Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 12 de Junho de 2006, aworldtowinns.co.uk

De novo Guantânamo

Três prisioneiros de Guantânamo foram dados como mortos a 10 de Junho, alegadamente por suicídio. Depois da morte dele, as autoridades militares dos EUA disseram que já consideravam Mani Shaman Turki al-Habardi al-Utaybi, um cidadão da Arábia Saudita de 30 anos, “uma pessoa segura” e “pronto a ser libertado”. Mas mesmo assim mantiveram-no em isolamento durante mais de quatro anos. Mesmo depois dessa decisão, não foi libertado e não tinha a liberdade à vista.

Yasser Talal al-Zahrani, de 21 anos, também era da Arábia Saudita. Numa entrevista telefónica publicada pelo jornal Washington Post (11 de Junho), o pai de Zahrani disse que quando o seu filho foi capturado estava a trabalhar no Afeganistão com uma organização islâmica paquistanesa de caridade. Na altura tinha 17 anos. O pai não acreditou na história norte-americana de que o seu filho se tinha enforcado. Ele salientou que, numa carta recente do seu filho, o jovem parecia estar de bom espírito e optimista quanto a vir a ser libertado. “Nada sugeria que ele cometeria suicídio.” As autoridades militares dos EUA afirmaram que Zahrani tinha estado envolvido na revolta de Novembro de 2001 na prisão de Mazar-E-Sharif em que um agente da CIA foi morto, o que poderia explicar uma atitude vingativa para com ele.

Ali Abdullah Ahmed, do Iémen, tinha entre 28 e 33 anos, segundo diferentes fontes. As autoridades norte-americanas descreveram-no como “não complacente” e “hostil”. Supostamente essa foi a base do seu argumento de que ele era pelo menos, ao contrário dos outros, um “operacional da Al-Qaeda de médio ou alto nível”.

Nenhum destes três homens teve direito a advogado. Não tiveram nenhum contacto com outro ser humano que não os seus atormentadores durante quatro anos e meio. Todos foram descritos como grevistas da fome.

Os prisioneiros entraram em greve da fome por estas razões e pelo modo como eram tratados, como revelam os seguintes excertos de uma carta enviada por um prisioneiro do Kuwait à BBC através do seu advogado:

“Desisti. Estou desesperado. Já não me preocupo com mais nada. Só quero ser libertado. Não interessa a minha saúde. Nesta situação, a morte é melhor que estar vivo e ficar aqui sem esperança. A morte seria melhor se ajudasse a pôr fim a esta situação.”

“Eles disseram-me: se você continuar em greve da fome, será castigado. Primeiro, tiraram-me os meus artigos de primeira necessidade, um a um. Vocês sabem, a minha manta, a minha toalha, as minhas calças longas, depois os meus sapatos. Fui colocado em isolamento durante 10 dias. Depois, um oficial entrou e leu-me uma ordem do General Hood [comandante de Força Conjunta da Baía de Guantânamo].”

“Dizia que se me recusasse a comer, seria colocado na cadeira – as novas cadeiras metálicas especiais, que trouxeram para Guantânamo – que seria amarrado à cadeira em cima e em baixo muito firmemente e que me forçariam a ingerir alimentos líquidos usando um tubo mais espesso com uma extremidade metálica. O tubo já não seria mantido todo o tempo, mas seria introduzido à força e retirado a cada refeição e que isso ocorreria três vezes por dia. Eu disse-lhe: ‘Isso é tortura’.”

“Ele disse-me: ‘Chame-lhe o que quiser – é assim que vai ser: nós vamos acabar com esta greve da fome’.”

“Um tipo, um saudita, disse-me que tinha sido torturado uma vez na Arábia Saudita e que este tratamento da cadeira metálica era pior que qualquer tortura que alguma vez tinha sofrido ou que podia imaginar. Eles davam-lhes poções de propósito para os fazer defecar e urinar e vomitar sobre si próprios.”

“Eu ainda estaria em greve se tivesse alguma escolha. A morte é melhor que continuar a viver assim... Vocês têm que entender que o verdadeiro problema aqui não são as horríveis condições – a comida piolhenta, nenhum material de leitura, maus cuidados médicos, estar em isolamento. O verdadeiro problema é estar aqui sem razão, sem esperança.”

Os três homens que se diz terem cometido suicídio eram mantidos no Campo 1, que tem o mais alto grau de segurança, talvez em vingança por participarem na greve da fome em conjunto com cerca de outros 130 prisioneiros. Os guardas usam sistematicamente essas temíveis cadeiras com todos os grevistas da fome, quer as vidas deles estejam em perigo ou não.

Embora já tenham sido libertados mais de 300 prisioneiros de Guantânamo, sabe-se que os EUA ainda mantêm detidos pelo menos 460 prisioneiros. Alguns tinham apenas 14 anos de idade quando para aí foram levados no início de 2002, vestidos com roupa laranja e com os olhos e orelhas tapados. Até Maio, as autoridades recusaram-se a dizer exactamente quantos prisioneiros aí mantinham ou a identificá-los. Agora, foi divulgada uma lista de nomes, mas não há nenhuma forma de saber se está completa ou se há outros “detidos fantasma”, como o exército dos EUA chama a quem é mantido secretamente em prisões norte-americanas como Abu Ghraib no Iraque e noutros lugares do globo.

A Comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas, que quis fazer uma investigação, recusou uma autorização do Pentágono para visitar Guantânamo quando lhes foi dito que não poderiam falar com nenhum prisioneiro. O Comité Internacional da Cruz Vermelha, a única organização não ligada aos militares norte-americanos com acesso aos prisioneiros, não tem autorização para fazer o mais leve comentário público sobre o que os seus inspectores aí observaram. Mas, numa rara e talvez ímpar declaração pública, um porta-voz expressou uma “séria preocupação” com o destino da saúde e da vida dos prisioneiros. Um relatório do CICV, divulgado através de uma fuga de informação, escrito depois de uma visita de pessoal médico e de trabalhadores humanitários, ressaltava o tratamento humilhante, a prisão solitária, os extremos de temperatura, o uso de posições forçadas e os espancamentos como “uma forma de tortura”. As autoridades militares dos EUA têm defendido publicamente a sua utilização do “mergulho na água” em que os prisioneiros são repetidamente amarrados a uma tábua e mantidos com a cabeça debaixo de água quase até à morte.

O que tem sido revelado publicamente sobre o tratamento dos prisioneiros de Abu Ghraib também pode ser assumido razoavelmente como sendo verdade em Guantânamo, uma vez que o comandante de Guantânamo, o Major Geral Geoffrey Miller foi enviado para a prisão iraquiana para a “gitmizar” – torná-la como a sua contraparte nas Caraíbas – antes de terem sido tiradas as infames fotografias.

Saliente-se que as fotografias de Abu Ghraib recentemente divulgadas mostram mais que tortura. Elas mostram a morte – cadáveres e corpos rasgados. (Uma selecção delas pode ser vista em dahrjamailiraq.com.)

Mas mesmo que estes três homens não tenham sido mortos de facto pelos seus captores, eles foram assassinados de outra forma. Além da tortura, explicou um porta-voz do Centro Nova-Iorquino para os Direitos Constitucionais, o qual representa muitos dos prisioneiros, “é muito claro que qualquer ser humano que seja mantido em detenção indefinida durante mais de quatro anos, que não tenha direito a qualquer tipo de audiência, e cuja vida e destino estejam sujeitos a uma tal incerteza, inevitavelmente contemplará o suicídio e o facto de três deles acabarem por ter êxito não é nenhuma surpresa. Isto não foi um acto de guerra, foi uma consequência do tratamento desumano e imoral de seres humanos pelos Estados Unidos.”

Estas palavras foram uma resposta a um comunicado – tão abertamente desprezível que é quase inacreditável – do actual comandante de Guantânamo que tenta explicar essas três mortes: “Eles [os prisioneiros] não tinham nenhuma consideração pela vida humana, nem pela nossa nem pela deles. Acho que não foi um acto de desespero, mas um acto de guerra assimétrica levado a cabo contra nós.” É esta a América de Bush em suma: está tudo de pernas para o ar. Eles cometem crimes contra a humanidade e depois culpam as vítimas. Um grupo muçulmano da Grã-Bretanha disse que se tratava dum comunicado de que um guarda dum campo de concentração nazi se poderia orgulhar.

“Nenhuma consideração pela vida humana”? De facto, Guantânamo é um ícone da América de Bush e do seu violento desdém pela humanidade.

É um ícone de uma “pátria” norte-americana onde milhões de imigrantes são tratados mais como cavalos do que como seres humanos, onde a polícia desfruta da liberdade de abater jovens negros e onde o governo tentou esvaziar toda a cidade de Nova Orleães da sua população negra pobre. Onde muitos milhões de pessoas sentem que estão apanhadas numa casa de loucos governada por maníacos religiosos assassinos.

É icónico de um regime que proclama o seu direito a deter, encarcerar, humilhar, atormentar e torturar arbitrariamente quem quiser, onde quiser, nos EUA ou no estrangeiro, em violação das mais básicas regras proclamadas pela “democracia” ocidental há 800 anos.

É um ícone da “capitulação extraordinária”, a criação de uma “teia de aranha” de desaparecimentos, detenções secretas e transferências para centros de tortura em que a maioria das “democracias” ocidentais tem trabalhado lado a lado com o governo Bush.

Guantânamo é um ícone de uma potência imperialista que ocupou e tentou governar o Afeganistão e o Iraque através do terror. Cujos soldados executaram 24 civis a sangue frio em Haditha em Novembro passado e 11 civis, incluindo cinco crianças e quatro mulheres, em Ishaqi em Março. No segundo caso, o Pentágono decidiu recentemente que as suas tropas fizeram o que deviam ter feito. Os escalões mais altos do exército e da administração Bush aparentemente pensaram o mesmo sobre o massacre de Haditha, dado que souberam o que aconteceu e encobriram-no. Guantânamo é um ícone de uma sociedade cujos soldados atingiram e mataram duas mulheres, uma das quais quase a dar à luz, que se dirigiam para um hospital em Sammara em Abril.

Guantânamo é um ícone da única superpotência que resta no mundo e que actualmente ameaça usar armas nucleares contra o Irão – supostamente para parar a expansão das armas nucleares.

O comunicado do comandante sobre a morte dos três prisioneiros segue a mesma lógica que a administração Bush está a tentar impor à escala global.

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