Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 29 de Junho de 2015, aworldtowinns.co.uk
A guerra civil no Iémen e o futuro do Golfo
O Iémen está a ser devastado por uma guerra civil que se tornou ainda mais assassina com a intervenção estrangeira. A Arábia Saudita, em especial, que actua à cabeça de uma coligação de estados árabes e com apoio e equipamento militar dos EUA, está a lutar para manter a sua dominação sobre o Iémen de uma forma tão violenta como se estivesse em jogo o futuro da própria Casa de Saud – o que até pode ser o caso. O Iémen é um país muito pobre, populoso, historicamente republicano e politicamente turbulento. Por outras palavras, poderia ser uma ameaça à estabilidade da rede de monarquias do petróleo que governam as abastadas e escassas populações nativas dos outros países do Golfo.
Das duas principais cidades do Iémen, uma, a estratégica cidade portuária de Adan, no sudoeste do país, foi dividida em dois. Os refugiados têm-se aglomerado na metade ocidental sob controlo do velho regime apoiado pelos sauditas, não necessariamente porque o apoiem, mas porque esse é o melhor lugar para escaparem aos bombardeamentos sauditas. As ruas estão repletas de cadáveres e lixo; não há água potável e há pouca comida, combustíveis ou medicamentos. A capital, Sana, no centro-oeste, considerada uma das cidades antigas mais bonitas do mundo, está nas mãos dos rebeldes houthis, mas sujeita a constantes ataques aéreos sauditas. As casas e outros edifícios do coração houthi na província de Saada, a norte, próximo da fronteira saudita, estão a ser sistematicamente reduzidos a escombros.
Ao mesmo tempo, os EUA, além de apoiarem o antigo regime, também estão militarmente activos no sudeste do país, menos povoado, levando a cabo ataques de drones e outro armamento que visam a Al Qaeda – a qual, ironicamente, beneficia dos ataques contra os houthis – e também a matar aí civis em grande número.
Os ataques aéreos da coligação liderada pelos sauditas mataram 2600 pessoas e deixaram outras 10 mil feridas. Os EUA estão a fornecer “aconselhamento” em relação aos alvos. Cerca de um milhão de pessoas fugiu das suas casas, segundo a ONU, que diz que três quartos da população do país estão à beira da fome porque um bloqueio naval está a impedir as importações de alimentos e combustíveis de que o país depende. Isto é um outro aspecto de uma estratégia militar projectada para punir e aterrorizar a população. Doenças como a febre de dengue e a malária começaram a espalhar-se. Muitas pessoas começaram a fugir do Iémen para o norte da Somália e o Jibuti – e para a Europa, juntando-se aos milhões de refugiados expulsos das suas pátrias à medida que os seus países são esmagados ou destruídos.
A Primavera Árabe chegou ao Iémen a 27 de Janeiro de 2011, quando milhares de estudantes e outras pessoas se começaram a manifestar em Sana. As reivindicações iniciais eram contra o desemprego, a crescente pobreza e corrupção, bem como contra os planos para modificar a Constituição do Iémen para permitir que Ali Abdullah Saleh, presidente durante mais de 30 anos, continuasse a governar, ou para que o filho dele o substituísse. Pouco depois, os manifestantes estavam a exigir que Saleh seguisse os exemplos de Ben Ali e Mubarak e resignasse.
Na Tunísia, o velho estado manteve-se intacto e o velho regime pôde fazer um regresso, e esse foi ainda mais obviamente o caso do Egipto, com manobras sauditas e norte-americanas por trás dos bastidores, mas o Iémen nem sequer chegou a ter uma ilusão de uma revolução. Em Novembro de 2011, o Conselho de Cooperação do Golfo promoveu um acordo em que Saleh transferiu o poder para o seu vice-presidente, Abd Rabbuh Mansur Hadi, em troca de imunidade de acusação para ele e para a família.
Claro que, ao mesmo tempo que as decisões eram tomadas em Riade e Washington, essas manobras tinham de ser apresentadas como vontade do povo iemenita. Nas eleições presidenciais de Fevereiro de 2012, Hadi, o único candidato, obteve 99,8 por cento dos votos. Tal como na Tunísia e no Egipto, onde as eleições também funcionaram contra a revolta popular, em resultado desse acordo, “a elite do Iémen manteve-se largamente inalterada, com as mesmas famílias e grupos tribais a controlarem os recursos do país, as redes de patrocínio e as estruturas políticas”. (Adam Hanieh, Lineages of Revolt, Haymarket Books, 2013) Mas, ao contrário da Tunísia e do Egipto, o fim do regime de Saleh pouco fez para amortecer a revolta.
O Presidente norte-americano Barack Obama chamou ao Iémen um modelo de transição pacífica no Médio Oriente. Mas em Agosto de 2014 o regime estava novamente a começar a tremer. Houve várias semanas de protestos antigovernamentais desencadeadas por uma extremamente impopular subida dos preços dos combustíveis. Desta vez, os houthis, um grupo tribal do norte que durante a última década esteve em revolta contra o governo central, passou a estar fortemente envolvido. Eles avançaram até Sana em Setembro de 2014. No início de 2015, Hadi resignou e os houthis ficaram encarregados do governo.
Em finais de Março de 2015, uma coligação liderada pelos sauditas começou a bombardear as posições dos houthis. Aviões de combate do Egipto, Marrocos, Jordânia, Sudão, Emirados Árabes Unidos, Kuwait, Qatar e Barém participaram na operação. A Somália disponibilizou o seu espaço aéreo, águas territoriais e bases militares para uso da coligação. Os Estados Unidos forneceram informações e apoio logístico, incluindo operações de busca e salvamento dos pilotos da coligação abatidos. Também acelerou a venda de armas aos estados da coligação. Entre estas estão bombas de fragmentação, proibidas pela maioria dos países porque elas são concebidas para matar e mutilar pessoas dentro de uma vasta área em vez de destruir alvos específicos. Essas munições já mataram centenas e feriram muitos milhares de iemenitas comuns ao atingirem escolas, edifícios residenciais, instalações de saúde, mesquitas, postos de gasolina e outros objectivos civis. (Ver o diagrama do The New York Times em nyti.ms/1D2Kh9K.)
A Arábia Saudita apelou ao envio de tropas terrestres do Paquistão, um país cujas forças armadas são há muito tempo aliadas dos EUA e cada vez mais contempladas com dinheiro saudita. O parlamento paquistanês votou pela manutenção da neutralidade, mas mesmo assim o país concordou em fornecer navios de guerra para ajudar a coligação.
Muitos analistas e a comunicação social tendem a apontar o conflito religioso sunitas-xiitas para explicar a intervenção liderada pelos sauditas no Iémen e referem-se aos membros da coligação anti-houthi como “estados árabes sunitas”. Mas o controlo do Iémen sempre foi um tema importante para a Arábia Saudita por si só. Apenas dois anos depois da fundação da Arábia Saudita, Ibn Saud, o seu primeiro monarca, levou a cabo uma breve guerra com o Iémen em 1934. Os detalhes do conflito não são particularmente pertinentes hoje, mas o seu resultado foi o Tratado de Ta'if que, pela primeira vez, demarcou formalmente parte da fronteira entre os dois países. Desde então, a Arábia Saudita tem interferido continuamente no Iémen de várias formas, desde apoiar grupos monárquicos na guerra civil do Iémen de 1962-1970, a castigar o Iémen por se ter oposto à primeira invasão norte-americana do Iraque (1990-91).
Usando tanto a “ajuda” oficial como a não-oficial (sob a forma de subornos aos líderes tribais), a questão da fronteira e a promoção da variante wahabita do salafismo (o fundamentalismo sunita) associada ao trono saudita, a Arábia Saudita tem tentado constantemente controlar o Iémen tanto quanto possível para impedi-lo de se tornar uma ameaça à sua própria estabilidade. A crescente islamização salafista do país com Saleh e os sauditas, que começou em meados dos anos 1980, afastou as mulheres dos mercados e de outros lugares públicos e forçou-as cobrirem-se quase completamente, juntamente com outras restrições religiosas impostas numa sociedade que durante muito tempo tinha sido relativamente tolerante, tanto nas relações entre religiões (na maioria sunitas, xiitas, judeus e outros) como na relação entre a religião e a vida pública.
O movimento houthi, também conhecido como Ansar Allah (Partidários de Deus), diz que não visa tomar permanentemente o controlo do país nem tornar as suas convicções minoritárias, a variante zaydista do xiismo, numa religião de estado. De facto, nem todas as tribos houthis são zaydistas. Mas a religião é um factor importante, incluindo na coesão do projecto houthi para acabar com a exclusão das elites tribais houthis da estrutura do poder central e obterem a sua “parte do bolo” que lhes foi negado pelo regime de Saleh.
Os interesses geopolíticos do Irão ao agir para contrariar os objectivos sauditas coincidem com as divisões sunitas-xiitas. Mas se esta guerra civil tem tendido a seguir linhas religiosas, não é porque tem sido alimentada por inimizades antigas entre pessoas de religiões diferentes que simplesmente não se conseguem dar bem no Iémen, nem sequer pelo conflito xiita-sunita a nível internacional. De facto, no passado, a Arábia Saudita tem defendido os seus interesses independentemente das linhas religiosas. Durante a guerra civil do Iémen (1962-1970), os sauditas, em aliança com o rei da Jordânia e o Xá do Irão de maioria xiita, apoiaram os monárquicos xiitas contra a revolta republicana, maioritariamente sunita.
Pelo menos parte do que tem tornado a religião num factor é o crescente poder e agressiva intolerância do fundamentalismo islâmico em geral e o entrelaçamento deste elemento com os interesses geopolíticos da Arábia Saudita e dos EUA e, de uma forma secundária, os do Irão. Esses interesses estão em acentuada e crescente oposição aos do povo do Iémen.
A economia do Iémen é baseada em torno de uma pequena elite vinda das forças armadas, das tribos, da classe política e do sector privado. O sistema de patrocínio [subornos de subserviência] é baseado nos rendimentos das exportações de petróleo e no acesso à recém-liberalizada economia. Cerca de 10 famílias chave e grupos de negócios com ligações íntimas ao ex-presidente controlam mais de 80 por cento das importações, indústrias, processamento, bancos, telecomunicações e transporte de mercadorias. A maioria das pessoas trabalha na terra – onde a depleção das reservas de água se tornou uma barreira à agricultura – ou como mão-de-obra no Iémen e noutros países do Golfo.
Um maior aumento da miséria do povo é a forma como a actual situação se conjuga com a muito importante localização geopolítica do país: o estreito de Bab-el-Mandeb, situado entre o Iémen na Península Árabe e o Jibuti e a Eritreia no Corno de África, liga o Mar Vermelho ao Golfo de Adém. A maioria das exportações do Golfo Pérsico que atravessam o Canal do Suez e o oleoduto sob o Mediterrâneo também atravessam o Bab-el-Mandeb. É uma ligação estratégica entre o Oceano Índico e o Mar Mediterrâneo.
Os sauditas exageram o papel do Irão no Iémen para legitimarem a sua intervenção nesse país. De facto, o apoio iraniano aos houthis não é um factor importante no caos do Iémen. Esse apoio iraniano é recente e o bloqueio naval restringe a capacidade deles para fornecerem armas. O Irão parece querer usar a sua influência entre os houthis como cartada nas suas negociações com o Ocidente.
A guerra da Arábia Saudita no Iémen não seria possível sem o apoio dos EUA. Washington está extremamente preocupada com o controlo dos estreitos através dos quais flui muito do petróleo do Médio Oriente. Também está preocupada com os possíveis perigos do fundamentalismo sunita na região. Até agora, os EUA têm considerado que a principal ameaça aos seus interesses é representada pela Al Qaeda na Península Arábica, concentrada no escassamente povoado sudeste do Iémen e alvo dos ataques norte-americanos de drones mas não dos ataques aéreos liderados pelos sauditas.
Tal como os houthis procuram formar uma vasta coligação com qualquer base possível contra os sauditas e o actual fantoche deles, incluindo com unidades militares do velho regime e agora, paradoxalmente, até mesmo com o próprio Saleh, a Arábia Saudita parece ficar contente em deixar a Al-Qaeda florescer desde que ela vise os houthis. Agora, o Daesh (Estado Islâmico) fez uma entrada dramática nesta cena com carros-bomba e outros ataques em Sana que sinalizam o objectivo deles de eliminarem os “apóstatas” houthis. Parece haver apoio ao Daesh entre a elite saudita, mas o projecto do Daesh de um califado é arriscado para a monarquia.
A Arábia Saudita, um local de acumulação de capital por si só e já não apenas um apêndice dos EUA e da Grã-Bretanha, tem todo o interesse em manter o injusto sistema económico e social e as estruturas políticas do Iémen. Por sua vez, a Arábia Saudita e os seus aliados do Golfo são simultaneamente pilares da ordem política, social e económica que o imperialismo tem imposto no mundo árabe e fontes de disrupção dessa ordem. Todos estes factores intersectam-se de uma forma poderosa com a religião, incluindo a ascensão do fundamentalismo à escala regional e mesmo global.
Assim, a posição dos EUA é complexa: ao mesmo tempo que apoia a Arábia Saudita nesta guerra, os seus objectivos não são idênticos e está a intervir independentemente dos sauditas, do Qatar (onde está baseada uma frota naval norte-americana) e da coligação deles.
Muitos dos jovens do Iémen, num país onde metade da população tem menos de 20 anos, sabem que não há nenhum futuro para eles no sistema. A Arábia Saudita sabe disso. O Irão e os EUA também sabem. É por isso que o Iémen se tornou num foco da crise, numa fonte contínua de convulsão no Golfo e no Médio Oriente no seu conjunto, uma região que está ficar cada vez mais explosiva.