Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 29 de Março de 2004, aworldtowinns.co.uk

As revelações de Clarke: Como os EUA prepararam a opinião pública para a guerra no Iraque

O Presidente Bush e o seu círculo mais chegado não mostraram nenhum interesse na prevenção de um possível ataque da Al-Qaeda antes do 11 de Setembro de 2001. Assim que houve o ataque ao World Trade Center, agarraram-no como pretexto para uma invasão norte-americana do Iraque. Estes são os dois principais pontos das afirmações de Richard Clarke, responsável pelo contraterrorismo de Bush e de dois anteriores presidentes dos EUA, confirmado o que muitos milhões de pessoas em todo o mundo já suspeitavam há muito tempo.

O testemunho de Clarke perante um comité do Congresso foi amplamente coberto pela comunicação social dos EUA e do mundo. O que não foi amplamente analisado e merece alguma atenção é a ligação política entre esses dois pontos.

Bush assumiu a presidência determinado a invadir o Iraque. (Isto está amplamente documentado, mais recentemente por outro ex-funcionário de Bush agora desiludido, o Secretário do Tesouro Paul O'Neill.) Documentos de fundo publicados em 1996 e 1997 por um grupo chamado Projecto para o Novo Século Americano pediam “a retirada do poder de Saddam Hussein e do seu regime” como um passo-chave de uma ofensiva mundial para alcançar exactamente aquilo que o seu título abertamente indicava – fazer do século XXI um século de incontestável domínio global norte-americano. Os signatários desses documentos assemelham-se a uma lista do grupo exclusivo que entrou para a Casa Branca com Bush em Janeiro de 2001: o vice-presidente Cheney, o Secretário da Defesa Rumsfeld e o Secretário Adjunto da Defesa e ideólogo-chefe Wolfowitz. Clarke não menciona nada disto, mas ter isto em conta ajuda a compreender o seu relato do que ele considera o comportamento irracional da administração Bush.

Clarke disse a semana passada que apesar dos seus esforços para chamar a atenção para o que acreditava ser a ameaça de um ataque da Al-Qaeda, logo desde o momento em que os conselheiros de Bush se instalaram, se recusaram a considerar essa possibilidade até uma semana antes do World Trade Center ter sido atingido. Alguns dos principais comentadores políticos dos EUA e da Grã-Bretanha concluíram que a explicação para a sua teimosa indiferença residia na sua obsessão em se livrarem de Saddam. Se esta foi ou não foi a única razão, é uma questão que não pode ser respondida agora. Que eles não se preocuparam, porém, é o mínimo que pode ser dito a partir do chocante testemunho de Clarke.

A sua obsessão com o Iraque também era uma teimosia. De acordo com o livro de Clarke recentemente publicado, em Abril de 2001, quando Clarke marcou uma reunião com adjuntos de membros da administração, Wolfowitz fez cara de zangado e exigiu saber por que o tema não era “o terrorismo iraquiano contra os Estados Unidos” em vez de a Al-Qaeda. Para surpresa de Clarke, Wolfowitz contradisse directamente os representantes da CIA e do FBI na reunião, argumentando que Saddam constituía o maior perigo para os EUA. Clarke achou inacreditável que um especialista em política externa como Wolfowitz defendesse que o Iraque estava por trás do ataque bombista contra o World Trade Center em 1993, “uma teoria que fora investigada durante anos e que se concluiu ser totalmente falsa”, disse ele ao comité do Congresso.

Nem sequer a visão dos aviões a mergulhar nas torres gémeas fez abalar essa obsessão. Na primeira reunião na Casa Branca em que se encontraram após o ataque, Rumsfeld “dizia que precisávamos de bombardear o Iraque”, disse Clarke numa entrevista à cadeia de televisão CBS. “E todos nós dissemos: não, não. A Al-Qaeda está no Afeganistão. Precisamos de bombardear o Afeganistão. E Rumsfeld disse que não havia nenhum alvo bom no Afeganistão. E que havia muitos alvos bons no Iraque. E eu disse: ‘Bem, há muitos alvos bons em muitos lugares, mas o Iraque não tem nada a ver com isto.’ [...] Eu pensava que ele estava a brincar. Acho que eles queriam acreditar que havia uma ligação, mas a CIA estava lá sentada, o FBI estava lá sentado, eu estava lá sentado, dizendo que investigámos este assunto durante anos. Durante anos nós procurámos, e simplesmente não há nenhuma ligação.”

Clarke continuou: “O presidente arrastou-me para um quarto com duas outras pessoas, fechou a porta e disse: ‘eu quero que você descubra se o Iraque fez isto’. De facto, ele nunca disse: ‘Invente-o’. Mas toda a conversa deixou-me absolutamente sem nenhuma dúvida de que George Bush queria que eu voltasse com um relatório que dissesse que tinha sido o Iraque a fazê-lo.”

“Eu disse, ‘Sr. Presidente. Já o fizemos antes. Investigámos isto com uma mente aberta. Não há nenhuma ligação.’”

“Ele voltou-se para mim e disse: ‘Iraque! Saddam! Descubra se há uma ligação’. E de um modo muito intimidatório. Quer dizer, deveríamos regressar com uma resposta. Escrevemos um relatório. [...] Foi devolvido dizendo, ‘Resposta errada... Façam novamente.’”

A princípio, os porta-vozes de Bush responderam ao testemunho de Clarke dizendo que ele inventara tudo, especialmente a pressão para incriminar Saddam pelo ataque ao World Trade Center. Mais tarde, depois de terem aparecido duas testemunhas das ordens “Iraque! Saddam!” de Bush para Clarke no dia a seguir ao ataque, a Casa Branca começou a aparecer com outros argumentos. Como evidência de que o relato de Clarke não fazia sentido, Rumsfeld mostrou que os EUA, de facto, tinham bombardeado e invadido o Afeganistão semanas depois do ataque. Mas será que isso prova que Clarke está a mentir, ou apenas indica que a invasão do Afeganistão – a qual também fora planeada antes do 11 de Setembro – era apenas um passo no caminho de uma mais vasta guerra que estava a ser preparada desde o princípio?

Bush e o seu círculo nunca deixaram de tentar ligar Saddam às torres gémeas. Publicaram uma história completa – mais tarde completamente desacreditada – sobre um suposto encontro em Praga entre um dos alegados suicidas e um representante iraquiano. Basicamente, mesmo quando forçados a recuar um pouco (mas nunca completamente) na ideia de que Saddam estava por trás do 11 de Setembro, aumentaram os seus esforços para retratar a invasão norte-americana ao Iraque como uma medida defensiva (uma “guerra preventiva”) para proteger o povo dos EUA de outro ataque semelhante. Num dos seus muitos discursos, Powell, Secretário de Estado de Bush, insistiu perante o Congresso, ao defender o orçamento de Bush para a planeada invasão do Iraque: “Isto não é apenas um exercício académico... Estamos a falar de armas verdadeiras. Estamos a falar de antraz. Estamos a falar da toxina botulina. Estamos a falar de programas de armas nucleares.” Nada disso era mais verdade que o suposto envolvimento de Saddam no 11 de Setembro.

Contudo, tudo isto – desde o fantasioso encontro em Praga às igualmente fantasiosas armas de destruição em massa – foi repetido como sendo factos pela maior parte da comunicação social norte-americana, especialmente no período imediatamente antes do início da guerra (quando a verdade teria prejudicado gravemente o esforço de guerra e seria “antipatriótico”) e durante a própria invasão. Isto mostra o grau em que a classe dominante dos EUA no seu todo o achou útil. Certamente que o facto de a ocupação estar a correr tão mal é pelo menos uma grande parte da razão por que Bush está a ser “apunhalado pelas costas” por antigos companheiros de confiança como Clarke e o ex-Secretário do Tesouro O'Neill (e o ex-Embaixador Joseph Wilson, cujo livro sobre as mentiras do governo Bush sobre a compra de urânio em África por Saddam sairá em breve).

Mesmo após estas mais recentes revelações, o debate político dominante nos EUA – tanto os defensores de Bush como os seus rivais do Partido Democrático – tem-se limitado aos parâmetros da melhor maneira de fazer “a guerra ao terrorismo” e a quem, dentro desses parâmetros, melhor “protege o povo norte-americano”. A crítica que os Democratas estão a fazer a Bush e aos seus conselheiros é a de que não foram suficientemente agressivos e motivados para lutar. Mas o testemunho de Clarke mostra que eles estavam fanaticamente motivados para terem um pretexto para irem para a guerra, e não apenas para uma guerra mas para uma série completa de guerras cujo fim ainda não está à vista.

No seu julgamento de 1946 em Nuremberga, Hermann Goering, o ministro nazi da propaganda, deu uma lição que parece ter sido aprendida de cor pelos políticos belicistas dos dois principais partidos políticos dos EUA: “É claro que as pessoas não querem a guerra... Isso é sabido. Mas afinal de contas, são os dirigentes do país que determinam a política e é sempre apenas uma questão de arrastar as pessoas... Tudo o que têm a fazer é dizer-lhes que estão a ser atacados e denunciar os pacifistas pela falta de protecção e por exporem o país ao perigo.”

Em resumo, a “guerra ao terror” não existe. É apenas uma peça da engrenagem, uma parte do mecanismo mais geral da agressão dos EUA na sua procura de uma “nova ordem mundial”. A questão principal é: quais são os verdadeiros alvos por trás das invasões norte-americanas do Afeganistão, do Iraque (e agora do Haiti...)? Mais, não apenas que mentiras foram ditas, mas que interesses políticos e económicos – que interesses de classe – é que estão em jogo nas intenções declaradas dos EUA em estabelecer um império mundial sem precedentes? Não podemos esperar que sejam membros da classe dirigente, mesmo que dissidentes, a responder a essas perguntas, mas estas revelações estão a fazer com que um número crescente de pessoas se questione.

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