A Plataforma Gueto publicou o seguinte comunicado na sua página (https://plataformagueto.wordpress.com/2017/07/15/sobre-o-despacho-do-caso-5-de-fevereiro-de-2015/).

Sobre o Despacho do Caso 5 de Fevereiro de 2015

A Plataforma Gueto vem por este meio dizer que recebeu com muito agrado o despacho do Ministério Público sobre o caso de 5 de fevereiro de 2015. No passado dia 11 de julho de 2017, segundo o despacho, 18 agentes da Polícia de Ordem Pública (PSP) da Esquadra de Alfragide foram acusados pelo Ministério Público de prática de crimes de denúncia caluniosa, ofensa à integridade física qualificada, falsidade de testemunho, tortura e outros tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos, acrescidos de falsificação de documento agravado e sequestro agravado. Além disso, segundo o despacho, os agentes da esquadra de Alfragide foram movidos pelo sentimento de ódio racial a fim de causarem sofrimento aos seis jovens do bairro Alto da Cova da Moura no dia 5 de fevereiro de 2015. Um acaso que afetou um dos nossos militantes e apoiantes. O caso foi recebido com espanto por parte dos portugueses, o que evidencia que desconhecem a sua própria sociedade. Porém, é preciso esperar pelo julgamento para ver o que vai acontecer! Não vamos lançar foguetes antes da festa! Trata-se de um bom precedente. Mas, o que não faltam são casos de racismo acompanhado de tortura nos bairros negros de Lisboa. Por exemplo, na passada sexta-feira, uma Polícia da Amadora brutalizou um jovem negro. E quando o jovem perguntou qual razão de estar a ser agredido, o policial respondeu que é porque o jovem estava a olhar para ele. Veja-se se isso é possível. A verdade é que não há respeito pelo Estado de direito nesses bairros. Isto é, o corpo negro habita a zona do não-ser e esta zona não é abrangida pelo Estado de direito porque o estado é ontologicamente branco, masculino e burguês. Por essa razão, a polícia se comporta nesses bairros como se estivessem num estado de guerra. E como bem disse Carl Schmidt “a guerra é negação ontológica de um outro ser humano”. Por essa razão a violência racista da Polícia contra esses jovens negros é tomada como algo justificável. Não é isso que acontece nesses bairros? Há uma linha que separa os humanos dos considerados não-humanos ou sub-humanos. No bairro dos humanos, ou seja, no bairro dos brancos os agentes respeitam a lei, pode-se conversar, há possibilidade para o diálogo, negociação, etc. No caso dos bairros habitados por negros, o que existe é estado de exceção. Não existe possibilidade para diálogo e muito menos negociação. Na Cova da Moura ou noutro bairro qualquer de maioria, a tentativa de estabelecer um diálogo com a polícia é visto pela própria polícia como manifestação de desordem. A exigência do negro pelo respeito pela sua dignidade humana é tomada como desacato à autoridade. Não foi isso que aconteceu com os jovens do caso de 5 de fevereiro, que foram pedir informação sobre o estado do jovem que tinha sido brutalizado. E foram recebidos com tiros e pontapés!?

Essa atitude é corroborada pela nossa prática ativa dos nossos bairros. Porque durante vários anos, a Plataforma Gueto fez campanhas, através daquilo que nós chamámos de Manual de Sobrevivência: como te defenderes da violência policial. Esse manual explica às pessoas os seus direitos e deveres. Essa iniciativa foi feita não porque acreditávamos que saber as leis daria algum tipo de proteção a nossa população. Mas sim para que a população tivesse a noção que os seus direitos não eram respeitados. Uma prática que visasse despoletar a consciência da população. Então, o que passou a acontecer é que quando os jovens negros citavam as leis á polícia, muitas vezes, eram atacados na mesma. E a Polícia dizia “este preto quer me ensinar as leis”. E os irmãos e irmãs passaram a temer citar as leis à Polícia. Isso mostra que o próprio Estado anda a violar as suas próprias leis. Durante mais de uma década acompanhámos e denunciámos os casos de violência sistemática e racista por parte das polícias portuguesas. Essa campanha foi feita tanto em Portugal como nos restantes países europeus. Aqui, em particular, fomos taxados de loucos, exagerados, mentirosos, dramáticos. Até por parte de pessoas que se consideram “os melhores amigos dos pretos”. Todas as autoridades competentes meteram a cabeça na areia que nem avestruz e fingiram que nada se passava, inclusive o Alto Comissariado para as Migrações, que agora diz ter acompanhado esses casos. É uma falácia. Por incrível que pareça, quando questionámos a inércia dessa instituição, chamaram-nos de extremistas da esquerda e da direita. O que é ridículo. Os partidos, da esquerda à direita, também tiveram essa postura, salvo neste caso concreto. Mas é preciso perguntar porquê que isso acontece? Porquê há essa relação violenta entre a polícia e os jovens negros? Simplesmente porque o colonialismo oficial acabou mas a sua ideologia e os seus valores se perpetuam. O que assistimos são resquícios do colonialismo. Se só agora o Ministério Público tomou essa atitude é porque o próprio racismo e o seu espirito negacionista contribuíram para tal.

Por fim, queremos dizer ao nosso povo que o despacho do Ministério Público é um marco histórico, mas há ainda muito por fazer a fim de erradicar o racismo institucional existente no corpo da polícia, nos tribunais, nos partidos, nos meios de comunicação, ou seja, em todas as instituições públicas e privadas desta sociedade. É preciso questionar o privilégio branco que funciona em detrimento dos povos racializados, aos quais foram historicamente negados o direito à humanidade. Não nos devemos embarcar nos entusiasmos. Devemos nos organizar de forma cada vez melhor para enfrentar lutas futuras. E para não sermos apanhados desprevenidos. A transformação só advém com a luta, porque se o negro hoje tem alguns direitos é porque os nossos antepassados lutaram e sangram por isso.

Sem Justiça, Não haverá paz

Plataforma Gueto

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