Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 27 de Outubro de 2008, aworldtowinns.co.uk
As negociações do tratado EUA-Iraque e os objectivos norte-americanos no Médio Oriente
As negociações entre os governos norte-americano e iraquiano sobre um novo acordo para dar cobertura legal à ocupação norte-americana têm enfrentado sérios problemas. Embora nenhum dos lados possa querer neste momento levar este confronto até à ruptura, as contradições por trás do confronto são muito reais.
A 24 de Outubro, o primeiro-ministro iraquiano Nouri Al-Maliki anunciou inesperadamente que não assinaria a proposta de tratado que os seus negociadores já tinham aceitado e inicializado. Os EUA responderam declarando que não aceitariam nenhuma alteração substancial. Se se mantiver este impasse, os EUA podem pedir ao Conselho de Segurança das Nações Unidas para renovarem o actual mandato de ocupação da ONU, de renovação anual, que o Acordo Bilateral sobre o Estatuto das Forças deveria vir substituir. Até agora, Maliki tem-se mostrado relutante a aceitar esse passo porque o mandato coloca explicitamente o Iraque sob total controlo norte-americano. Renová-lo seria visto como um sinal de que não houve nenhuma alteração no humilhante estatuto do país e da subordinação do seu governo.
O novo comandante supremo dos EUA no Iraque, General Ray Odierno, acusou beligerantemente o Irão de estar a “subornar” o governo iraquiano de forma a bloquear o acordo. Ameaçou parar todas as operações militares a 31 de Dezembro se o governo iraquiano não ceder e enviou-lhe uma lista de três páginas com dezenas de outros passos drásticos que os EUA dariam, tais como impedir efectivamente todo o tráfico aéreo, cancelar a ajuda económica e suspender a protecção aos transportes marítimos do país, às fronteiras terrestres e aos oleodutos. O seu superior, o Almirante Mike Mullen, chefe das forças armadas dos EUA, avisou que se o governo iraquiano não inverter o rumo, “há um grande potencial para perdas de consequências significativas” (McClatchy Newspapers, 24 de Outubro).
Para percebermos o verdadeiro carácter deste conflito, temos que afastar primeiro as camadas de hipocrisia.
Em primeiro lugar, há a questão da legalidade da ocupação à luz do direito internacional. As Nações Unidas recusaram-se a autorizar a invasão liderada pelos EUA em Março de 2003. Não foi senão em Junho de 2004, após os EUA terem ocupado o país e parecerem estar a impor a sua vontade, que os países europeus que se tinham oposto à invasão decidiram que tinham que aceitar a realidade da ocupação se quisessem defender os seus próprios interesses imperialistas na região. Há aqui um paradoxo: como a invasão foi ilegal à luz do direito internacional, como pode a ocupação que resultou dessa invasão ser agora legal? (Já para não falar das falsas premissas políticas usadas para a justificar – as “armas de destruição em massa” de Saddam Hussein.) Toda a conversa sobre a “cobertura legal” não passa disso – uma cobertura para o facto de, neste mundo imperialista, as cruas relações de poder e interesses serem o que em última análise importa.
O segundo ponto diz respeito às intenções dos dois lados. Apesar do espectáculo de Washington estar a reverenciar o governo “soberano” que é uma criação sua, o fiasco do tratado é por si só suficiente para demonstrar que os EUA pretendem continuar a impor a sua vontade no Iraque. Também demonstra que o governo iraquiano, cuja ascensão eles promoveram, pode não ser um bando de fantoches mas está longe de ser soberano. Depende da ocupação norte-americana que diz querer terminar. Se as tropas norte-americanas de repente “não fizerem nada”, como ameaçou o General Odierno, o governo de Maliki pode não ter muitas pernas para andar.
Veja-se a própria proposta de acordo. Que interesses reflecte? Os dois temas de maior litígio são: permitir que os EUA mantenham as principais bases e forças no Iraque até ao final de 2011 – e mesmo depois disso, se o governo iraquiano concordar; e garantir imunidade aos soldados norte-americanos perante a lei iraquiana, deixando-os continuar a assassinar pessoas em massa e violar à vontade, excepto quando fora de serviço e fora das bases.
É extremamente revelador que, até ao último minuto, os EUA tenham feito pressão pela imunidade total sem excepções e que depois tenham imposto uma cláusula em que, mesmo nessa categoria restrita de crimes, uma comissão conjunta norte-americano-iraquiana teria que concordar em que o soldado envolvido pudesse ser julgado num tribunal iraquiano. Os soldados dos EUA raramente se aventuram fora das suas bases quando não estão em missão. Mas a ideia de haver sequer um único soldado norte-americano forçado a apresentar-se perante um tribunal iraquiano é mais do que o que os dirigentes norte-americanos e todo o sistema político dos EUA podem engolir. Um ex-oficial da Marinha dos EUA explicou à Al-Jazeera que essa percepção de degradação se tornaria num “problema de recrutamento” e afectaria fatalmente a moral dos soldados – do ponto de vista imoral da missão de subjugação que os EUA os enviaram para cumprirem no Iraque. Há alguma lógica nisto. Como poderiam os soldados de um exército de ocupação ser julgados pelos ocupados?
A verdade é que, após nove meses de negociações secretas, o governo de Maliki tinha aceitado essas cláusulas. De facto, ele nunca deu aos EUA outra coisa que não fosse total liberdade desde que tomou posse em 2006. Porque surgiu, então, este atrito? Basicamente devido à forma como os EUA alteraram os seus objectivos e estratégia no Iraque e mesmo como resposta tanto à evolução da situação aí como ainda mais às suas intenções mais gerais.
Após a relativa calma que se seguiu à invasão, os EUA enfrentaram uma feroz resistência militar que se uniu, em grande parte, sob a bandeira do fundamentalismo sunita islâmico (salafismo). Algumas forças autoproclamavam-se “Al-Qaeda do Iraque”, no que foi sobretudo um fenómeno interno segundo alguns observadores mais ponderados. Em resposta, os EUA encorajaram uma campanha de terror em massa e assassinato étnico contra os sunitas, encabeçada pelo Ministério iraquiano do Interior, controlado pelos partidos governamentais xiitas. As próprias guerrilhas sunitas também levaram a cabo repugnantes assassinatos de civis xiitas, chamando-os de apóstatas (traidores à fé), tão maus ou piores que os dos invasores. Sobretudo depois do ataque bombista ao santuário xiita de Al-Askari em Fevereiro de 2006, desencadeou-se uma guerra civil total entre as comunidades sunita e xiita – envolvendo todas as forças e partidos políticos.
A “vaga abrupta” de mais tropas dos EUA durante o último ano foi uma resposta a uma situação que escapava ao controlo devido a uma guerra civil que os EUA muito tinham feito por encorajar. Mas os resultados alteraram a paisagem política de uma forma que os EUA provavelmente não tinham previsto. Os xiitas ganharam a guerra civil em Bagdad, tomando zonas disputadas e expulsando as famílias sunitas. Ao mesmo tempo, a “Al-Qaeda do Iraque” chegou a um beco sem saída devido às limitações inerentes a uma ideologia e a um programa que nem sequer visavam unir o povo contra o ocupante e a uma perspectiva social que muitos iraquianos acham inaceitável.
Os EUA não têm estado apenas a observar. Aproveitando-se das contradições inerentes em que caiu o movimento Al-Qaeda, o conflito entre os jihadistas e os líderes tribais tradicionais cuja autoridade eles ameaçavam, e também a pressão genocida dos aliados xiitas dos EUA sobre os sunitas, e dispondo agora de mais tropas e, mais importante, de uma diferente estratégia política, os generais norte-americanos puderam obter uma importante vitória: tornaram 100 mil combatentes sunitas, a grande maioria dos quais tinham estado a fazer o seu melhor para matarem ocupantes, em aliados dos EUA, pelo menos temporariamente. Quando os seus líderes se inscreveram nas folhas de pagamento dos EUA, descobriu-se que muitos eram antigos generais e outros oficiais do exército de Saddam Hussein e membros do seu partido baathista.
Uma bela manhã, esses homens “despertaram para os milhões de dólares de ajuda do governo [dos EUA] e o apoio da 3ª Divisão de Infantaria [norte-americana]”, disse um alto funcionário dos EUA ao jornal The New York Times (24 de Outubro). Os EUA estavam a oferecer a esse movimento de “Despertar”, mais que uma amnistia, melhores armas e enormes quantias em dinheiro. Também a balouçar à frente dos seus olhos estava a possibilidade de recuperarem o paraíso que tinham perdido quando ajudavam a governar o Iraque no tempo de Saddam.
Seria errado pensar-se que a ideologia fundamentalista predominante no movimento sunita tenha sido sobretudo um veículo para qualquer outra coisa (como se fosse algum nacionalismo distorcido, como defendem algumas pessoas), em vez de vê-la como uma importante força motriz em si mesmo. É provável que, mesmo para os antigos quadros laicos de Saddam que a abraçaram, ela tenha sido mais uma religião oportuna que um oportunismo religioso. O próprio Saddam, nos seus últimos anos, trocou o “socialismo árabe” baathista por Alá. Essa ideologia e as forças de classe e relações sociais em que se baseia persistem sob várias expressões políticas e militares. Bem como as tensões sectárias de todos os lados.
Apesar disso, a província ocidental de Al-Anbar, onde em 2006 os fuzileiros navais enfrentaram a derrota às mãos da “Al-Qaeda do Iraque”, é considerada agora uma das partes mais estáveis do Iraque.
David Petraeus, o altamente político general responsável por esta alteração, foi recentemente nomeado para liderar o exército norte-americano em todo o grande Médio Oriente, incluindo o Afeganistão, o Paquistão e o Irão. Há alguns anos atrás, ele disse ao jornalista Patrick Cockburn que o segredo do sucesso na província de Anbar seria “não se alinharem muito de perto com um grupo étnico, partido político, tribo, grupo religioso ou elemento social” (The Independent, 14 de Setembro). Foi precisamente isso que fez – traiu os aliados mais chegados aos EUA, os partidos xiitas e curdos, fazendo regressar os seus inimigos mais assassinos, ao mesmo tempo que voltava cada um deles contra os outros, usando frequentemente as fraquezas políticas e ideológicas de todos esses reaccionários feudais contra si próprios. Como disse uma vez um lorde inglês num outro contexto, os imperialistas não têm nenhum amigo permanente, apenas interesses permanentes.
O factor mais importante que condicionou esta alteração foi a crescente rota de colisão entre os EUA e a República Islâmica do Irão. Os dois principais partidos xiitas no governo, o Conselho Supremo Islâmico do Iraque e o muito menor partido Dawa de Maliki, têm estado ambos ligados ao regime iraniano. E também, embora de uma forma diferente, o movimento fundamentalista xiita de Moqtada Sadr, que apoiou Maliki antes de passar para a oposição. Apesar das alegações de Sadr de estar a defender o nacionalismo iraquiano, o seu Exército do Mahdi esteve na vanguarda da limpeza étnica das comunidades sunitas de Bagdad. Ao contrário do Conselho Supremo, cujo principal apoio vem dos comerciantes tradicionais, o movimento de Sadr baseia-se fortemente nos habitantes dos bairros pobres. Mas um partido reaccionário baseado nas massas pobres não é menos reaccionário. Ideologicamente, o movimento está agora mais próximo dos principais partidos do regime iraniano e da sua concepção de “regra da jurisprudência” (o domínio clerical directo). Diz-se que o próprio Sadr está na cidade santa iraniana de Qom, a estudar para elevar o seu estatuto clerical. Ao mesmo tempo que faz pressão para os EUA partirem (e, segundo as autoridades norte-americanas, no passado envolveu-se em emboscadas e outros ataques aos soldados da ocupação), a maior parte do tempo o movimento de Sadr tem evitado activamente um confronto directo com os EUA – uma posição que também partilha com o regime iraniano.
De novo, as consequências não previstas podem ser surpreendentes: a conjugação de forças que os EUA associaram, provavelmente improvisando, para os ajudarem a governar o Iraque está, num grau muito elevado, ligada ao Irão. O despertar pelos EUA do aparente cadáver do exército de Saddam, novamente aparentemente de improviso, aprofundou o medo de Maliki e outros membros da sua coligação (e os curdos) de que os EUA não são de confiança e que as suas vidas políticas e mesmo físicas estão ameaçadas. Isto, claro, apenas os torna mais relutantes a romperem as suas ligações ao Irão. No início deste ano, Maliki fez um enorme espalhafato sobre o envio dos seus soldados – com o apoio norte-americano – para Baçorá e outras cidades controladas por Sadr para as fazer regressar ao controlo do governo central. Eles tiveram tanta dificuldade que Maliki teve que se voltar para o Irão para chegar a um compromisso. Sadr ordenou aos seus homens que retirassem em vez de combaterem. Isto, o maior “sucesso” de Maliki, como foi na altura propagandeado pelos porta-vozes de Bush, parece ter sido mais do que o que os EUA podiam tolerar. Como poderiam os EUA entregar uma maior soberania, mesmo que falsa, a um governo tão dependente do Irão?
Isto apenas torna mais evidente que Maliki se tenha sentido de repente ofendido com a cláusula da proposta de acordo que permitirá às tropas dos EUA ficarem indefinidamente no Iraque, mesmo depois de 2011, se o governo iraquiano concordar. O governo do Iraque, tal como está actualmente configurado, pode já não existir até lá. Reciprocamente, essa cláusula pode dar aos EUA um ainda maior incentivo para fazer a Maliki e aos seus parceiros o que celebremente fizeram a Ngo Dinh Diem, o tirano sul vietnamita que os EUA inicialmente puseram no poder e depois acharam necessário assassinar em 1963. (Isto aparentemente levou Mao Tsétung a comentar: “não é nada divertido ser-se cão de trela”.)
Nestas circunstâncias, Maliki provavelmente pensou que seria melhor reavivar a sua aliança com o movimento de Sadr, ou pelo menos proteger os seus flancos contra acusações de traição nacional. A generalizada ideia norte-americana de que a “vaga abrupta” e que a retoma pelo exército dos EUA do bairro pobre da Cidade de Sadr em Bagdad marcou a morte do movimento de Sadr é extremamente exagerada. O seu Exército do Mahdi nunca foi verdadeiramente um exército, no sentido de uma organização disciplinada, treinada e coerente. É um movimento social, um dos mais poderosos do Iraque, ao lado dos partidos curdos e do fundamentalismo sunita e, tal como eles, não vai desaparecer. A 18 de Outubro, as ruas da Cidade de Sadr ficaram cheias até transbordar, numa manifestação a exigir que o Acordo sobre o Estatuto das Forças não fosse renegociado mas sim repudiado. É essa também a perspectiva da República Islâmica do Irão. (Tehran Times, 22 de Outubro). O General Odierno chamou aos combatentes apoiados pelo Irão de “ameaça de longo prazo” e “o que mais me preocupa” (Washington Post, 13 de Outubro).
Os acontecimentos no Iraque têm sido uma lição de imprevisibilidade, mas as contradições em desenvolvimento são bem claras. O ex-diplomata norte-americano Peter W. Galbraith salientou: “Menos violência, porém, não é a mesma coisa que vitória. Os Estados Unidos não foram para a guerra no Iraque com o fim de acabarem com a violência entre as forças sectárias combatentes. A vitória tem que ser medida em relação aos objectivos dos EUA.” (New York Review of Books, 23 de Outubro) Esta é a única forma científica de avaliar a actual situação no Iraque.
Galbraith trabalha com a liderança dos dois partidos curdos e tende a ver a situação pelos seus olhos, o que não o torna um observador menos informado. Ele escreveu sobre a liderança curda: “Tanto militar como politicamente, apoiaram a política dos EUA, mesmo quando tinham reservas sobre a sua razoabilidade”. Agora, são as únicas grandes forças políticas no Iraque a defender a assinatura da proposta de tratado – ou, por outras palavras, satisfeitas com a actual situação. O presidente curdo do Iraque, Jalal Talabani, foi recentemente a Teerão para dissuadir o Irão de se lhe opor. Como descreveu Galbraith, os únicos aliados fidedignos dos EUA (apesar das suas próprias ligações históricas ao regime iraniano) estão assustados. Nas zonas fora do Curdistão histórico que as suas tropas peshmergas ocupam, e sobretudo agora Mossul, elas estão sob ataque dos fundamentalistas sunitas e do próprio governo a que Talabani supostamente preside. O exército dos EUA já disse que nessas circunstâncias não “tomaria partido”, o que é particularmente surpreendente dado que os peshmergas ocuparam essas cidades durante a invasão ao lado e a pedido dos EUA. Galbraith é muito pessimista sobre o futuro valor de qualquer aliança com os ocupantes.
É inegável que nos últimos meses os EUA fizeram recuar a maior parte da resistência armada activa à ocupação, o que se reflecte na diminuição do número de vítimas militares norte-americanas. Contudo, o General Petraeus, falando quando estava prestes a deixar o Iraque para a sua nova função, avisou que os ganhos norte-americanos são “frágeis” e “não irreversíveis”. “Isto não é o tipo de combate em que se toma uma colina, coloca-se a bandeira e volta-se para casa para uma parada de vitória”, disse ele. A situação é mesmo mais frágil em termos do objectivo dos EUA. Como tão amargamente disse Galbraith, o objectivo político dos EUA nunca foi impedir os iraquianos de serem mortos. Nem foi ter menos mortes entre os seus próprios soldados, embora isso ajude a tornar a ocupação mais aceitável para algumas pessoas. O objectivo da guerra foi obter o controlo político e económico do Iraque, e não fazer isso como um fim em si mesmo, mas como um passo para a hegemonia em todo o grande Médio Oriente, o que requer confrontar o regime iraniano e o fundamentalismo islâmico em todas as suas variantes.
Nenhuma parte desse objectivo parece estar agora mais próximo, e ao procurarem atingi-lo é provável que os EUA desencadeiem muito mais violência.