Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 11 de Dezembro de 2006, aworldtowinns.co.uk
Chile: Pinochet escapa à justiça
O antigo ditador chileno Augusto Pinochet, uma das figuras mais odiadas do mundo, escapou à justiça ao morrer a 10 de Dezembro. Um católico fanático que acreditava desfrutar da protecção pessoal de deus e da Virgem Maria contra os seus inimigos, ele pode ter acreditado que estava a deixar este mundo a caminho do Céu. Mas, independentemente do que ele pensava sobre para onde se dirigia, planeava certamente ter um lugar ao lado do seu amigo e protector de toda a vida, Henry Kissinger, o Secretário de Estado norte-americano que ajudou Pinochet a chegar ao poder em 1973 e que tem sido desde então um conselheiro de confiança dos presidentes dos EUA, incluindo George W. Bush.
O outro nome a que Pinochet estará sempre associado é o de Salvador Allende, o presidente do Chile que o General Pinochet derrubou. Allende, que se dizia socialista e encabeçou a coligação Unidade Popular de partidos parlamentares de esquerda, foi eleito presidente do Chile em 1970. Allende era um reformista. As principais medidas que adoptou, nomeadamente a reforma agrária e a nacionalização das minas de cobre do Chile, foram apoiadas por um importante sector da classe dominante chilena e violentamente opostas por outros sectores. O regime de Pinochet, ao mesmo tempo que era abertamente assassino e fascista na esfera política, não destruiu a maior parte dessas medidas. Em consequência, o desenvolvimento da agricultura do Chile, por exemplo, ligou o país mais fortemente que nunca às economias da América do Norte e da Europa e o país no seu todo tornou-se mais lucrativo para o investimento capitalista monopolista estrangeiro, directo e indirecto.
Mas os EUA tinham decidido matar Allende, mesmo antes de ele ter tomado posse, por duas razões relacionadas: primeiro, porque o seu regime, muitas vezes contra a sua vontade, estava associado a uma intensificação da luta dos trabalhadores do Chile, de parte da sua classe média e sobretudo dos camponeses que queriam e esperavam uma mudança mais radical, e ao descrédito das forças políticas chilenas em que os EUA tradicionalmente confiavam. No contexto de uma vaga mundial de lutas contra o domínio dos EUA e de outros imperialistas, o governo norte-americano achou essa situação muito perigosa. Segundo, porque Allende era amigo de Cuba e o seu governo dependia em grande medida do Partido Comunista pró-soviético. Esse partido tentou usar o movimento de massas para forçar os EUA a permitir-lhe partilhar o poder, em linha com a política então seguida pela União Soviética, a qual, tendo regressado internamente ao capitalismo, tentava nessa altura satisfazer os seus interesses imperialistas em concertação com os EUA, e não através de um confronto directo. A ideia de permitir que a influência soviética alastrasse numa região que os EUA sempre consideraram ser o seu “jardim das traseiras” era intolerável para os governantes norte-americanos.
Um relatório de 1975, escrito por um Comité do Congresso norte-americano encabeçado pelo Senador Frank Church, documentou muitos dos passos que os EUA deram para fazerem parar Allende. (Desde então, o director da CIA George Trent tentou reclassificar os documentos em que o relatório se baseou.) Outros relatos preencheram alguns espaços deixados em branco pelos congressistas norte-americanos.
O facto de Allende ter sido eleito em vez de ter chegado ao poder através de uma revolução não significava que o governo dos EUA sentisse que tinha que o aceitar. Kissinger disse: “Não vejo porque é que precisamos de ficar a assistir a um país a tornar-se comunista devido à irresponsabilidade do seu próprio povo. As questões envolvidas são demasiado importantes para deixarmos os eleitores chilenos decidirem por si próprios.”
Segundo um relatório da Igreja, logo após Allende ter sido eleito, mas ainda antes de ter tomado posse, o presidente norte-americano Richard Nixon reuniu-se com Kissinger, com o director da CIA e com o Procurador-Geral e deu instruções para que Allende fosse parado através de um golpe militar. Antes de Allende tomar posse, a CIA preparou uma conspiração que envolveu raptar o chefe das forças armadas chilenas que se tinha oposto ao golpe. Embora o General René Schneider tenha sido morto, a conspiração falhou.
Então, os EUA embarcaram numa táctica ligeiramente mais geral e de longo prazo. O relatório da Igreja descreveu isso como “uma entretela de manobras diplomáticas, encobertas, militares e económicas. A pressão económica exercida pelos Estados Unidos constituiu uma importante parte dessa mistura. É impossível perceber o efeito das actividades encobertas sem se conhecer a pressão económica que as acompanharam.”
O Presidente Nixon deu instruções à CIA para “fazer a economia chilena gritar”. Durante os três anos seguintes, a pressão económica dos EUA, combinada com uma sabotagem económica deliberada dentro do Chile, empurrou Allende para um canto. Deram a entender ao povo chileno que poderia ter o seu governo ou a carne, mas não ambos. Muita gente da classe média foi levada a acreditar que o seu único futuro era alinhar com os EUA. A CIA deu uma grande atenção à mobilização e ao financiamento de um movimento anti-Allende de pequenos negócios como as empresas de transporte em camiões. Os EUA financiaram os partidos de direita e os seus grupos armados. Além disso, financiaram a comunicação social anti-Allende para criar uma atmosfera de crise política em torno dos problemas económicos do país. Embora o apoio a Allende tenha crescido face a isso, como indicava o aumento do seu sucesso eleitoral, incluindo entre algumas partes da classe média, bem como muito claramente entre as classes mais baixas, a oposição anti-Allende endurecia cada vez mais e as pessoas no meio (bem como um grande número de pessoas em geral) ficaram cada vez mais assustadas, independentemente de onde estivessem os seus sentimentos. A lealdade emocional de muita gente não estava à altura do poder do dólar e da campanha económica, política e social montada pelos seus opositores. O voto eleitoral não tinha trazido nenhum poder político real a Allende.
Allende percebeu desde o início que os limites ao que poderia fazer seriam fixados pelas forças armadas do Chile. Embora os militares do país (incluindo a polícia) sempre tenham servido os interesses dos proprietários de terras e dos grandes capitalistas, como o mostraram vezes sem conta atacando greves e lançando o terror contra os movimentos camponeses e através da repressão política, o Chile não sofria nenhum golpe há várias gerações. Allende acreditou que as forças armadas permaneceriam leais à mesma constituição que ele estava a tentar cumprir. Em Agosto de 1973, ele nomeou o principal general como seu Ministro do Interior, esperando que o seu governo fosse visto como continuador da república constitucional e da regra da lei contra as forças abertamente fascistas. Quando essa manobra falhou, Allende virou-se para Pinochet e, com o mesmo objectivo em mente, nomeou-o novo comandante-chefe das forças armadas.
A 11 de Setembro de 1973, Pinochet liderou um golpe militar. Aviões militares e tanques foram enviados para forçar Allende a deixar o palácio presidencial. Aparentemente, Allende disparou contra si próprio em vez de se render. A junta militar do Chile tornou-se um símbolo global de prisões, tortura e assassinatos em massa. Em 1975, o regime lançou a Operação Condor, uma “guerra suja” internacional que matou dezenas de milhares de supostos opositores aos regimes patrocinados pelos EUA no Chile, na Argentina, no Brasil, na Bolívia, no Paraguai e no Uruguai. O líder desse esforço, o general chileno Manuel Contreras, que também era chefe de segurança e braço direito de Pinochet, esteve na folha de salários da CIA durante esses anos.
Quando ele e Pinochet se encontraram em 1976 em Santiago do Chile, Kissinger disse-lhe: “Como sabe, nós nos Estados Unidos simpatizamos com o que vocês estão a tentar fazer aqui.” No final da reunião, Kissinger disse: “Eu quero ver as nossas relações e a nossa amizade melhorarem. Nós queremos ajudar-vos, não criarmos-vos dificuldades. Vocês prestaram um grande serviço ao Ocidente ao derrubarem Allende. Senão, o Chile teria seguido o caminho de Cuba.”
Com a ajuda dos EUA, Pinochet permaneceu chefe de estado do Chile até 1990. Manteve a posição de chefe das forças armadas durante mais oito anos. Isso deu-lhe um implícito poder de veto sobre o regresso do país à democracia constitucional e ao regime eleitoral. Depois, foi nomeado Senador Vitalício. Isso tornou-o imune à perseguição judicial e, sobretudo, protegeu o papel das forças armadas como instituição que responde apenas perante deus, o capital internacional e os capitalistas do Chile que são os seus representantes locais. Até à sua morte, Pinochet afastou com sucesso todas as tentativas para o levar a julgamento pelos seus crimes.
Entre mortos, torturados, encarcerados e exilados, Pinochet trouxe sofrimento a quase todas as famílias chilenas. As feridas do seu regime, que lançou as bases da actual prosperidade de alguns chilenos, ainda são uma importante característica da paisagem social e política do país. Isto não é apenas uma questão histórica – as forças armadas ainda são o árbitro final da política no Chile, tal como o são em todos os países do mundo de hoje, sem excepção, sejam democracias parlamentares ou ditaduras abertas. Acontece apenas que o Chile é um país cuja história particular recente esfregou nos narizes das pessoas um facto que a maioria das pessoas hoje em dia preferiria não ter que enfrentar directamente.
A vida de Pinochet e mesmo os acontecimentos que rodearam a sua morte são um testemunho dessa verdade. Ele morreu no seio das forças armadas e não numa prisão. As pessoas no Chile não puderam deixar de ficar surpreendidas pelo facto de que, quando ele morreu, foi o chefe do exército que informou a Presidente Michelle Bachelet e outros responsáveis governamentais, e não o contrário. Apesar de um generalizado e profundo ódio a Pinochet, a mesma comunicação social que os EUA tinham financiado antes de ele ter tomado o poder exigiu que lhe fosse dado um funeral oficial como antigo chefe de estado. Bachelet recusou. Ela e a sua mãe tinham sido torturadas pela junta de Pinochet, bem como o seu pai, que era general da força aérea e morreu na prisão. Apesar disso, o direitista El Mercurio ficou contente por poder mostrar que esse gesto representava uma hipocrisia da parte dela. O jornal escreveu que foi Pinochet que trouxe de volta os partidos parlamentares do país: “Eles receberam o seu mandato directamente das mãos dele.”
Como se veio a perceber, Bachelet não ousou ir muito longe. Ela concordou em dar a Pinochet um funeral com honras completas como antigo chefe das forças armadas. Ela própria uma antiga Ministra da Defesa (que fez os seus estudos militares com os exércitos chileno e norte-americano), enviou o seu Ministro da Defesa representar o seu governo na cerimónia e endossou um período oficial de luto nas forças armadas. Não foi um mau bota-fora para um déspota cujo nome se tornou sinónimo de assassinatos em massa e um opositor a tudo o que a democracia constitucional chilena supostamente defende. Alguns apoiantes de Pinochet voltaram-se contra o general quando recentemente veio à luz do dia que ele usou a sua posição para se enriquecer a si próprio e à sua família e que esvaziou os cofres do país de dez toneladas de ouro, para o caso de o seu regime sofrer uma inversão de sorte. Mas o exército pôs a política à frente e cerrou fileiras em torno do seu chefe. Milhares de jovens oficiais e outros militares desfilaram ao lado do seu caixão para lhe dar uma saudação fascista final.
Sim, o Chile de hoje, tal como o de ontem, é um país sob “a regra da lei” – das leis do capital financeiro internacional impostas, se necessário, pelas forças armadas que gozam do monopólio da violência legítima e que foram criadas, treinadas, acarinhadas e constantemente actualizadas para cumprirem as ordens do capital.
Se há alguma coisa boa que possa ser extraída da vida de Pinochet, é esta: ela ilustra muito bem todo o sanguinarismo do sistema imperialista mundial e dos seus governantes e os perigos de quaisquer ilusões sobre o que é preciso fazer para nos libertarmos deles.