Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 8 de Março de 2010, aworldtowinns.co.uk
Entrevista de Shahrzad Mojab ao Bazr sobre o Movimento das Mulheres no Irão
Os seguintes excertos são de uma entrevista do jornal estudantil iraniano Bazr (n.º 45 – Fevereiro de 2010) a Shahrzad Mojab. Essa longa entrevista é sobre a actual situação política e social no Irão. A secção aqui incluída diz respeito à questão da mulher e ao papel das mulheres iranianas na recente luta e reproduzimo-la por ocasião do 8 de Março, Dia Internacional da Mulher (DIM). Shahrzad Mojab é uma activista e investigadora iraniana que saiu do Irão em 1983. É autora de inúmeros artigos e livros sobre as mulheres iranianas, as mulheres curdas e as mulheres em zonas de guerra. Mojab é actualmente professora na Universidade de Toronto, no Canadá.
Pergunta (Bazr): O que é que pensas sobre o papel das mulheres na insurreição popular dos últimos meses no Irão? E como tem sido vista fora do país a vasta participação das mulheres nessas lutas?
Shahrzad Mojab: Quero aproveitar esta oportunidade para ir mais além do que uma entrevista. Houve um seminário na secção de estudos sobre o Médio Oriente na Universidade de Toronto sobre as mulheres e a questão do género. Eu comecei a minha intervenção com um poema de Shamim, uma jovem iraniana que vive na Europa. Diz o seguinte:
Tu fodeste-me violentamente,
E chamaste-me puta,
Tão simples quanto isso,
E no dia seguinte os jornais diziam:
Uma prostituta foi condenada à morte,
Eu morri e tu não te apercebeste,
Tão simples quanto isso.
Shamim, que também tem uma boa voz, canta uma canção em memória de uma sua amiga de 22 anos que foi apedrejada até à morte em 2000, na Prisão de Evin, que diz o seguinte:
Mais tarde (quando for o momento), escreve na minha campa que eu sou uma mulher
Escreve, vocês rasgaram a minha carne em pedaços.
Escreve que este castigo é uma forma rancorosa de religião.
Escreve que este crime é o orgulho de Omat (o crente no Islão).
(...)
Shamim está correcta ao dizer que a repressão, o apedrejamento e a violência contra as mulheres são uma forma ‘rancorosa’ de religião e que qualquer ‘omat’ que não se levante contra esse sistema faz parte dessa violência. Houve um grande debate sobre essa questão, o que, por um lado, mostra a confusão na dinâmica da luta das mulheres iranianas – as profundas contradições sociais, culturais e históricas que estão na origem deste explosivo movimento social – e, por outro lado, mostra a grande e extensa influência dos chamados pontos de vista ‘moderados’ e de direita (e dos métodos pragmatistas que lhes correspondem) na luta do povo iraniano em geral e na luta das mulheres em particular – pontos de vista que tentam confinar essas lutas dentro dos limites dos horizontes e interesses de uma facção do regime e de um pequeno sector de dissidentes. Entremos nisto mais em detalhe.
Há três décadas que os círculos políticos e académicos, os grupos de mulheres e os meios de comunicação fora do país têm seguido as iniciativas sociais, políticas e individuais das mulheres iranianas de oposição ao regime islâmico. A perspectiva dominante é de admiração, aprovação e encorajamento das actividades das mulheres com carácter reformista, pragmatista e que evitam a violência. É por esta razão que, fora do país, a Campanha ‘Um Milhão de Assinaturas’ [A campanha para um milhão de assinaturas é o nome dado a uma coligação de mulheres que está a recolher um milhão de assinaturas para mudarem as leis islâmicas. Estas correntes acreditam que a lei islâmica não tem nenhuma contradição com o Islão e querem alguns direitos para as mulheres no quadro do regime islâmico] é considerada o ‘movimento das mulheres’ no Irão, por oposição às correntes reformistas das mulheres no Irão. Porém, na minha perspectiva, a campanha ‘um milhão de assinaturas’, mesmo sendo uma das correntes do quadro reformista, tem um horizonte muito limitado porque quer continuar dentro da estrutura do sistema e da ideologia islâmica que são um dos pilares da opressão das mulheres no Irão.
Por outro lado, não há muita gente que conheça os pontos de vista das mulheres individualmente e dos grupos de mulheres que têm perspectivas para além da reforma e da renovação do aspecto legal-judicial do actual sistema. As análises e os pontos de vista de outros grupos de mulheres que exigem a destruição de todo o sistema chauvinista masculino religioso não são considerados parte do movimento das mulheres do Irão. Por exemplo, “as outras mulheres”, no seu comunicado de 8 de Março de 2009, declaram explicitamente que a questão da mulher não pode ser resolvida através da reforma deste sistema (z-degar.blogfa.com). É interessante ver que há mais de vinte anos que os familiares dos presos políticos dos anos 80, e sobretudo as ‘mães de Khavaran’ (ou seja as mães dos presos políticos que foram executados e enterrados no cemitério de Khavaran, nos arredores de Teerão), se têm levantado para exigirem justiça, mas essas lutas não têm tido nenhuma atenção do movimento dos direitos humanos na arena internacional. O modo como e porque é que essas selecções são feitas não é uma coincidência nem um acidente. É o produto do embaraço de várias correntes durante as últimas três décadas. Por isso, o papel das mulheres na recente insurreição e o seu reflexo fora do país devem ser considerados no contexto desta forma de pensar e destes desenvolvimentos políticos e práticos.
A visível participação das mulheres na revolução de 1979 foi o início de um desenvolvimento significativo das mulheres como importante força social na época contemporânea (no Irão). Depois da revolução, quando no primeiro DIM as mulheres protestaram contra a lei de Khomeini do hijab [véu] obrigatório e saíram às ruas, elas viram-se confrontadas com a violência do novo regime dominante. A maioria das organizações no movimento comunista e os grupos estudantis que estavam próximos desse movimento não as apoiaram, com o pretexto de que havia outras questões mais importantes para a revolução ou que a insurreição das mulheres não tinha um carácter operário! Isso foi uma indicação da influência de velhos pontos de vista no movimento comunista, de que a ‘reificação’ dos pontos de vista da classe operária tende a não ver a importância decisiva do movimento de libertação das mulheres para o movimento comunista. Alguns dos partidos ditos de ‘esquerda’, como o Partido Tudeh e os Mojahedin (a organização Mojahedin Khalq), estavam a negociar com o novo regime islâmico, esperando vir a fazer parte no poder político. Basicamente, a necessidade de como eles viram os seus interesses estava em conflito com o apoio ao movimento das mulheres contra Khomeini.
Essa opção tomada pelas forças políticas do movimento comunista e do movimento estudantil teve duas consequências:
- A repressão das mulheres abriu caminho à repressão de outras forças sociais, entre as quais os estudantes.
- A lei do hijab obrigatório foi o início da islamização de todas as relações sociais. Cobrir o corpo das mulheres é o símbolo religioso de um chauvinismo masculino nas relações entre homens e mulheres em todas as esferas da vida, públicas e privadas. Essas relações de base religiosa são definidas, coligidas e impostas pelo estado e pelos seus vastos serviços secretos, de polícia e pelo aparelho opressivo.
As mulheres não ficaram quietas face a esses ataques estado-religiosos, mas a sua rebeldia não assumiu uma forma militante concentrada nem resultou numa organização permanente de luta intransigente contra o regime islâmico. Ainda mais importante, não teve por base um programa claro.
A luta de massas das mulheres durante as últimas três décadas foi sobretudo espontânea e teve muitos altos e baixos. Mas alguns grupos de mulheres definiram horizontes políticos mais ou menos concretos. Trata-se das mulheres das famílias no poder, das mulheres que pertencem a correntes nacionalisto-religiosas e de algumas mulheres intelectuais laicas que estão fora do círculo de poder mas cujo programa é encorajar a reforma de algumas das leis do sistema contra as mulheres. Alguns investigadores feministas não iranianos chamam a essas tentativas de “feminismo islâmico”. Desta forma, eles carimbam a luta das mulheres com uma identidade religiosa. Essa forma de pensar é consistente com o crescente conservadorismo do movimento feminista mundial. De facto, na sequência do declínio das lutas de libertação dos anos 60, da ascensão ao poder dos conservadores na Europa, EUA e Canadá e, por fim, do colapso da União Soviética e da Europa Oriental, as ideias de direita cresceram no mundo académico, na comunicação social e na cultura em geral nos países capitalistas. O ponto de vista dominante passou a ser o de que o capitalismo no fundamental tinha mudado, que não havia nenhuma alternativa à actual situação e que tudo o que era possível era reduzir a severidade deste cruel sistema social, aqui e ali.
O resultado destes pontos de vista generalizados foi que o sistema estatal e dominante deixou de ser o alvo da luta dos movimentos sociais e, por conseguinte, as lutas confinaram-se a um bairro, uma região ou um grupo particular, pela melhoria da terrível situação daqueles que estavam a ser esmagados pelas pesadas engrenagens do sistema patriarcal. Sob pressão política e financeira de organizações acima dos estados, como as Nações Unidas, o movimento das mulheres perdeu o seu carácter militante. As Organizações Não-Governamentais [ONG] substituíram esses movimentos. Por outras palavras, ocorreu uma ONGização. O seu objectivo anunciado é a reforma da situação da mulher. Mas como o seu método de trabalho é negociar com o sistema chauvinisto-religioso masculino e não desencadear um movimento social para o confrontar, elas nunca chegarão ao ponto de ‘reformarem’ a situação da mulher e, em última análise, apenas irão corrigir algumas das estruturas da classe dominante. Acabarão por reduzir o movimento das mulheres a uma instituição de caridade, a uma agência de segurança social e por aí adiante, sem uma perspectiva comum e de longo prazo para as mulheres. O seu objectivo é implementarem os projectos para os quais recebam orçamentos. Por outras palavras, esses orçamentos determinarão a política do movimento das mulheres, e não um programa de longo prazo para obterem a liberdade e a igualdade.
Vou examinar os problemas do movimento das mulheres iranianas no contexto desta história e deste desenvolvimento. O passado precisa de ser conhecido para se compreender a actual situação e para se definir um caminho futuro e também para se ver a situação do movimento das mulheres no Irão no contexto da luta internacional das mulheres.
A presença de mulheres, e em particular de jovens com as suas caras bonitas e destemidas nas batalhas de rua, que foi divulgada na comunicação social ocidental e na internet, criou mais uma confusão feminista. Tal como mencionei antes, como consideravam que as mulheres iranianas eram ‘muçulmanas’ e era suposto que o hijab fizesse parte da sua ‘cultura’ inerente, perguntavam-me se ‘essas imagens eram reais’ e ‘então porque é que elas não parecem ser mulheres muçulmanas’. Falam sobre as ‘mulheres muçulmanas’ como se o ‘Islão’ estivesse programado nos genes e não como ideias e tradições que podem ser transformadas em paralelo com a transformação da sociedade. Por um lado, esta pergunta representa algum racismo. Por outro lado, mostra uma completa falta de conhecimento da complexa estrutura social da sociedade iraniana e da sua estrutura de classes sociais.
Embora durante 30 anos o regime islâmico tenha recorrido à violência para impor a islamização das relações de género, em paralelo com isso os académicos feministas tentaram justificar a subjugação das mulheres iranianas no quadro da religião recorrendo à ‘relatividade cultural’, à identidade, ao pluralismo, à autenticidade, ao interseccionalismo.
Alguns consideraram mesmo a resistência das mulheres contra as leis islâmicas dentro do quadro da religião e chamaram-lhe ‘feminismo islâmico’. Mas (a história julga e) este tipo de análises foi julgado pelo desenvolvimento do movimento. A violência do chauvinismo masculino islâmico a nível estatal ou na ‘sociedade civil’ não foi contida e a resistência das mulheres alargou-se a todas as esferas. As recentes batalhas de rua (por parte das mulheres iranianas) prova que estavam errados aqueles que, durante anos, encorajaram as mulheres iranianas a chegarem a compromissos com o regime religioso. Alguns dos reformistas que andaram a promover às mulheres rebeldes a reforma gradual do sistema antimulheres (e que ainda o fazem) viram-se confrontados com dezenas de milhares de mulheres que vêem a sua libertação ligada ao derrube deste sistema. O que está a acontecer não é a continuação das políticas reformistas (ao contrário do que eles alegam), mas sim uma ruptura com elas.
Vejamos um exemplo. A página na internet da ‘escola do feminismo’ [que pertence à coligação ‘um milhão de assinaturas’], por ocasião do 8 de Março de 2009, fazia algumas perguntas às feministas. Uma dessas perguntas era: “Que desejo concretizável você tem?” (É uma pergunta que fornece tanto a resposta como a forma de pensar). Eles limitam esse ‘desejo’ à sua concretização imediata. Esse ponto de vista promove de facto uma forma de pensar que diz que “o que é possível é então desejável”. A actividade ‘realista’ e ‘prática’, que em filosofia é formulada como ‘pragmatismo’, é a base do programa dos reformistas ou dos que querem remendar o sistema islâmico, tanto no movimento das mulheres como no movimento popular em geral. O pragmatismo defende que a verdade em qualquer momento é o que é possível. E (para eles) não há nenhuma verdade universal ou já descoberta. (Os Pragmatistas acreditam) que a verdade só pode ser descoberta através da prática. A verdade é o resultado da prática mas, ao mesmo tempo, a prática só pode ser real quando é útil (i.e., quando tem um resultado imediato). As feministas reformistas dizem que o movimento das mulheres deve considerar apenas as acções que são úteis, tais como recolher ‘um milhão de assinaturas’, e que a sua perspectiva é reformar o sistema legal do regime islâmico.
A luta dos últimos meses infligiu um duro golpe a esses reformistas, de tal forma que alguns ficaram aterrorizados com a radicalização deste movimento. Mas nós, mulheres, devemos ter consciência de que o reformismo é a política e a ideologia de uma certa classe – a burguesia – que é muito persistente e é necessário que esse ponto de vista seja combatido. É por isso que, nesta fase da luta, é essencial que as mulheres exprimam transparentemente as suas reivindicações e escolham a forma e o método de luta para as alcançarem. Os líderes (do movimento verde) não são menos culpados do que a facção dominante na repressão do movimento das mulheres e do movimento popular. Mesmo agora, os seus avisos contra os ‘anti-estruturalistas’ (uma expressão que o regime islâmico e os líderes verdes usam para as forças anti-sistema) cheiram a violência e ódio. A verdade é que a reivindicação de liberdade e igualdade para as mulheres é a reivindicação mais anti-estrutural (anti-sistema) no que diz respeito ao sistema da república islâmica. E não é sem razão que eles se mantêm calados em relação a isso. Não é sem razão que o grupo ‘um milhão de assinaturas’ tem sido silenciado pela bandeira verde e os seus activistas têm avisado que ele se devia limitar apenas a ‘reivindicações genéricas’.
A questão, neste momento histórico muito importante e sensível, é: quais devem ser as reivindicações das mulheres iranianas e, mais importante, como é que essas reivindicações podem ser alcançadas? A abolição incondicional de todas as leis islâmicas e não islâmicas contra as mulheres (entre as quais a abolição do hijab obrigatório está no topo) sempre foi uma das palavras de ordem mais importantes do movimento radical das mulheres. Isto faz parte da separação entre religião e estado. Na minha opinião, o movimento das mulheres evoluiu objectivamente para uma fase em que deve propor corajosamente e com autoconfiança o seu programa e método de luta para se tornar no centro de uma poderosa força de mulheres que desencadeie uma luta social consciente.