Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 2 de Junho de 2014, aworldtowinns.co.uk
A Frente Nacional (FN) triunfou nas eleições francesas para o Parlamento Europeu, ficando em primeiro lugar com um quarto dos votos. Deu “uma bofetada na cara” à direita tradicional que ficou muito atrás e deixou os socialistas e os seus aliados “humilhados” e “em ruínas”, como disseram os comentadores. Com menos de 14 por cento dos votos, o Partido Socialista actualmente no governo parece-se agora ao grupo de franja que já foi a FN.
Porque é que isto aconteceu e o que é que isto significa são questões que serão melhor entendidas depois de uma análise mais detalhada das eleições de 25 de Maio e dos desenvolvimentos posteriores. Por agora, olhando não só para estas eleições mas mais geralmente para a sociedade e a política francesa, o mínimo que se pode dizer é que estamos a testemunhar a ascensão de uma atmosfera nacionalista e anti-imigrante com conotações fascistas no contexto de uma convulsão cultural mais vasta. O completamente derrotado político reformista Jean-Luc Melenchon chamou-lhe uma “erupção vulcânica” que conseguiu reconfigurar a paisagem política do país e um sinal de uma “guerra de civilizações” na esfera cultural.
Fascismo é uma daquelas expressões frequentemente usadas de uma forma tão desregrada que quase não quer dizer nada, mas que apesar disso não é difícil de reconhecer quando o vemos. A FN foi fundada como um dos movimentos mais ou menos declaradamente fascistas e neonazis nos anos 1970, instigada pela convicção de que a França deveria ter mantido as suas colónias, sobretudo a Argélia, e que em última análise tem raízes no regime de Philippe Petain, o general que governou a França em colaboração com os ocupantes nazis durante a II Guerra Mundial. Faz parte de uma constelação mais vasta, historicamente agrupada à volta da Igreja católica em oposição ao laicismo, à forma republicana de governo e frequentemente aos judeus.
Mas, neste momento, a forma republicana e parlamentar de governo não está em verdadeiro perigo, nem isso é uma preocupação que ocupe muitas mentes. Até recentemente, o tema principal tem sido a ameaça percebida à família patriarcal. O ano passado, estas correntes mobilizaram muitas centenas de milhares de pessoas para as ruas em “defesa da família”, contra a recente legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo e sobretudo contra o espectro da adopção gay, vista como um simbólico fim do mundo tal como eles sentem que deveria ser, tão antitético para a moralidade e os valores cristãos como os judeus já antes foram considerados.
A vitória eleitoral da FN ocorreu em bases simbólicas similares, mas foi mais abertamente política – e talvez a FN tenha escolhido um foco mais estreito para alargar a sua atractividade. A actual dirigente do partido, Marine Le Pen, tentou distanciar a FN do anti-semitismo explícito do pai dela, Jean-Marie Le Pen, e chegou mesmo a expulsar membros do partido por repetirem o tipo de comentários casualmente judeocidas pelos quais o fundador da FN é conhecido, mas ela não se distanciou do próprio Jean-Marie, que continua a ser o dirigente honorário do partido. Com esta ambiguidade, ela ao mesmo tempo promoveu e reteve o anti-semitismo que, como todos os apoiantes dela sabem, é um elemento nuclear da identidade do partido e continua a ser um factor de coesão entre os sectores reaccionários das classes médias e mais baixas, embora já não esteja na moda entre a classe dominante francesa.
Ela não foi sequer ligeiramente ambígua em relação ao racismo histórico do partido. Falando numa reunião da FN na véspera das eleições para o Parlamento Europeu, o pai dela avisou que os franceses estavam em perigo de ser “substituídos” por “uma invasão de imigrantes”, e depois acrescentou que ainda havia esperança: “O Senhor Ébola [uma doença letal que recentemente surgiu na África Ocidental] poderia resolver isso em três meses”. Algumas pessoas ficaram chocadas, mas ela defendeu-o, dizendo que ele apenas estava a fazer comentários neutros sobre acontecimentos em África e não a defender nada.
É verdade que o programa dela “só” pede uma drástica restrição da imigração, a expulsão de vastas categorias de estrangeiros e dar preferência às pessoas nascidas francesas nos empregos, habitação, benefícios sociais, etc., e não a eliminação de ninguém. Mas também o partido nazi defendeu a remoção e não a eliminação dos judeus, até 1942, altura em que decidiu que a “solução final” era a única solução. É estrategicamente vital compreender as reais diferenças entre o núcleo duro da FN, a sua base de apoio mais alargada e os milhões de pessoas que votaram nela sem pensarem muito nisso. Mas a maioria das pessoas que votaram na FN – e quase todas as outras pessoas – percebeu que um voto na FN era um voto para, de uma forma ou de outra, afastar os estrangeiros.
As zonas tradicionais de maior apoio da FN são, de facto, lugares com relativamente poucos imigrantes, não são a maioria das cidades mas sim lugares como a Alsácia rural, a cintura industrial do norte do país e zonas ao longo da costa sul com uma elevada percentagem de pieds noirs, as famílias dos antigos colonos franceses no Norte de África. Mesmo sem uma análise detalhada de todos os resultados eleitorais, uma coisa que ressalta é o novo grau de apoio da FN nessas zonas e agora mais amplamente ao longo de grande parte do país e das suas mais baixas classes brancas. Esta alteração tinha sido antecipada nas eleições municipais de Março, altura em que a FN ganhou Henin-Baumont, uma antiga cidade mineira do norte do país que durante gerações foi uma fortaleza dos revisionistas do Partido Comunista (PCF) e dos socialistas.
Quando se analisa o apoio da FN, embora as pessoas classificadas como operários e empregados, tanto com emprego como desempregadas, e as pessoas com menos de 35 anos, tivessem muito menos probabilidade de votar que a população em geral, uma percentagem relativamente maior das pessoas dessas categorias que depositaram os seus votos nas urnas votaram na FN. Em geral, quanto mais pobre a família, e mais jovem o eleitor, mais provável era que ou se tivessem abstido ou votado na FN. Ambos os casos exprimem uma rejeição da política tal como ela tem sido praticada em França.
De acordo com uma sondagem da organização IPSOS, quando pediram aos potenciais eleitores que listassem os dois principais temas destas eleições, dois terços dos apoiantes da FN indicaram a imigração como a sua principal preocupação, enquanto um terço colocaram o elevado custo de vida em primeiro lugar. Claro que as sondagens muitas vezes distorcem as respostas através da forma como fazem as perguntas, mas a redução do poder de compra, o desemprego ou outras formas de sofrimento económico foram citados pela maioria dos eleitores. O que é surpreendente em relação à FN é a associação dos dois temas. Além disso, embora a FN se oponha à União Europeia na sua actual forma, essa posição é na realidade menos central na sua identidade que para alguns partidos da “extrema-esquerda” (incluindo o que resta do movimento antiglobalização em França) que tiveram fracos resultados nestas eleições.
Em suma, a oposição aos estrangeiros é a mais importante característica definidora da FN. (Os jovens que se manifestaram contra o partido e tudo o que ele representa, alguns dias depois das eleições, chamaram-lhe “F-haine”, a frente do ódio.) O que é que contribui para a sua atractividade neste momento?
Os factores mais comummente mencionados não explicam muito. A presença de estrangeiros não é o que provoca a histeria contra os estrangeiros. Cerca de um terço dos franceses de hoje são produto da imigração ao longo do século XX, e a percentagem de imigrantes não mudou muito nos últimos anos. Além disso, com oito por cento de pessoas nascidas no estrangeiro entre a sua população, a França nem sequer fica perto de Espanha, que em duas décadas passou de ter muito poucos imigrantes a ter o maior número na Europa, ou de Itália em termos das novas vagas de imigrantes que chegam às suas costas. Apesar disto, os partidos da extrema-direita não subiram muito nas eleições que se realizaram em simultâneo nesses países.
Quanto à situação económica, ela também explica pouco porque é que produziu este conjunto específico de resultados. A equação “Quatro milhões de estrangeiros = quatro milhões de empregos” que se tem espalhado pelas redes sociais revela uma correlação psicológica entre o sofrimento económico e a imigração, mas tem pouca base real. O vasto sector da classe operária que antes desfrutava de empregos e benefícios estáveis, embora não grandes salários, ou, por outras palavras, o tipo de pessoas que antes eram a base do PCF, o “povo de esquerda”, como eram chamadas, não estão a perder os seus empregos para os imigrantes – os seus empregos nas fábricas e indústrias inteiras estão a desaparecer, e a maioria deles não quer os trabalhos que os estrangeiros fazem. Os imigrantes não estão a roubar as casas, os cuidados de saúde e outros benefícios sociais a ninguém. O crescimento da FN é inimaginável sem o sofrimento económico e a insegurança no trabalho de hoje, mas não é a única consequência possível.
Por exemplo, não houve nenhum fenómeno como a FN nas eleições para o Parlamento Europeu que se realizaram no mesmo dia em Espanha, onde muito mais operários e empregados foram atirados para a miséria que em França, nem na Grécia onde o Nova Aurora neonazi obteve 9,3 por cento dos votos, cerca de um terço dos do Syriza de “extrema-esquerda”. Claramente, a aceleração das mudanças na economia mundial e nas estruturas económicas na Europa e na América do Norte estão a definir o cenário, mas o enredo não tem nenhum arco dramático inevitável.
Porque é que o efeito combinado da situação económica e política, cultural, etc., resultou desta forma até agora em França é uma questão muito complexa, mas alguns pontos fundamentais se salientam e têm um significado mais universal. O medo fantasista de os nativos serem “substituídos” parece ser um marcador simbólico para outra coisa. Se há uma palavra que os apoiantes da FN gostam de abraçar, ela é “identidade”. Nas mentes deles, é a identidade do país e do seu povo que estão em perigo.
A verdadeira questão não são os estrangeiros em França, mas que a evolução da sociedade francesa moderna tem sido sentida de uma forma estrangeira por muitas pessoas. Embora algumas pessoas fiquem perturbadas quando vêem rostos diferentes dos seus nos mercados ao ar livre, isto não parece ser suficiente para fazer com que tantas pessoas digam: “Eu sinto-me um estranho no meu próprio país”. A palavra “identidade” refere-se aos valores e à cultura que antes definia oficialmente o tecido social de França, os valores e a cultura oficiais comuns que supostamente uniam a sociedade. Embora a maioria dos eleitores da FN pouco saiba ou pouco se preocupe com Petain, o slogan dele, “Trabalho, família, pátria” encapsula uma ideia comum de como deve ser a sociedade.
Que tipo de sociedade querem as pessoas é a grande questão. Parece haver uma nostalgia pelo que a França era antes, pelo menos em certas memórias enganadas, durante os “trente glorieuses” (as três décadas depois da II Guerra Mundial), quando o futuro parecia ser mais luminoso, mesmo para as pessoas no fundo da sociedade, em que os operários e outras pessoas recebiam alojamento, cuidados de saúde e outros benefícios sociais que hoje estão em risco, e em que continuavam a prevalecer valores religiosos e patriarcais socialmente conservadores, do que tinha sido uma sociedade largamente de pequenas cidades. Tudo isso foi ferozmente contestado pela rebelião de Maio de 1968, em que milhões de jovens de todas as classes adoptaram a atitude “sejamos realistas, exijamos o impossível” (que significava um mundo que, apesar de vagamente definido, seria totalmente melhor).
Embora esse movimento tenha desaparecido há muito tempo, muitas pessoas sentem que o movimento de recuo da sociedade desde então não foi suficientemente completo e querem inverter os veredictos em questões fundamentais como, se a opressão – dos imigrantes e dos homossexuais, por exemplo – é ou não moralmente correcta, e quão estritamente os ensinamentos da Igreja devem governar a sociedade. Esta contradição tem sido tornada ainda mais aguda pelas mudanças na sociedade desde os anos 1960, sobretudo uma ainda maior eliminação das velhas formas de opressão das mulheres, da família tradicional e das relações de género, e pelas novas misturas culturais a que muitas pessoas dão as boas-vindas.
É precisamente porque questões morais e sociais como esta continuam por resolver na opinião pública, e por muitos milhões de pessoas terem tomada uma posição fortemente progressista contra o actual recuo (mesmo que não ultimamente), que algumas forças no topo, bem como muitas pessoas entre as massas, querem acertar contas de uma vez por todas com o Maio de 1968.
A ascensão da FN tem de ser colocada em perspectiva sob vários ângulos. Em primeiro lugar, as eleições parlamentares europeias não têm muitas consequências, quando comparadas com as eleições presidenciais, por exemplo, e, como é habitual, cerca de 57 por cento dos eleitores registados não se deram ao trabalho de sair de casa. Assim, a FN obteve um quarto de menos de metade do eleitorado. Mas algumas pessoas ficam demasiado tranquilas com este pensamento. A FN reuniu um movimento estimulado e entusiástico de pessoas desejosas de se verem livres dos imigrantes, dos não brancos, dos homossexuais (não foi um tema da campanha, mas “toda a gente sabe”) e sabe-se lá o quê mais, ao mesmo tempo que os partidos tradicionais perderam a sua legitimidade e mesmo a sua autoconfiança. Os que odeiam simultaneamente o mundo tal como ele existe e o mundo tal como a FN quer que ele seja têm permanecido passivos e à deriva.
Em segundo lugar, a abordagem e o programa da FN tem mais a ver com manter-se dentro do sistema político do que a maioria dos observadores admite – embora Marine Le Pen não seja um deles. Ela tem acusado frequentemente tanto a direita tradicional como o actual governo socialista de lhe roubarem o seu programa: “Por quê aceitar uma cópia quando podem ter o original?” Todo o espectro político francês tem-se mudado na direcção da FN há vários anos.
Em nada isso é mais óbvio que em relação à “segurança” e à imigração. Todos os programas dos maiores partidos ecoam o apelo da FN a que a polícia tenha uma “tolerância zero” em relação aos jovens imigrantes e aos amigos deles nos bairros sociais. O actual primeiro-ministro socialista Manuel Valls tem feito da “tolerância zero” e da repressão aos imigrantes a imagem de marca da sua carreira política.
Quando era um jovem presidente de câmara em ascensão, ele impediu a abertura de um supermercado hallal (islamicamente aceitável) e triplicou a dimensão da polícia local. Quando era Ministro do Interior, ele vangloriou-se de um recorde de expulsões de imigrantes e mandou a polícia nacional atacar os campos e as casas ocupadas por imigrantes para encorajar os seus ocupantes a aceitarem a deportação “voluntária”. Ele, mais que qualquer outro indivíduo, contribuiu para tornar socialmente aceitável odiar os Roma (os ciganos da Europa de Leste). Quando se diz a qualquer grupo étnico que “não tem lugar em França” e, mais geralmente, quando a imigração é chamada um “problema” e os imigrantes se tornam alvos, podemos concluir que Valls e o Partido Socialista legitimaram a “solução” mais radical da FN.
Os socialistas e a direita tradicional têm aceitado a FN como um partido como os outros, não só por causa da intenção abertamente declarada por eles de roubarem os eleitores da FN, mas ainda mais porque não podem criticar totalmente as mais repelentes características deles sem exporem a sua própria verdadeira face. A democracia eleitoral deles significa que em vez de usarem a razão e argumentos para afastarem os eleitores das posições da FN, embora também insistam firmemente em princípios, em vez disso eles adoptam eles próprios essas posições. Eles fingem que não têm outra escolha – se não deportarem pessoas em número suficiente, a FN chegará ao poder e deportar ainda mais. A “democracia” deles é uma desculpa e um instrumento, não só para pisarem os direitos dos imigrantes e outras injustiças que nunca deveriam ser consideradas aceitáveis, mas também para enganarem e rebaixarem a população.
Alguns dias depois das eleições para o Parlamento Europeu, alguns estudantes do ensino secundário usaram as redes sociais para organizarem manifestações contra a FN em Paris e em pelo menos meia dúzia de outras cidades, bem como à frente das suas escolas. Ao contrário da maioria dos moribundos eventos da “esquerda” em França, não havia nenhum sistema de som vociferante a esconder o facto de as pessoas estarem entediadas, e havia poucos dos habituais adereços, como os cartazes e os slogans produzidos em série. Eram apenas jovens a gritar: “Somos todos filhos de imigrantes” e “FN, os jovens estão-se a cagar para vocês”. Não iremos ver o primeiro-ministro Valls, ele próprio um imigrante espanhol (ou seja, “branco”), a adoptar este slogan ou esta abordagem. A comunicação social pró-socialista fez troça destes jovens, porque os protestos deles só reuniram cerca de 10 mil pessoas a nível nacional, e mais, porque, dado que a maioria dos jovens não votou, a vitória da FN era “culpa deles”. A resposta, disseram os anciões dos partidos socialista, comunista e outros, é começar a mobilizar os jovens para as eleições presidenciais de 2017.
Gerações atras de gerações têm sido atraídas para o jogo eleitoral em nome de esmagar a FN. Apesar disso, a FN é agora mais poderosa que nunca, e os grandes partidos nunca estiveram mais parecidos com a FN. Um ataque policial particularmente brutal a um campo de imigrantes em Calais pouco depois das eleições pareceu ser um aquecimento para a futura campanha socialista. O sistema económico e político de França é o que trouxe o país para onde está hoje. Seria trágico que uma nova geração fosse levada ao engano a pensar que defender esse sistema é o melhor que pode fazer.