiências de tal forma que as suas receitas de bilheteira já superaram esse record, e se este filme não fosse tão indiscutivelmente fascinante e entusiasmante, usando uma tecnologia extremamente avançada, não de uma forma medíocre para nos impressionar, mas para chegar a uma obra de arte coerente e extremamente efectiva, então o realizador poderia ter acabado na prisão ou pelo menos em grandes dificuldades.
Nos EUA e na Europa já houve pessoas presas por usarem t-shirts menos subversivas que este filme.
Sully, que começa como um entusiástico cão de guerra muito à semelhança do principal protagonista de Estado de Guerra, acaba a fazer algo que James evitava a todo o custo, pensar no que está a fazer. E muda de lado. Sully “trai a sua raça”, como diz o coronel, e junta-se aos Na'vis naquilo que é claramente concebido como uma guerra de libertação nacional contra os invasores imperialistas. Ao fazê-lo, ele acaba por levar consigo pelo menos um outro soldado, uma vigorosa jovem piloto de combate latino-americana, e alguns membros da equipa científica.
Este final tem sido criticado por pessoas que se intitulam a si próprias de direitistas e por outras que defendem uma sensibilidade mais liberal, incluindo um autor do jornal New York Times e pelo menos um conhecido crítico londrino. A acusação é a de que Cameron é racista, uma vez que manda um homem branco liderar as suas “pessoas de cor” Na'vis (as quais são todas realmente pessoas de cor sob a maquilhagem, o que perturbou particularmente o crítico londrino). Este “complexo do messias branco” é alegadamente um pecado comum entre os ocidentais pró-“povos primitivos” e por aí adiante; o paralelo com Dança com Lobos (um outro filme em que um “cowboy” – na realidade, nesse caso, um soldado – se muda para o lado dos índios e que Cameron diz tê-lo influenciado) é muitas vezes mencionado. Esta acusação não percebe o que Cameron quis mostrar: não que os Na'vis não se conseguiriam defender sem um homem branco, mas sim que o seu personagem Sully e os outros fazem o que está certo, abandonar o sistema e tomar o lado dos seus inimigos.
O ataque de mísseis do coronel contra a Árvore Residência dos Na'vis ecoa o derrube das torres do World Trade Center a 11 de Setembro. A mensagem parece ser: Fizemos isto repetidamente a outras pessoas. Numa entrevista em que explica porque é que fez com que o coronel usasse a expressão “choque e pavor” para o descrever, Cameron disse que queria que as audiências pensassem no que era “sentir como é” estar do lado receptor. O diário neoconservador norte-americano The Weekly Standard foi mais directo: o filme incita as audiências a “torcerem pela derrota dos soldados norte-americanos”. Ou, como escreve o The Christian Post, “se se consegue levar uma sala cheia de pessoas no Kansas [um estado icónico dos norte-americanos ao seu nível mais retrógrado] a levantarem-se e aplaudirem a derrota do seu país, então temos uns efeitos especiais surpreendentes”. (Veja a entrada “Themes in Avatar” na Wikipédia [wikipedia.org/wiki/Themes_in_Avatar, em inglês] para ler uma surpreendente e divertida colecção de críticas reaccionárias de espuma na boca de todo o mundo, bem como esta e outras entrevistas.)
O objectivo do realizador não é glorificar Sully mas sim dirigir-se a soldados como o James de Estado de Guerra na guerra do Iraque e noutras semelhantes – incluindo os brancos e as “pessoas de cor” entre eles – e, claro, às dezenas de milhões ou mais de pessoas que vêem este filme, e dizer-lhes que é tempo de também eles tomarem uma posição. É esta a verdadeira razão por que certos cães de guarda do sistema odeiam este filme.
Outros mundos possíveis
Porém, Cameron não se limita a denunciar o mundo tal como ele é. Ele desenvolve uma visão de um outro mundo, diferente. É muito positivo que ele se debata com esta questão, em vez de se afundar nessa complacência de aceitação do mundo actual que vicia muitos filmes, muitos críticos de cinema e outros intelectuais (mesmo que de uma forma frequentemente mais cínica que entusiástica). A sua ficção científica foi profundamente pensada e merece uma séria consideração.
A sociedade de clãs dos Na'vis é o oposto da atmosfera autocentrada/macho da colónia mineira humana ou do Estado de Guerra. Aí não pareça haver uma divisão social de género ou entre tarefas manuais e mentais – tanto os homens como as mulheres podem ser cantores e/ou caçadores – e os homens não são dominantes, mesmo que alguns jovens tenham problemas de testosterona. Também é mais comunal que hierárquica, embora tenha líderes (talvez hereditários). O princípio social de base e de coesão é o respeito mútuo. Quando se apaixonam uns pelos outros, os Na'vis dizem “Eu vejo-te”. Além disso, os Na'vis vivem em harmonia com a natureza, com algo semelhante a uma caneta USB orgânica nos seus rabos-de-cavalo que eles usam para literalmente se ligarem aos animais e ao meio ambiente em geral. Quando Sully pergunta a Neytiri (Zoe Saldana), a filha dos líderes Na'vi por quem ele se apaixona, porque é que os animais o atacam a ele e não ao seu povo, ela brinca com ele: é porque “fazes muito barulho” – ele perturba o meio ambiente.
Embora se diga que o próprio Cameron é um ateu, os seus Na'vis têm uma divindade, Eywa. Apesar disso, segundo a cientista principal, Dra. Grace Augustine (Sigourney Weaver), Eywa não é um conto de fadas sobrenatural mas sim um nome dado a um fenómeno natural, o facto de que tudo no planeta está ligado como um único organismo. Eywa, explica ela, é um outro nome para a tendência desse bio-sistema de manter a bioestase, o equilíbrio ecológico.
Esta parte do filme é de certa forma ficção científica. A verdadeira razão é que, no planeta Terra, e é sobre ele que Avatar realmente se debruça, os seres humanos fazem parte da natureza e dependem do ecossistema. No sistema capitalista em que vivemos, o resultado será o caos económico se não se der a supremacia ao lucro privado sobre o bem-estar colectivo e aos resultados de curto prazo, independentemente de quão não intencionais e indesejáveis sejam os seus efeitos a longo prazo. Por isso, o desenvolvimento sustentável é tão vital quanto impossível de alcançar sem que se derrubem os senhores do nosso planeta.
Mas a natureza não está em equilíbrio eterno; está num estado de constante mudança. As paisagens da Terra, os mares e mesmo as pedras têm passado por um desenvolvimento espectacular. Há espécies que aparecem e desaparecem, por vezes destruindo-se umas às outras. Os seres humanos ficam muitas vezes numa relação antagónica com a natureza, mesmo que correctamente se esforcem por tratar o seu mundo como algo entregue ao seu cuidado para as gerações futuras. Por exemplo, os vírus que causam epidemias devastadoras são tão naturais como as flores selvagens, e é provável que surjam novas num futuro longínquo. No terramoto do Haiti, tal como no tsunami do Oceano Índico em 2004, as condições sociais representaram um papel enorme na determinação da extensão da destruição e sobretudo na capacidade de restabelecimento dos sobreviventes, mas esses acontecimentos serão sempre devastadores em qualquer sociedade. Ao contrário de Eywa, a Terra não se importa que as espécies sobrevivam ou não. Nem o universo, que já várias vezes enviou asteróides que chocaram com o nosso planeta. Mesmo o sol acabará um dia.
Para fazer com que a natureza produza os meios para viverem, e para se reproduzirem, as pessoas têm que estabelecer relações sociais umas com as outras. As relações sociais em que elas produzem e se reproduzem são as fundações sobre as quais todas as outras relações sociais (por exemplo, quem faz o trabalho manual e quem é encorajado a pensar), instituições, hábitos, ideias dominantes, etc. se baseiam. Que tipos de relações de produção são possíveis é no fim de contas determinado pelo nível de desenvolvimento das forças produtivas (as pessoas e o seu conhecimento e capacidades, a terra e outros recursos naturais, e o nível de tecnologia).
Os Na'vis vivem de frutos e animais selvagens. Mesmo para os primeiros dos povos caçadores-recolectores, o seu modo de vida não era exactamente utópico – por vezes, havia violência entre grupos diferentes. Além disso, eles transformaram o seu meio ambiente com essas actividades e o seu meio ambiente também os transformou. Essa interacção entre todos os seres e o seu meio ambiente é uma parte importante do mecanismo da evolução. Por razões semelhantes, os humanóides sempre se movimentaram por todo o planeta. Além disso, assim que as pessoas começaram a cultivar e a criar animais, o seu efeito no seu meio ambiente tornou-se muitas vezes maior. O abate de florestas para cultivo e madeira e a pastorícia começaram rapidamente a transformar as regiões da terra onde essas actividades surgiram.
Com o desenvolvimento da agricultura fixa, as pessoas podiam produzir um excesso para além das suas necessidades diárias imediatas, de forma que nem toda a gente tinha que estar a trabalhar todo o tempo para obter comida. Isso tornou possível que a riqueza produzida pela sociedade se tornasse propriedade privada de alguns indivíduos e, por consequente, que emergissem divisões sociais antagónicas, tanto entre as diferentes classes recém-emergentes como entre homens e mulheres. (Ao contrário da vida em Pandora, teve que haver uma certa divisão do trabalho nas primeiras sociedades, devido ao papel das mulheres na maternidade, mas foi só com o surgimento da propriedade privada que ela se tornou numa questão de haver um sexo oprimido e um opressor. Cameron contorna isto porque as suas mulheres têm peitos mas não dão à luz como os humanos.)
Desde então, a história humana tem sido fundamentalmente caracterizada pela relação dinâmica entre o desenvolvimento das forças produtivas e os vários tipos de sociedade que isso tornou possível. Todas essas sociedades têm sido um inferno na terra para a maioria das pessoas. Todas, até agora, têm sido caracterizadas por vários tipos de propriedade privada, de exploração e de estados para imporem violentamente essas relações sociais opressoras e de exploração.
Muita gente vê Avatar como um conflito entre um suposto paraíso perdido da humanidade primitiva e o mundo moderno. Um crítico de cinema, defendendo cinicamente o mundo tal como ele é, contra a crítica de Cameron, escreveu que os Na'vis podem ter um bonito meio ambiente e uma sociedade agradável e que os seres humanos podem ter desarrumado o seu mundo e uns aos outros, mas que durante milhares de anos os seres humanos desenvolveram a ciência, a filosofia, a poesia e a ópera e tudo o que os Na'vis têm são árvores e canções sobre árvores. E podia ter acrescentado que nós, os seres humanos, até temos filmes 3D de alta tecnologia. Será que isto é uma análise correcta, ainda que fria, de um inevitável compromisso – será que temos que aceitar uma sociedade em que a exploração e a opressão são tão altamente desenvolvidas como a sua tecnologia, como única alternativa a não se conseguir desenvolver o nosso potencial humano?
A pergunta que o nosso crítico reaccionário não se atreve a fazer é a seguinte: Qual tem sido o custo de todos esses progressos tecnológicos, científicos e culturais? Uma sociedade atrás de outra em que uma minoria domina e extrai a vida da maioria, onde aos que trabalham com as suas mãos estão fechadas as portas do mundo das ideias, onde um sexo tem subjugado e humilhado o outro, onde a violência tem sido permanente e onde os países vivem ao inexorável ritmo das guerras – onde a vida e as possibilidades da vasta maioria dos seres humanos se têm mantido, quando muito, subdesenvolvidas.
Só para falar no mais recente tipo de sociedade de exploração, Marx escreveu que o capitalismo nasceu pingando sangue de todos os seus poros. E isto foi dito no século XIX, antes de o capitalismo ter produzido horrores ainda maiores, incluindo o genocídio e as duas guerras mundiais que tornaram possível o império norte-americano.
A verdade é que as massas populares de todo o mundo sempre tiveram um acesso limitado, ou mesmo nenhum aos progressos que o nosso crítico cita. Além disso, os que desfrutaram dessas vantagens, como por exemplo os cientistas de Avatar, sempre tiveram os seus horizontes e impacto e mesmo o próprio desenvolvimento da ciência restringidos pelo tipo de sociedades em que viveram e pelos interesses das classes dominantes e dos seus estados. Repetidamente, em conjunturas chave, as relações de exploração e opressão dominantes contiveram o desenvolvimento das forças produtivas. Elas foram sempre um obstáculo ao desenvolvimento individual e colectivo da humanidade no seu conjunto.
O que faz com que esse crítico de cinema esteja errado é que nós já não temos que aceitar esse pretenso compromisso (dizemos pretenso porque nunca ninguém perguntou às massas populares como é que elas queriam viver). Os processos de produção altamente socializados do capitalismo criaram uma classe internacional de pessoas que encarnam a possibilidade de essas forças produtivas se tornarem propriedade colectiva da sociedade e se pôr fim não só à exploração – a apropriação privada da riqueza socialmente produzida – mas a todas as outras relações sociais opressoras, instituições, hábitos, ideias, etc. que surgiram com base nelas. Essa classe de pessoas, o proletariado internacional, só pode libertar-se libertando toda a humanidade.
Com o aparecimento e o desenvolvimento da ciência do comunismo, uma forma inteiramente científica de compreender os seres humanos e um universo livre dos interesses das classes exploradoras e dos seus limites mentais, tornou-se possível levar a cabo um processo revolucionário que pode mudar radicalmente o mundo, não só satisfazendo as necessidades de todas as pessoas do planeta, mas também construindo uma sociedade com todo um novo conjunto de valores sociais e relações humanas. A criação desse tipo de mundo – uma sociedade em que a humanidade pode atingir tanto uma vida sustentável neste planeta como uma vida merecedora dos seres humanos – é a tarefa da revolução comunista.
Em Avatar, o realizador James Cameron descreve uma perspectiva diferente. Apesar disso, este filme é o tipo de coisa de que o nosso mundo precisa neste preciso momento. Esperamos que as pessoas que desfrutem deste filme como uma vital lufada de ar fresco se sintam encorajadas a fazer o que Jake Sully fez: dêem uma boa olhadela ao que está realmente a acontecer no mundo e porquê, pensem profundamente nisso e tomem uma posição que tenha impacto. E que continuem a ver.