Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 10 de Outubro de 2011, aworldtowinns.co.uk

Egipto: Uma noite de terror e de coragem

A situação política no Egipto tornou-se ainda mais complexa e explosiva após um ataque a cristãos coptas. A 9 de Outubro, uma manifestação para exigir o fim da discriminação e dos ataques contra os coptas foi recebida por um nível de violência não visto desde a entrega do poder pelo Presidente Hosni Mubarak aos militares em Fevereiro passado. Isso, por sua vez, originou um feroz protesto contra o Conselho Supremo das Forças Armadas (SAFC) que governa o país. As batalhas nessa tarde e nessa noite resultaram em duas dezenas de mortos e centenas de feridos, segundo fontes oficiais.

Embora a discriminação e os ataques a membros da igreja copta não sejam nada de novo, agravaram-se no último ano. Os atentados bombistas contra igrejas mataram 20 pessoas em Janeiro e 12 em Maio e, em Março, as batalhas entre islâmicos e coptas na Praça Tahrir resultaram em 13 mortos. Com uma excepção, nunca ninguém foi preso por essas atrocidades. O incidente imediato que desencadeou esta última manifestação foi o incêndio de uma igreja e de duas casas de cristãos numa cidade da província de Aswan, no sul do Egipto.

Ao mesmo tempo que condenava o ataque, o governador provincial, um general, culpou os coptas por terem infringido a lei, dizendo que eles tinham estado a rezar ilegalmente num edifício não especificamente autorizado para os serviços cristãos, tal como a lei requer. Os responsáveis coptas salientaram o facto de o edifício, completamente incendiado de uma forma que impede a sua renovação, estar a ser usado como igreja há 80 anos e que é difícil ou mesmo impossível de obter uma autorização oficial. De imediato, houve protestos no Cairo e Alexandria a exigir a demissão do governador. Alguns dos manifestantes pediam a demissão do Marechal de Campo Mohamed Tantawi, chefe do SCAF, e do Ministro do Interior. Os soldados e a polícia antimotim dispersaram violentamente esses protestos no início de Outubro. Um vídeo colocado no YouTube mostra-os a espancar um padre.

No domingo, 9 de Outubro, muitos milhares de pessoas concentraram-se em Shubra, um bairro do Cairo com uma grande concentração copta. A maioria, embora não todos, eram cristãos. Marcharam até à Praça Maspero, onde se situam as instalações da televisão nacional. Homens à paisana na parte de cima de uma passagem subterrânea começaram a atirar pedras sobre os manifestantes, e ouviram-se tiros. A multidão prosseguiu até à Praça Maspero, gritando: “Este é o nosso país!” Alguns gritavam: “O povo quer o derrube do Marechal de Campo!”, o mesmo slogan que levou à queda de Mubarak. Na praça, foram recebidos por fogo de artilharia. Dois veículos blindados de transporte de pessoal (APCs) rugiram vindos de trás das linhas militares com as suas torres de metralhadoras a rodar enquanto disparavam em todas as direcções. Depois, pelo menos um deles enfiou pelo meio da multidão, arrastando meia dúzia de pessoas, ou mais, sob as suas rodas.

À medida que a morgue de um hospital cristão se começou a encher de corpos esmagados e de vítimas de tiros, a televisão estatal anunciava que os cristãos tinham roubado armas do exército e matado soldados. A comunicação social oficial apelou aos “egípcios honrados” para irem defender os soldados. Mas o boca-a-boca e as redes sociais também estavam a levar as pessoas para a Praça Maspero e para a vizinha Praça Tahrir, o centro da revolta egípcia. (Em Alexandria, a segunda maior cidade do Egipto, estava a decorrer uma outra manifestação.) Muitas pessoas vieram defender os coptas e exigir o fim do regime militar. Outras, que gritavam “O povo quer o derrube dos coptas” e “Não há outro deus que não Alá”, vieram para matar cristãos.

As testemunhas indicam que a polícia e o exército se concentraram em atacar os coptas e os seus defensores, alguns dos quais estavam a atirar pedras e a incendiar veículos da polícia, em reacção aos ataques. Mas também houve combates entre coptas e fundamentalistas muçulmanos e mesmo entre soldados e islâmicos. Em vez de claras linhas de batalha, havia caos. Segundo o regime, entre os mortos estão vários soldados, embora isso depois tenha sido posto em dúvida. Noutros pontos do Cairo, houve turbas que atacaram lojas de cristãos.

O exército impôs o recolher obrigatório mas, no dia seguinte, segunda-feira, não havia calma. Houve agitação no hospital e noutros locais à medida que os familiares iam buscar os corpos esmagados e mutilados dos seus entes queridos. (Os sobreviventes diziam ter medo de ir aos hospitais estatais ou de lhes confiar os seus mortos.) Patrulhas conjuntas polícia-exército no centro do Cairo paravam as pessoas e exigiam-lhes a identificação e espancavam-nos se os seus nomes revelassem que eram cristãos. Também chegaram a fazer isso em instalações da comunicação social.

Nessa tarde, cerca de 20 000 pessoas marcharam do hospital copta na Rua de Ramsés para a principal catedral e para a Praça Maspero, gritando “Os muçulmanos e os coptas são uma só mão!”, “Isto não é um conflito sectário, isto é um massacre!” “Abaixo o regime militar!”. Ao longo do caminho, os residentes dos bairros entregavam garrafas de água aos manifestantes.

Os porta-vozes militares denunciaram uma “mão estrangeira” por trás dos distúrbios e avisaram que iria haver uma investigação e prisões. Aqueles que fossem presos, disseram eles, seriam sujeitos a julgamentos militares.

No dia seguinte ao massacre, muita da sociedade egípcia tinha ficado polarizada entre os militares e os seus inúmeros apoiantes e aqueles que acreditam que todos os egípcios devem ter os mesmos direitos.

Tal como os militares tinham respondido a uma manifestação em Setembro, que exigia o fim da utilização de tribunais militares contra civis, com a prisão de manifestantes e a sua detenção para julgamentos militares, também agora os militares respondiam às críticas de não terem protegido os coptas aumentando a violência e a propaganda contra esses cristãos. A acusação de que eles agem como uma “mão estrangeira” visa insinuar que de alguma forma as potências ocidentais estão por trás das tentativas de “destabilizar” o regime. Mas a verdade é o oposto. Durante décadas, os EUA deram mais dinheiro às forças armadas egípcias que a quaisquer outras, à excepção de Israel, e as potências ocidentais estão a contar com isso para preservarem o domínio político e económico imperialista. A verdadeira “mão estrangeira” a trabalhar são as forças armadas egípcias quando elas lutam por estabilizar o seu regime enquanto servidores do Ocidente, em particular de Washington.

Historicamente, entre os coptas, que constituem cerca de dez por cento da população do país, estão muitos proprietários e figuras da elite urbana. As raízes deles no Egipto remontam a muito antes do Islão – o idioma deles vem do egípcio antigo. A igreja copta surgiu no século V na sequência de uma cisão com os outros ramos do Cristianismo. Nos séculos XIX e XX, os coptas estavam frequentemente associados a outros grupos, no que antes era a grande população cristã do Egipto (arménios, gregos, italianos e muitas outras comunidades de colonos), cuja cultura ocidentalizada tanto estava ligada à opressão do país enquanto colónia britânica, como mantinha a vida intelectual egípcia firmemente ligada ao resto do mundo. A revolução militar de 1952 liderada por Gamal Nasser, que derrubou o rei marioneta de Londres e expulsou as forças britânicas de ocupação, em grande parte também afastou os coptas dos cargos públicos e de muito da vida pública.

Desde então, os ataques oficiais aos coptas sempre foram uma forma de esconder a dependência política e económica em relação às potências estrangeiras (no caso de Nasser, os EUA e a URSS em momentos diversos) através do apoio primeiro ao “arabismo” e mais recentemente ao Islão enquanto identidade e alma do Egipto, em oposição ao conceito de uma nação egípcia.

Historicamente, em alguns países ocidentais, o anti-semitismo serviu para promover uma identificação entre classes antagónicas contra um ilusório inimigo comum. A propaganda e os pogroms anti-coptas têm por vezes desempenhado um papel semelhante no Egipto, mas o resultado, e frequentemente o objectivo consciente, também tem sido substituir por uma ilusória identidade religiosa (a cultura islâmica contra algum estilo de vida laico/ocidental vagamente definido) qualquer projecto de uma verdadeira libertação nacional.

De facto, os sucessores de Nasser, o seu parceiro homem-forte militar Anwar Sadat e Mubarak, cortejaram a igreja copta, mesmo quando em simultâneo também cortejavam os islâmicos, vendo ambas as religiões como bastiões contra a instabilidade social. A igreja copta apoiou oficialmente Mubarak e instruía os seus seguidores a fazerem o mesmo – em nome de evitarem um regime islâmico. Se a igreja não tem desfrutado das mesmas relações com os actuais generais no governo, pelo menos até certo ponto, isso tem acontecido porque os seus responsáveis temem que as forças armadas estejam preparadas para os entregarem aos fundamentalistas islâmicos. Apesar disso, o Papa da igreja copta, Shenuda III, culpou “infiltrados... estrangeiros” de terem atacado as forças de segurança.

É revelador que embora as actuais manifestações coptas contenham frequentemente uma forte componente religiosa, o regime e os seus apoiantes misturem os coptas em geral com os radicais políticos e os laicos. Isto diz algo sobre como as linhas divisórias estão a ser formadas.

O partido Wafd, historicamente o principal proponente da democracia parlamentar, desencadeou uma invectiva contra os coptas que só tem paralelo na comunicação social oficial e na Irmandade Muçulmana. O jornal do Wafd condenou os coptas pela “agressão” às forças armadas por pôr em risco a transição do país para a “democracia”.

A Irmandade Muçulmana foi tanto reforçada como perseguida durante os anteriores regimes. Tal como as forças armadas, condenou oficialmente a violência contra os coptas. Mas, tal como a dos militares, a crítica dela a ambos os lados, os coptas e os seus assassinos, é longe de equilibrada. Um porta-voz da Irmandade declarou rudemente que “todo o povo egípcio têm legítimas reivindicações, não apenas os nossos irmãos coptas. Esta não é seguramente a altura certa para as exigir”, repetindo o argumento de que qualquer protesto contra os militares põe em risco a transição para um regime parlamentar, especificamente ao perturbar os preparativos para a primeira volta das eleições em finais de Novembro. Eles disseram a mesma coisa há alguns meses atrás em relação às manifestações pelos direitos das mulheres – para ocultarem fragilmente o facto de que na realidade eles se opõem a direitos iguais para as mulheres. As mulheres também foram brutalmente atacadas.

Embora haja importantes diferenças entre a Irmandade (que diz defender um estado civil e não religioso) e os salafistas (fundamentalistas muçulmanos) que têm estado na linha da frente dos ataques, e embora as relações entre a Irmandade, os salafistas e os militares sejam complexas e impossíveis de prever, há um consenso entre muitas forças reaccionárias de que o novo estado deve ser islâmico, de uma forma ou de outra. Nesse caso, os coptas não vão obter direitos iguais aos dos muçulmanos (por exemplo, a lei proíbe os muçulmanos de se converterem ao cristianismo, mas não o contrário). De uma forma ou de outra, mais que nunca o Islão será uma importante fonte de legitimidade do estado e será promovido como a “cola” social do país.

Isto, claro, visa excluir e reprimir tudo o que seja “anti-islâmico”, incluindo o pensamento e as forças revolucionárias, e não apenas o cristianismo copta. Um dos mais proeminentes bloggers do Egipto salientou que com este ataque desenfreado contra uma minoria religiosa relativamente isolada, os militares estavam a mostrar o que poderiam fazer a qualquer ameaça séria ao seu regime. Mas isto está a ser feito em nome do Islão, como se isso representasse uma mudança, uma recuperação da dignidade das pessoas, mesmo de uma parte da “revolução” que os militares alegam representar. Não é abertamente apresentado como parte de um pacote económico, político e ideológico que representa a continuidade com a sociedade egípcia tal como ela era sob Mubarak e os seus precursores.

Apesar da queda de Mubarak e da intensa e vibrante vida política que a vitória permitiu às pessoas desfrutarem, o Egipto continua a ser um país cuja economia é estruturada sobretudo pelos interesses do capital norte-americano e europeu. O seu povo partilha uma identidade nacional comum e precisa que o seu país se liberte do domínio estrangeiro para que a sociedade seja transformada ao serviço dos seus interesses – para que se sintam realizados enquanto seres humanos e não apenas consolados pela religião – e para que desempenhem o seu papel na transformação do mundo inteiro.

É importante notar que os militares e os islâmicos encontraram pontos comuns com algumas (embora não todas) das forças supostamente laicas como o pró-ocidental Wafd. Algumas pessoas temem que as únicas alternativas sejam entre um regime militar pró-EUA e um regime islâmico. Está a tornar-se mais claro que o processo eleitoral, que supostamente estará no centro de todo o pensamento e actividade política durante os próximos anos, poderá resultar numa combinação de ambos.

Nenhuma das “escolhas” oficiais que o processo eleitoral está a oferecer pode satisfazer as aspirações que levaram um grande número de pessoas para as ruas. As máscaras estão a cair. Em Setembro, as forças armadas curvaram-se às ordens dos EUA de protegerem a embaixada israelita. Mesmo algumas pessoas que eram contra o ataque à embaixada ficaram muito contentes após uma multidão indignada ter obrigado o embaixador israelita a fugir. Agora, o desencadear da violência islâmica pelos militares de forma a unirem um sector do povo à sua volta é profundamente perturbador, mesmo para muitos dos que antes gritaram “O povo e o exército são um só!” Os próprios acontecimentos estão a empurrar muitas pessoas a tomarem posições que antes nunca tinham tido a intenção de tomar.

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