Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 1 de Junho de 2009, aworldtowinns.co.uk
Crescer na China revolucionária
A seguinte entrevista a Bai Di, uma ex-Guarda Vermelha durante a Revolução Cultural chinesa, é reproduzida do n.º 161/2, de 12/19 de Abril de 2009, do jornal Revolution/Revolución, voz do Partido Comunista Revolucionário, EUA (revcom.us/a/161/Bai_Di_interview-en.html em inglês ou revcom.us/a/162/bai_di-es.html em castelhano). A entrevista foi feita em Fevereiro de 2009 por Li Onesto, correspondente do Revolution/Revolución. Bai é co-editora do livro Some of Us: Chinese Women Growing Up During the Mao Era [Algumas de Nós: Mulheres Chinesas que Cresceram na Era de Mao] e Directora de Estudos Chineses e Asiáticos na Drew University nos Estados Unidos.
Li Onesto: Uma jovem que a ouviu falar sobre a sua experiência de crescer na China socialista disse-me que antes disso não tinha ideia nenhuma sobre o que tinha sido a Revolução Cultural, incluindo o que era ser mulher durante essa época.
Bai Di: Na minha geração, a maioria das mulheres esperava conseguir realizar grandes coisas. Quando éramos jovens, quando éramos adolescentes, havia ideais revolucionários. Trabalhávamos com vista a alguns fins. Sentíamos que as nossas vidas estavam cheias de significado, não para nós próprias mas para todos aqueles objectivos mais vastos da sociedade. Era isso que nós discutíamos nessa altura. Éramos idealistas sobre o mundo que desejávamos. Tínhamos cerca de 15 anos quando fomos para o campo, por volta de 1972. Nessa altura, eu tinha terminado o ensino secundário. A escola tinha sido reaberta depois de ter estado fechada durante cerca de um ano em 1966. Passávamos a maior parte do tempo a estudar as obras do Presidente Mao e alguma matemática, química e física. Mais tarde, escavámos túneis no pátio da escola por causa da ameaça militar soviética. Estávamos a tentar proteger o nosso país.
A nossa turma tinha mais de mil estudantes e quatro de nós, todas raparigas da nossa escola secundária, reunimo-nos e decidimos escrever um épico da história dos Guardas Vermelhos. Nessa altura, éramos muito ambiciosas, agora que penso nisso. Houve dois rapazes que tentaram juntar-se a nós e nós entrevistámo-los. Lembro-me que cada um deles apresentou algo poético que tinha escrito e que nós as quatro olhámos para eles. Decidimos não os acolher nesse grupo de escrita porque eles não eram suficientemente bons. Limitámo-nos a rir dos seus textos porque não estavam à altura dos nossos padrões. Rejeitámo-los totalmente. Nós as quatro achávamos que éramos as melhores. Quisemos registar os nossos feitos ao tentarmos educar outras pessoas com os ensinamentos do Presidente Mao. Organizámos a primeira “Brigada de Propaganda do Pensamento do Presidente Mao” da escola.
LO: Quando a maioria das pessoas ouve a expressão “brigada de propaganda”, não sabe o que isso é e/ou vê isso como uma coisa negativa, como se fosse apenas dizer às pessoas o que devem pensar, o que é contra o pensamento crítico.
BD: As brigadas de propaganda Mao Tsétung do início da Revolução Cultural foram organizadas pelos Guardas Vermelhos revolucionários para que as pessoas com estudos, os estudantes, armados com todo o tipo de canções e poemas, pudessem ir aos bairros das cidades e mais tarde ao campo divulgarem o conhecimento aos que não tinham tantos estudos. Elas tentaram ensinar às pessoas ditas “com menos estudos” as directivas do partido e as ideias do Presidente Mao. A nossa brigada de propaganda ensinava às pessoas canções revolucionárias e lia-lhes os jornais com notícias da actualidade. Organizámos os estudantes da nossa escola para irem limpar os bairros e depois disso organizámos danças e canções e pedimos às pessoas que limpassem o bairro porque a saúde pública era muito importante. Sentíamos que isso fazia parte da construção de uma sociedade melhor.
LO: Como é que via isso em relação com os ideais que tinha?
BD: A ideia era que podíamos fazer mudanças, que havia todas essas oportunidades. Íamos mudar o mundo; íamos mudar a China. Era essa a missão da minha geração porque vivíamos numa era muito especial: os grandiosos anos 60 e 70. Chamávamos a essa época a alvorada do comunismo, era disso que se tratava. Estávamos a trabalhar para construirmos essa grande sociedade e achávamos que toda a gente nessa sociedade devia ter estudos. Dado que nós, estudantes, sabíamos ler e escrever, podíamos usar isso para tentar inspirar outras pessoas — ensiná-las a cantar e ensinar-lhes partes das obras de Mao. Era isso que as brigadas de propaganda faziam. Há algo que se perde na tradução desse conceito para inglês. Mesmo agora, em chinês, essa expressão ainda se refere algo que é considerado muito positivo. A expressão brigada de propaganda não é uma coisa negativa, era fazer com que toda a gente soubesse o que precisava de saber, as ideias do comité central do partido, o que eles estavam a fazer. Durante a Revolução Cultural, toda a gente precisava de saber isso. A China era nessa altura um país muito grande e a cada nível da organização do estado havia um departamento de propaganda, eles eram necessários a todos os níveis. Havia muito analfabetismo. E os ensinamentos do Presidente Mao não são todos muito fáceis e estão abertos a várias interpretações. Se se mudar uma linha, muda-se o seu significado. Não basta ensinar as palavras, temos que explicá-las.
Veja-se os textos que ficaram conhecidos como “os três artigos constantemente lidos” de Mao: “Servir o Povo”, “O Velho Tonto Que Removeu as Montanhas” e “Em Memória de Norman Bethune”. Veja-se a clássica história do velho tonto — porque é que temos que falar nela? Trata-se de uma antiga fábula chinesa que toda a gente conhece. Fala de um velho que levou os seus filhos a removerem duas grandes montanhas que estavam obstruir o seu caminho. As outras pessoas gozavam-no dizendo que era impossível escavar essas duas enormes montanhas. Mas o Velho Tonto respondeu: “Quando eu morrer, os meus filhos continuarão a escavar; quando eles morrerem, ficarão os meus netos e depois os filhos e netos deles, e por aí adiante até ao infinito”. Essa força de vontade impressionou tanto Deus que ele enviou dois anjos, que levaram as montanhas às costas. Mas o Presidente Mao alterou-a e disse que tinham sido as pessoas que trabalharam duramente que tinham removido as montanhas. Ele disse: neste momento, nós, os comunistas, o partido, somos como o Velho Tonto. Queremos tentar remover essas três montanhas — o imperialismo, o feudalismo e o capitalismo burocrata — mas não o podemos fazer. Por isso, temos que mobilizar o povo chinês; ele é Deus. Só ele pode remover as três montanhas que nos oprimem. E nós temos que confiar no povo. Percebem isso? Temos que as remover, por isso temos que perceber o que estamos a fazer. Temos que explicar isso ao povo, porque isso é muito importante. Temos que continuar a fazer alguma coisa e temos que continuar a fazer com que o povo saiba o que estamos a fazer. Temos que educar politicamente o povo — esse é o nosso trabalho. Quando olho para trás — essa era a nossa única missão. Tivemos muita sorte porque pudemos aprender a escrever e a perceber coisas que outros não percebiam, não viam a ligação. Era isso que nós estávamos a fazer e, quando penso nisso, tínhamos muita confiança.
LO: Que efeito teve a Revolução Cultural na situação da mulher?
BD: Um exemplo é o que lhe disse antes, as jovens mudaram os seus nomes. No início da Revolução Cultural em 1966, o Presidente Mao saudou os Guardas Vermelhos em enormes manifestações na Praça Tiananmen, acho que cerca de oito vezes. Numa dessas manifestações, uma rapariga foi à Praça Tiananmen e colocou uma fita de Guarda Vermelho à volta do braço de Mao. Ele perguntou-lhe qual era o nome dela. Ela disse-lhe: Song Binbin. Mao disse-lhe: isso é muito confuciano, Binbin quer dizer prudência e modéstia. E o Presidente Mao disse-lhe: porquê ser prudente, porquê ser modesta? Você devia ser Aiwu; você devia amar essa militância das mulheres. Por isso, ela mudou o nome de Binbin para Aiwu, que significa amar a militância, lutar. Aí teve início uma tendência: as raparigas que tinham nomes femininos como Flor ou Jade ou outros mudaram os seus nomes.
Na cultura chinesa, os nossos nomes têm um significado. O meu nome nunca teve uma conotação de género e isso deve-se aos meus pais. Bai é o meu nome de família; significa cipreste, a árvore. Para começar, é um grande apelido. Eu fui a primogénita e os meus pais eram muito progressistas nessa altura, os anos 50. Eles foram ao dicionário buscar um nome. O meu pai cresceu no sistema comunista e esteve na primeira turma da Escola de Línguas Estrangeiras criada pelo Partido Comunista em 1946, quando o departamento de russo dessa escola se mudou de Yenan [o quartel-general revolucionário] para Harbin. Ele estava numa turma com filhos de muitos comunistas famosos, entre os quais o segundo filho do Presidente Mao. Ele e a minha mãe eram muito revolucionários. Por isso foram ao dicionário e encontraram “Di”, que quer dizer madeira, o que não é muito pretensioso, mas é muito capaz de perdurar. E parece que eu estive à altura do nome. Quando as raparigas começaram a mudar os seus nomes, desses nomes femininos para algo de revolucionário, eu não tive que mudar o meu nome porque ele já significava independência. As raparigas tentaram mudar os seus nomes femininos. Se não fossem revolucionários ou se fossem demasiado femininos, mudavam-nos para algo de combativo e vigoroso como os nomes dos homens. Posso indicar-lhe três situações após a restauração do capitalismo em que mulheres voltaram a mudar os seus nomes. Uma das minhas amigas tinha um nome muito feminino antes da Revolução Cultural, pelo que ela o mudou para Wenge, que literariamente significa “revolução cultural”. Mas tive notícias dela recentemente e ela tinha voltado ao nome antigo. Tenho uma outra amiga que trabalha numa editora em Pequim e cujo nome era “Vermelho”. Ela mudou-o novamente para “Pequena Flor”.
LO: Você tem escrito muito sobre o papel das mulheres na China revolucionária. Pode comparar o estatuto das mulheres antes de 1949, depois de 1949 até à Revolução Cultural, de seguida durante a Revolução Cultural e depois a situação actual das mulheres no capitalismo?
BD: Eu gosto sempre de olhar para as diferenças entre as três gerações de mulheres da minha família como um indicador de como a China mudou com o Partido Comunista. As minhas duas avós nasceram no virar do século XX e ambas casaram cedo, uma aos 14, a outra aos 15 anos. Ambas andaram com os pés atados e cada uma delas deu à luz 14 filhos. Tiveram casamentos arranjados. Ambas eram analfabetas. Não fizeram outra coisa toda a vida senão dar à luz e cuidar dos filhos, e viram alguns dos seus recém-nascidos morrerem indefesos. A vida da minha mãe foi muito diferente. Nasceu nos anos 30, pelo que em 1949, quando foi fundada a República Popular da China, andava na escola secundária e no início dos anos 50 entrou na universidade para estudar russo, sonhando vir a ser diplomata. Os meus pais foram ambos da primeira geração com estudos universitários nas respectivas famílias. A minha mãe foi tradutora e investigadora de literatura russa, antes de se reformar. Penso depois na minha geração, eu sou uma professora universitária com um doutoramento. Tenho viajado por todo o mundo, ensinando e escrevendo. Em comparação com as minhas avós e a minha mãe, sou mais ambiciosa, mais idealista e mais confiante. Estou grata por ter crescido num momento extremamente especial da história chinesa. A ideologia dominante era a de que as mulheres levam aos ombros metade do céu e devem conquistá-lo; o que os homens podem fazer, as mulheres podem fazer. Estas expressões podem soar agora como frases vazias; mas eu vivi esse período acreditando realmente em mim, na minha capacidade de produzir mudanças na minha própria vida e na vida das outras pessoas. E depois penso na quarta geração da minha família. Não tenho nenhuma filha, pelo que usarei a minha sobrinha como exemplo. Ela tem agora cerca de 26 anos, um curso universitário e um emprego muito bem remunerado na China. Ao que parece, tudo o que lhe interessa são malas e roupas de marca. Ela gosta de falar sobre quem tem dinheiro, quem tem malas de marca, que tipo de maridos há. E eu olho para ela agora e vejo que há uma outra geração na actual China, chamada “pós-anos 80”; uma geração que põe a maior parte da sua energia nessa cultura de consumo. Quando eu era jovem, o ideal social era fazer algo de bom pelas outras pessoas, trabalhar para transformar o mundo num sistema melhor. Estávamos dispostas a sacrifícios. E todas nós acreditávamos numa distribuição justa e igual da riqueza social. Mas, para os jovens que crescem na China agora, é o eu, eu, eu. E toda a cultura reforça isso. E também o papel da mulher hoje, pode-se vê-lo entranhado, basicamente que devemos ser boas esposas e neste momento a cultura popular chinesa está cheia deste tipo de discussões. Na CCTV [a televisão chinesa], nos programas de mulheres, as apresentadoras e as convidadas centram-se no tipo de marido que gostariam de ter; em como serem mais femininas para serem mais atraentes. As mulheres famosas de todas as áreas da sociedade são convidadas a falar sobre isso. Você consegue imaginar um programa em que homens famosos falem sobre como serem bons maridos? Nunca se faz esse tipo de pergunta aos homens.
LO: Uma das coisas que aconteceu durante a Revolução Cultural foi a refutação do pensamento confuciano e a denúncia de como ele é opressivo, sobretudo para a mulher, um pensamento feudal e patriarcal. Pode falar-nos sobre isso e sobre como compara isso com a situação actual?
BD: Esse tipo de crítica ao feudalismo já vinha do Movimento 4 de Maio, no início do século XX. Mas a verdadeira reforma legal teve início nos anos 30 nas zonas vermelhas soviéticas controladas pelo Partido Comunista da China. Após a fundação da República Popular da China, a primeira lei que o novo governo aprovou não foi a Constituição, a Constituição só foi aprovada em 1954. A primeira lei aprovada pelo governo comunista em 1950 foi a Lei do Casamento — pela primeira vez, aboliu o sistema de concubinagem, aboliu os casamentos forçados, dizia que homens e mulheres deviam ser companheiros no casamento e que as mulheres deviam ter direitos iguais de herança e divórcio, proibia a poligamia, as noivas-crianças e também o conceito de “filhos ilegítimos”. Isso foi um grande momento histórico. Pense em como o governo via o papel das questões de género na mudança da mentalidade e da vida das pessoas.
Para se construir um mundo novo, a mulher tem que ser libertada. Como disse Marx, para haver liberdade, temos que libertar toda a gente. E se a mulher não for libertada, não se pode dizer que o país foi libertado. Isto mostra quão progressista era o Partido Comunista da China. Portanto, a primeira lei aprovada foi a Lei do Casamento e a segunda lei aprovada um mês depois foi a lei da reforma agrária. Assim, puderam ver-se em 1950, o ano a seguir à fundação da República Popular da China, duas leis que representavam basicamente o foco do programa do novo governo. Em primeiro lugar, a mudança da superstrutura — porque as famílias estavam tão entranhadas com a hierarquia familiar confuciana, isso estava tão entranhado na cultura chinesa que tinha de se mudar isso. Portanto, eu penso que isso foi um símbolo da mudança de cultura.
Em segundo lugar, a mudança da infra-estrutura da base económica, ou seja os camponeses pobres e a sua propriedade da terra. Não se podia mudar só a estrutura económica, tinha de se mudar a superstrutura, incluindo as ideias das pessoas. E as leis são parte da superstrutura. Portanto, isso foi a grande ideia de Mao, mudar ambos os lados, em vez de mudar apenas a economia. Por outro lado, os que, como Teng Siaoping, quiseram restaurar o capitalismo disseram que mudando só a economia, tudo o resto mudaria. Mas, logo no início, o Partido Comunista da China viu que tinha de abolir as coisas velhas que eram opressoras. Há uma dialéctica que se pode ver em todas as coisas. Tal como na questão da Lei do Casamento. Houve uma grande resistência desde o início. Porque não basta haver uma lei para que toda a gente a aplique. Continuou a haver muitas questões das mulheres durante os 17 anos após 1949, desde o início do novo governo socialista ao início da Revolução Cultural em 1966.
Quando a nova China foi fundada em 1949, o novo governo enfrentou muitos desafios: prostituição, concubinagem, problemas de droga. E, milagrosamente, passados dois ou três anos, todas as prostitutas tinham sido reabilitadas e todos os viciados em droga tinham sido tratados. A minha avó contou-me que havia um lugar em Harbin onde havia uma zona de prostituição que depois se tornou numa zona residencial normal. Infelizmente, essa zona voltou agora à sua “tradição” de prostituição.
LO: Muitas coisas mudaram durante os primeiros 17 anos, mas o que é que fez que fosse necessário ir mais longe? Que problemas tentou resolver a Revolução Cultural, incluindo em torno da questão das mulheres?
BD: Havia um grupo elitista que tinha acabado de emergir dentro do Partido e do governo. Durante a Revolução Cultural, eles foram chamados seguidores da via capitalista e tornaram-se no alvo da revolução. Mas eu acho que “seguidores da via capitalista” pode ser uma designação incorrecta. Eram pessoas que estavam a tentar que regressássemos à velha hierarquia da sociedade. Também estava a emergir a ideia social de que as pessoas que tinham estudos deviam ficar nas cidades e elas depois olhavam de cima para baixo para os seus pais nas zonas rurais. Isso era um dos sintomas do que esses 17 anos e depois a Revolução Cultural tentaram fazer desaparecer.
Os camponeses diziam dos seus filhos que tinham tido a sorte de entrar na universidade nas cidades: no primeiro ano, eles são campónios rurais, no segundo ano, aproximam-se dos outros, no terceiro ano, abandonam os pais nas zonas rurais. Isso correspondia a uma mudança para os filhos dos camponeses enviados para as cidades. Usou-se isso para que se falasse de problemas e questões sociais mais profundos. O Partido Comunista também provinha de uma base camponesa. Representava o interesse dos camponeses. O povo mandou-os governar o país, por isso eles vão para Pequim, certo? Inicialmente, procedem bem. Mantêm a sua cor de base, os seus valores e a sua missão. Mas, passado algum tempo, no segundo período, aproximam-se das pessoas que já lá estão, tentam “integrar-se”, esqueceram a razão por que para lá tinham ido.
LO: Você está a dizer que era uma analogia com os que supostamente estavam a servir o povo mas que depois acabavam por fazer outra coisa. E a razão por que Mao e outros começaram a chamá-los de seguidores da via capitalista foi porque havia duas vias que a China podia seguir: uma para o socialismo, outra para o capitalismo. E havia os que, como Teng Siaoping, diziam que a China devia ser capitalista e foi por isso que eles foram chamados de “seguidores da via capitalista”.
BD: Mas eu não acho que essas pessoas quisessem regressar ao capitalismo, elas estavam a tentar levar as pessoas de volta à velha tradição [feudal] e a tentar impor o regresso ao feudalismo. Antes, na China não tinha havido verdadeiramente capitalismo. Mas Teng Siaoping era realmente um seguidor da via capitalista, porque quis copiar o sistema capitalista. Liu Chao-chi também estava a tentar copiar o sistema capitalista.
LO: E quanto ao papel das óperas-modelo, o papel das mulheres, a importância da superstrutura — a superstrutura confuciana tinha uma certa imagem das mulheres — as múmias, as belezas, etc., no palco.
BD: Chiang Ching fez um discurso em 1965 onde disse que tínhamos que reformar a ópera e a literatura; e isso assinalou o início oficial da Revolução Cultural.
LO: Porque é que o que eles fizeram com as óperas-modelo foi tão revolucionário?
BD: Esse é o tema de toda a minha investigação. Sinto que antes da Revolução Cultural, embora o Partido Comunista da China fosse politicamente muito agressivo, culturalmente o Partido ainda tinha uma espécie de tendência conservadora. A Lei do Casamento foi aprovada e foi um grande momento na história da China, algo muito progressista. Mas, ao mesmo tempo, culturalmente tinha algo de muito tradicional — porquê uma lei do casamento, isso era continuar a pensar que as mulheres precisam de se casar. É esse o meu argumento. O que Chiang Ching fez foi mais radical que isso. Estou a escrever um artigo sobre isso, que irei apresentar este Verão, sobre a ópera e a literatura durante a Revolução Cultural. O que eu quero dizer é que em comparação com as obras antigas, nas óperas-modelo e nos bailados os papéis do género foram alterados.
Temos que destacar os teatros-modelo — aí a revolução ocorreu como devia ter ocorrido. Não podemos idealizar a Revolução Cultural, mas ela levantou a questão do facto de haver 600 milhões de pessoas que ainda traziam consigo muita bagagem velha. O Presidente Mao disse que não se pode fazer uma revolução numa geração. Tem que haver uma segunda e uma terceira gerações; ainda há bagagem que as pessoas trazem consigo. Neste momento é muito difícil falar sobre isso, as pessoas que estudam a Revolução Cultural dizem que as óperas-modelo criaram todas essas falsas imagens e estereótipos. Sim, e depois? Qualquer obra artística cria e promove certas imagens e estereótipos.
LO: E eles são usados para promover certas ideias...
BD: Exactamente. O que é que há de errado com isso, em comparação com a promoção de alguns outros tipos de ideais? Se se vir o Lago dos Cisnes, há lá uma certa visão da beleza da mulher. Então o que é que é o Destacamento Vermelho Feminino, em que se usa a mesma forma de bailado, mas uma imagem diferente da mulher? Há essa comparação, esse contraste. Chiang Ching usou a Ópera de Pequim — que é muito, muito abstracta —, ela usou essa forma de expressão para transmitir uma certa mensagem, uma certa imagem. As pessoas dizem: oh, essas mulheres não são reais — elas não têm família. Mas é essa a questão. Que a mulher que é retratada não carregue o peso da família. Por isso, no sentido cultural, Chiang Ching era mais avançada. E vemos as coisas agora na China capitalista. A família é totalmente disruptiva para a mulher. E, em termos do papel global da mulher, da sua própria libertação e do seu papel social — ela tem que sair da família. Sobretudo na cultura chinesa, a palavra família é uma palavra com uma grande carga, um conceito carregado, é uma função e uma obrigação.
LO: Isso é verdade também na cultura norte-americana — há relações desiguais, obrigações, há o sistema patriarcal...
BD: Exactamente. As mulheres nunca podem ser iguais numa estrutura familiar. Está aí exactamente o feminismo muito radical de Chiang Ching. Por isso, as mulheres só podem ser revolucionárias e só podem ser grandes líderes quando se libertarem de serem mães, de serem esposas. Essas são as imagens sobre as quais se ergueu o teatro-modelo durante a Revolução Cultural.
LO: Pode falar-nos mais sobre o que a Revolução Cultural conseguiu e sobre o significado de se crescer numa sociedade socialista?
BD: Eu cresci aí e, para mim, eu tinha sempre um objectivo. Era esse o significado da educação. E não tínhamos de nos preocuparmos com coisas como o tipo de crise financeira que o capitalismo periodicamente sempre terá. Nunca tivemos muita coisa — dois conjuntos de roupas — mas nunca sentimos que devíamos ter mais. Não se tem esse tipo de desejo louco de tudo, como a necessidade de se fazer compras a toda a hora. Eu acho que o capitalismo é muito bom a criar um vazio na psique das pessoas. Ensina-nos que a única forma de nos sentirmos bem é querendo mais. É tão consumidor. Durante a minha infância, não perdia muito tempo com bens materiais. Por isso, tínhamos energia para fazermos outras coisas pelo bem comum. Estudávamos todo o tipo de temas e pensávamos que a nossa presença era uma grande parte do futuro. Sim, éramos muito orientados para o futuro e o nosso foco também era mais vasto que apenas a China. Tinha a ver com todo o género humano. Era isso que nos inspirava. É isso que acho que a educação tem que ser.
Algumas pessoas acreditam no individualismo. Mas se pensarmos que somos os mais importantes, então isso é realmente uma vida enfadonha, porque a nossa existência é irrelevante para os outros; é isso o que eu acho. Não se consegue sobreviver muito tempo. Temos de nos situarmos na história humana. Então, a nossa vida, a nossa existência passará a ter algum significado. Foi isso que o Presidente Mao disse. Na sua homenagem ao médico Norman Bethune, ele disse que toda a gente tem que morrer. Mas o significado de cada morte é diferente. Se alguém tem uma morte merecedora, a sua morte é tão pesada quanto o Monte Tai. Há outras mortes que são tão leves quanto uma pena. E como Bethune pôs a sua vida ao serviço desta causa comunista, todos nós nos lembramos dele — a morte dele foi pesada. Nós éramos todos treinados desta forma. Sentíamos que fazíamos parte de algo. E isso dá mais significado à nossa vida e morte. Agora que penso nisso, nós éramos muito profundos durante a adolescência. Nós já nos debatíamos com as questões existenciais de toda a humanidade: a vida e a morte.
Eu nunca tinha vivido numa sociedade capitalista, pelo que não sabia compará-la com o socialismo. Mas ao olhar para as coisas agora, tanto na China como nos EUA, sinto que, nessa altura, havia um optimismo que estava sempre no ar, nós éramos sempre optimistas. As pessoas não reclamavam. Agora toda a gente reclama apesar de já ter tanto. No capitalismo há todo este desejo por todo o tipo de coisas. Agora, quando regresso à China, toda a gente reclama e é apenas uma questão de dinheiro, dinheiro, dinheiro. Mas, no passado, no socialismo, o objectivo da vida não era o dinheiro. Como disse sucintamente Lei Feng: Não podemos viver sem comida, mas as nossas vidas não são para a comida. São para fazermos uma sociedade melhor. Isto resume muito bem esse espírito. Lei Feng era um soldado comum do Exército Popular de Libertação e morreu no seu posto. Ele passou os seus curtos 22 anos de vida a ajudar as outras pessoas. E, em 1964, o Presidente Mao chamou toda a nação a “Aprender com o Camarada Lei Feng”.
Nota dos Tradutores — Alguns dos nomes chineses, escritos no sistema Pinyin no texto original, foram convertidos para a sua forma mais comum em Portugal, a qual também permite uma pronúncia mais correcta aos falantes de português. O Pinyin, criado para simplificar a escrita do complexo sistema de caracteres chineses, foi adoptado na China Popular em 1958 para facilitar o ensino da língua chinesa e ajudou a reduzir drasticamente o elevado analfabetismo que a revolução chinesa herdou dos tempos do capitalismo. Apesar da sua utilidade, de ser hoje o sistema oficial de grafia romanizada na China e de ter vindo a ser adoptado em todo o mundo, incluindo nas Nações Unidas, o Pinyin induz em erro quem não conheça a sua pronúncia correcta. Os nomes convertidos foram Pequim (Beijing), Mao Tsétung (Mao Zedong), Chiang Ching (Jiang Qing), Teng Siaoping (Deng Xiaoping) e Liu Chao-chi (Liu Shao Qi).