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Este documento foi publicado na Demarcations: A Journal of Communist Theory and Polemic [Demarcações: Uma revista de teoria e polémica comunistas], n.º 4, inverno de 2015:

Nota da Demarcations: Este texto é um excerto da transcrição de uma palestra de Bob Avakian, Ruminations and Wranglings [Reflexões e Discussões]. A transcrição foi editada e foram acrescentadas notas finais para publicação. A palestra completa está disponível em:

Tradução: paginavermelha.org. Revisão: julho de 2024.

Reflexões e Discussões

Sobre a importância do materialismo marxista, o comunismo como ciência, o trabalho revolucionário com sentido e uma vida com sentido
(Excerto)

Por Bob Avakian, Presidente do Partido Comunista Revolucionário, EUA

“E essa aparência seduz os democratas”

Voltando à questão de que os indivíduos na sociedade não existem puramente enquanto indivíduos mas, num sentido mais fundamental, como parte de agrupamentos sociais e de como isto se baseia em certas relações sociais específicas e fundamentalmente em relações de produção, quero regressar a alguns pontos que têm a ver com o que Marx salienta claramente no ensaio dele O 18 de Brumário de Louis Bonaparte, especificamente sobre a questão dos intelectuais democratas e da relação deles com a pequena burguesia (a “classe média”). Comecemos com o seguinte, da polémica contra K. Venu, que foi escrita há mais de 15 anos mas que continua muito pertinente.1 Vou citar primeiro a passagem completa e depois vou comentar algumas partes dela que são particularmente relevantes em relação ao que está a acontecer hoje em dia:

Aqui, as seguintes análises de Marx são muito pertinentes. Comentando, significativamente, uma variante pequeno-burguesa da social-democracia que, num contexto diferente e de uma forma algo diferente, também defendia “a transformação da sociedade por um processo democrático, porém uma transformação dentro dos limites da pequena burguesia”, Marx continua dizendo:

“[...] não se deve formar a conceção estreita de que a pequena burguesia, por princípio, visa impor um interesse de classe egoísta. Ela acredita, pelo contrário, que as condições especiais para a sua emancipação são as condições gerais sem as quais a sociedade moderna não pode ser salva nem evitada a luta de classes. Não se deve imaginar, tampouco, que os representantes democratas sejam na realidade todos shopkeepers (lojistas) ou defensores entusiastas destes últimos. Segundo a sua formação e posição individual podem estar tão longe deles como o céu da terra. O que os torna representantes da pequena burguesia é o facto de que a sua mentalidade não ultrapassa os limites que esta não ultrapassa na vida, de que são consequentemente impelidos, teoricamente, para os mesmos problemas e soluções para os quais o interesse material e a posição social impelem, na prática, a pequena burguesia. Esta é, em geral, a relação que existe entre os representantes políticos e literários de uma classe e a classe que representam. [...]”2 (Ênfase no original)

Ao examinarmos isto em mais profundidade, foquemo-nos primeiro na muito perspicaz observação de Marx de que a pequena burguesia “acredita [...] que as condições especiais para a sua emancipação são as condições gerais sem as quais a sociedade moderna não pode ser salva nem evitada a luta de classes”. Com que frequência vemos, hoje em dia, muito para nossa frustração, este fenómeno manifestar-se na política e noutras esferas da sociedade? O pequeno-burguês, e em particular o intelectual pequeno-burguês, acerca-se continuamente e dá expressão à noção de que os interesses estreitos, e as “soluções” ilusórias, que correspondem aos esforços e inclinações espontâneos das pessoas nesta posição (a “classe média”), podem de alguma maneira ser impostos a toda a sociedade e que irão corrigir os males da sociedade, ou pelo menos melhorar e mitigar as contradições objetivamente profundas que afetam a sociedade e que originam repetidamente conflitos antagónicos, nos quais esta “classe média” geralmente fica envolvida... no meio.

E Marx continua: “Não se deve imaginar, tampouco, que os representantes democratas sejam na realidade todos lojistas ou defensores entusiastas destes últimos”. Marx é um materialista dialético, não um materialista vulgar. Ele deixa claro:

Segundo a sua formação e posição individual podem estar tão longe deles como o céu da terra. O que os torna representantes da pequena burguesia é o facto de que a sua mentalidade não ultrapassa os limites que esta não ultrapassa na vida, de que são consequentemente impelidos, teoricamente, para os mesmos problemas e soluções [...]

Veja-se bem: os mesmos problemas e soluções. Não apenas as mesmas soluções, mas os mesmos problemas e soluções. Mesmo em relação à maneira como veem os problemas, bem como as soluções que eles acham ter encontrado, estes intelectuais democratas elaboram ideias e propostas teóricas que, em última análise, estão em linha com para onde “o interesse material e a situação social impelem [...] a pequena burguesia”.

E depois segue-se uma conclusão muito importante: “Esta é, em geral, a relação que existe entre os representantes políticos e literários de uma classe e a classe que representam”. Aqui, uma vez mais, Marx está a avançar com uma correta compreensão de como as ideias são um reflexo da realidade material e, mais especificamente, de uma certa situação social — mas elas não são isso de uma forma grosseira, não o são num sentido reducionista, de um para um. Em última análise, salienta ele, as ideias dos intelectuais democratas não ultrapassam os limites dentro dos quais a pequena burguesia prática, por assim dizer, está confinada pelos seus interesses económicos e pela sua situação social. Isto é um ponto muito profundo e muito importante. Mas, uma vez mais, não é uma relação linear de “um para um”. Para ajudar a ilustrar isto, vale a pena referir o relato que li de uma discussão relacionada com a maneira como eu tinha aplicado esta afirmação de Marx ao papel de alguém como Amy Goodman. Nessa discussão, uma pessoa disse: “Então, Amy Goodman, ela é uma lojista”. Não... ah-ah-ah [rindo, fazendo o som de uma “buzina” num concurso televisivo, quando é dada uma resposta errada]. Isto é não compreender o essencial. A questão é a relação entre os intelectuais democratas e os lojistas — a relação dialética — e a forma como, na formação das ideias deles, esses intelectuais podem proceder de uma maneira muito diferente da maneira como durante todo o dia o lojista pensa em relação a problemas práticos, ou mesmo do modo como o lojista pensa a política, mas os intelectuais democratas — enquanto representantes da pequena burguesia no domínio das ideias — não escapam ao quadro e aos limites dentro dos quais estão confinadas as atividades mais práticas (por assim dizer) da pequena burguesia. E é extremamente importante compreender isto, no seu significado completo — e na sua aplicação viva do materialismo dialético, ao contrário do materialismo mecânico e do idealismo.

O parágrafo seguinte do 18 de Brumário de Marx, que também é citado no livro Falso/Verdadeiro, elabora ainda mais e faz mais luz sobre este ponto. O parágrafo começa assim:

Mas o democrata, por representar a pequena burguesia, ou seja, uma classe de transição na qual os interesses de duas classes perdem simultaneamente as suas arestas, imagina estar acima dos antagonismos de classes em geral.

Aqui, Marx está a falar do facto de a pequena burguesia ser uma classe que não tem futuro, enquanto tal, que é incapaz de governar a sociedade, enquanto tal, embora representantes da pequena burguesia possam de facto chegar a presidir à sociedade, ou a dirigir a sociedade, em nome do proletariado ou em nome da burguesia — “transitando”, por assim dizer, para assumir o ponto de vista e os interesses de classe de uma ou outra destas duas classes fundamental e antagonicamente opostas. É por isso que Marx se refere à pequena burguesia como classe de transição no seio da qual os interesses de duas classes — ou seja, a burguesia e o proletariado — “perdem simultaneamente as suas arestas”. É por isso que o democrata pequeno-burguês “imagina estar acima dos antagonismos de classes”.

Quantas vezes já ouvimos ser expresso este ponto de vista, incluindo em relação às recentes eleições e ao triunfo de Obama nessas eleições?! Por exemplo, recentemente alguém escreveu ao nosso jornal queixando-se da nossa denúncia de Obama e declarando: Penso que as pessoas estão com um estado de espírito mais de sarar que de conflito.

Isto é uma expressão clássica da perspetiva de classe de pessoas da pequena burguesia — que, tal como Marx tão gráfica e perspicazmente afirmou, comummente se imaginam a si mesmas “acima dos antagonismos de classes”. Elas imaginam que podem agitar a varinha mágica do idealismo pequeno-burguês e eliminar os conflitos objetivos de classe e o antagonismo e a luta que estes conflitos originam, repetidamente, sob uma ou outra forma.

Marx prossegue:

“Os democratas admitem que se defrontam com uma classe privilegiada” — estão a ver, Marx é muito sofisticado e matizado na análise dele — “Os democratas admitem que se defrontam com uma classe privilegiada mas eles, com todo o resto da nação, constituem o povo. O que eles representam é o direito do povo; o que lhes interessa é o interesse do povo. Por isso, quando um conflito está iminente, não precisam de analisar os interesses e as posições das diferentes classes.” (Ênfase no original)

De novo, isto é extremamente perspicaz e extremamente importante. Vale muito a pena regressar repetidamente a isto e extrair mais e mais disto, precisamente em relação à realidade em desenvolvimento e às formas como isto se manifesta constantemente — incluindo as formas como agora se coloca em termos muito agudos. Embora este fenómeno encontre expressão repetida de cada vez que há eleições numa democracia burguesa — e nos EUA em particular — tem sido expressa de uma forma muito intensa nestas recentes eleições, em torno de Obama, as quais tiveram sem dúvida a mais elevada taxa de ilusões, enganos e sobretudo autoenganos do que quaisquer outras eleições desde há muito tempo. Isto definiu um padrão muito elevado de ilusão, engano e autoengano, mesmo para eleições burguesas.

Juntamente com isto, a seguinte citação dos Grundrisse, também reproduzida no livro Falso/Verdadeiro, penetra para além de muita da aparência externa das coisas e da ofuscação feita por tantas pessoas (conscientemente ou não) da realidade fundamental e essencial:

Na relação monetária, no sistema de trocas desenvolvido (e essa aparência seduz os democratas), são de facto rompidos, dilacerados, os laços de dependência pessoal, as diferenças de sangue, as diferenças de cultura etc. (todos os laços pessoais aparecem ao menos como relações pessoais); e os indivíduos parecem independentes (essa independência que, aliás, não passa de mera ilusão e, mais justamente, significa apatia — no sentido de indiferença), livres para colidirem uns contra os outros e, nessa liberdade, trocar; mas assim parecem apenas para aquele que abstrai das condições, das condições de existência sob as quais esses indivíduos entram em contacto (e essas [condições], por sua vez, são independentes dos indivíduos e aparecem, apesar de geradas pela sociedade, como condições naturais, i.e., incontroláveis pelos indivíduos). [...] Uma análise mais precisa dessas relações externas, dessas condições, mostra a impossibilidade dos indivíduos de uma classe, etc., de superá-las ‘em massa’ sem as abolir.3 (Ênfase no original)

Aqui, dado que Marx a colocou entre parênteses, é possível não ver, ou não reparar em toda a sua extensão, uma observação extremamente importante: No sistema desenvolvido de trocas encarnado na relação monetária, a aparência das coisas — o aspecto externo e não-essencial das coisas — seduz o democrata a acreditar que os vários indivíduos que estão relacionados entre si através deste sistema de trocas são realmente independentes e autónomos, quando na realidade eles estão enredados, e confinados, dentro de relações de produção específicas, das quais o sistema desenvolvido de trocas, baseado no dinheiro, é uma expressão subordinada. Num aspecto significativo — e isto é verdade mesmo quando varia o grau em que isto é conscientemente pensado — esses democratas veem o sistema capitalista, e o seu modo de trocas, em contraste com o sistema feudal em que os laços de dependência pessoal, as distinções de sangue, de cultura, etc., são abertamente determinantes e marcadores do estatuto social. Em contraste, na sociedade capitalista essas distinções externas ao mercado são, pelo menos em grande medida e na essência, dilaceradas e, tal como afirma Marx, os laços pessoais aparecem todos como pessoais, e não como sendo determinados pelo costume e pela tradição, ou mesmo pela lei. Isto também faz parte do que “seduz” o democrata.

Mas o que é, realmente, esta muito vangloriada independência e autonomia das pessoas enredadas nas relações capitalistas de mercado? Tal como Marx causticamente a caracteriza, esta independência é mais justamente chamada indiferença, porque as relações capitalistas não só permitem mas requerem e compelem as pessoas a serem fundamentalmente indiferentes à situação e ao destino das outras — e a liberdade que as pessoas têm dentro dessas relações é, como diz Marx, essencialmente a liberdade de colidirem umas contra as outras.

No fundo, tal como Marx também deixa claro, a independência e a autonomia que são tão frequentemente proclamadas como característica essencial da sociedade burguesa, marcando-a como superior a todas as outras formas de sociedade, é uma ilusão. De facto, a situação em que as pessoas se encontram, e a “liberdade” que de facto têm, são definidas, e limitadas, pelas “condições de existência sob as quais esses indivíduos entram em contacto” — uma vez mais, fundamentalmente as relações de produção do capitalismo, e as correspondentes relações de trocas e distribuição — as quais, tal como salienta Marx, são independentes dos indivíduos. O que os democratas tipicamente fazem — uma vez mais, refletindo a posição e a perspetiva da pequena burguesia, entendendo isto num sentido materialista dialético e não mecânico — é precisamente “abstrair” a situação dos indivíduos destas relações e condições fundamentais e essenciais. Ao mesmo tempo, eles são seduzidos pela aparência de que as condições sociais — condições que são um produto do desenvolvimento histórico da sociedade e daquilo a que esse desenvolvimento conduziu, as condições e as relações que a sociedade encarna e que a caracterizam em qualquer momento dado — são “condições naturais”, condições que são simplesmente “fornecidas” pela natureza, ou que se conformam à “natureza das coisas”, por assim dizer, e mais especificamente a uma “natureza humana” supostamente essencial(ista) e imutável.

Quantas vezes já ouvimos pessoas a dizer: “Sim, estou de acordo, há muitas coisas erradas na sociedade — mas isso é apenas a maneira como as pessoas são — isso é a natureza humana, é por isso que as coisas são como são, e é por isso que nunca podem ser realmente mudadas?”

Por estas razões, os democratas — e outras pessoas, desde que adiram a esta perspetiva — não são capazes de reconhecer esta verdade muito fundamental: não só os diferentes indivíduos estão “situados” dentro de um sistema mais vasto de relações sociais e de produção — e, na sociedade de classes, de classe — que evoluíram historicamente e que são fundamentalmente independentes da vontade dos indivíduos, enquanto indivíduos, mas, embora alguns indivíduos possam alterar o seu estatuto social e de classe na sociedade capitalista, as massas populares — e em particular as massas exploradas dos setores mais baixos do proletariado e outros membros dos grupos sociais oprimidos cujo estatuto de opressão é parte integrante e indispensável da sociedade capitalista prevalecente — não o podem fazer nas condições e relações atuais. Tal como Marx muito correta e profundamente insiste, podem fazê-lo, em massa, apenas através da destruição destas condições e relações — apenas através do derrube do sistema que encarna, e impõe, estas condições e relações.

É por isso, claro, que é necessária uma transformação radical da sociedade, uma revolução, para que os indivíduos em massa — por outras palavras, as massas de explorados e oprimidos, aprisionados nestas relações sociais — as ultrapassem e criem condições e relações sociais radicalmente diferentes, uma base económica e uma superstrutura radicalmente diferente: para avançar para o comunismo e conseguir as “4 Todas”.

Assim, de tudo isto, podemos ver a extrema relevância destas afirmações de Marx, dos Grundrisse e do 18 de Brumário, em relação às noções comummente assumidas que prevalecem na sociedade atual — e como dissecação e refutação delas — seja na forma de teorias e filosofias mais desenvolvidas, seja simplesmente de preconceitos e conceções comuns erradas, sobre a natureza das coisas, e a “natureza humana” em particular, e sobre a possibilidade — ou, tal como é frequentemente concebido de uma forma espontânea, a impossibilidade — da revolução e do comunismo.

Cada classe procura refazer o mundo à imagem dela — mas só uma classe não o pode fazer com base na espontaneidade

Isto traz-me ao ponto seguinte — sem, de facto, cair no reducionismo e na reificação — que é como o facto de que cada classe irá tentar refazer o mundo à imagem dela é um fenómeno muito importante em toda a vida social, e particularmente na luta social. Especialmente em cada revolução, mas também em cada grande transformação social ou movimento social, diferentes forças de classe tentam tomar as rédeas e impor as suas soluções, de acordo com a maneira como veem os problemas. Mais especificamente, é importante compreender como é que as forças da burguesia e de outras classes reacionárias tentam fazê-lo, especialmente no contexto de qualquer grande convulsão social ou luta social, e mais especialmente no contexto da aproximação de uma revolução. Examinemos brevemente alguns exemplos disto.

** O Irão durante a revolução de 1978-79, onde houve uma sublevação em massa em que diferentes forças de classe estavam em contenda e em que, infelizmente, os representantes das massas exploradas e oprimidas e, em particular, do proletariado — ou seja, os comunistas — estavam enfraquecidos, em relação a outras forças de classe, sobretudo devido à cruel repressão que durante várias décadas tinha sido levada a cabo contra o movimento comunista sob o reinado do Xá, apoiado pelo imperialismo norte-americano. No redemoinho e agitação dessa revolução, as forças de classe que representavam os interesses da burguesia — e, em alguns aspectos, as relações feudais — manobraram, e não só manobraram como receberam um poderoso apoio, para tomarem as rédeas dessa revolução e a transformarem no horror em que se tornou desde então, com a fundação da República Islâmica do Irão e com a sua existência há quase três décadas.

É necessário aprender ainda mais sobre isto, mas já se sabe o suficiente para que fique claro que os imperialistas norte-americanos, que inicialmente apoiaram o Xá, mesmo face a esta sublevação em massa, depois manobraram, através dos seus contactos no interior do exército iraniano então existente e noutras partes das estruturas dominantes nessa sociedade, para impedir a revolução de amadurecer de uma forma mais completa. Eles atuaram de forma a interromper um processo através do qual as massas poderiam testar mais completamente na prática, bem como debater ao nível da linha e da teoria, diferentes programas e diferentes forças que representam diferentes soluções. Por sua vez, os imperialistas norte-americanos, e os elementos através dos quais eles puderam trabalhar, manobraram as coisas para que as forças agrupadas à volta de Khomeini conseguissem, de facto, obter o apoio necessário para poderem tomar e consolidar o poder. Os imperialistas calcularam que poderiam lidar melhor com isso que com uma situação revolucionária continuamente em desenvolvimento — uma situação em que os comunistas, assumindo que eles teriam podido encontrar o seu rumo e compreender e aplicar de uma forma mais completa uma linha genuinamente comunista e revolucionária, teriam podido ganhar um número cada vez maior de pessoas durante essa convulsão social, através de as massas testarem diferentes programas e verem quais os que realmente iriam levar a uma direção que servia os seus interesses fundamentais, e quais iriam parar a meio do caminho, tentando reter as coisas e manter as coisas confinadas dentro de um quadro de opressão.

Uma vez mais, isto é algo que precisa de ser explorado de uma forma mais completa — embora já tenha sido explorado em grande medida, em particular pelos nossos camaradas comunistas iranianos. Estou aqui meramente a tentar esboçar uma imagem básica para ilustrar este ponto extremamente importante sobre como diferentes forças de classe entram na refrega e, sobretudo no contexto de grandes convulsões sociais e mais particularmente de revoluções iminentes, tentam tomar as rédeas e impor as suas soluções — e quais são as consequências quando diferentes forças de classe o conseguem fazer.4

** A situação na África do Sul nos anos 1980 e início dos anos 1990. Houve uma imensa intensificação da luta revolucionária nesse país nesse período, em particular nos bairros de lata urbanos, mas que também se propagou aos bantustões e entre as massas populares negras de toda a África do Sul. E, a certa altura, sobretudo com vastas mudanças no mundo, entre as quais profundas mudanças na União Soviética e no seu antigo bloco — primeiro, a ascensão de Gorbachov a líder do partido e do estado soviéticos, e depois o fim e a dissolução da União Soviética e a desagregação do seu antigo império, enquanto tal — os imperialistas norte-americanos, em aliança com a classe dominante supremacista branca da África do Sul, reconheceram que não só tinham a necessidade mas também a liberdade de mudar a forma de regime da África do Sul: para abolirem o sistema de apartheid, e mesmo para permitirem que a população africana maioritária participasse em eleições e escolhesse sul-africanos negros como dirigentes do país, a começar com Mandela.

Mas, uma vez mais, o resultado disto foi que o processo revolucionário foi abortado. Há momentos, e situações, em que os abortos são bons, e momentos e circunstâncias em que são maus. Este foi um em que foi muito mau — um processo revolucionário abortado. Apesar do que constantemente nos é pregado nestes dias — incluindo pelos “liberais” e “progressistas” da classe dominante, e pelos que seguem os passos deles — abortar um feto não é, de forma nenhuma, sempre mau (ou, “no melhor dos casos”, um “mal necessário”). Mas é muito mau abortar um processo revolucionário — e foi isso que aconteceu na África do Sul. E parte de todo o arranjo aí, elaborado sob a influência predominante da classe dominante dos EUA, foi que a África do Sul iria manter-se dentro do quadro da dominação imperialista, e mesmo das estruturas e ditames do FMI (Fundo Monetário Internacional), e por aí diante. Isto foi claro e explícito.

Várias pessoas têm analisado isto, pelo menos parcialmente, mas a questão essencial é a seguinte: toda a forma como Mandela foi colocado à frente pelos imperialistas, e pelos aliados deles nas estruturas dominantes na África do Sul, não só não melhorou quanto ao fundamental a situação das massas dos africanos oprimidos e explorados nesse país, como de muitas formas este novo arranjo levou a que a situação deles piorasse, sobretudo a nível económico, mas também social e moral, por assim dizer, pelo que agora, e por enquanto, uma sublevação revolucionária de massas e todo o sentido de propósito e todo o sentido de uma luta por um futuro melhor, e todos os elementos inspiradores que estão associados a isso, foram substituídos em grande medida e em grau crescente pelo crime, em particular entre o mesmo tipo de jovens que há um par de décadas teria sido a coluna vertebral de uma luta revolucionária. E isto levou à desmoralização, à confusão, às ilusões que não só foram alimentadas como ganharam raízes entre as massas da África do Sul, mas cuja influência se tem propagado aos oprimidos noutras partes do mundo.

E isto foi, uma vez mais, uma política muito consciente — uma série de passos adotados de uma maneira muito consciente por parte dos imperialistas e de certos estratos da elite branca da África do Sul, mas também por parte de certos estratos burgueses entre os negros oprimidos da África do Sul cujas aspirações não foram além de um arranjo deste tipo, porque os interesses deles, enquanto grupo social (classe), estavam, de facto, em grande parte, em linha com a mera abolição de certas formas de segregação formal (apartheid) e da opressão que lhes está associada, ao mesmo tempo que deixou intactas as relações fundamentais de opressão e exploração — que de facto conduziram a consequências em muitas formas ainda piores ao longo das quase duas décadas desde que o apartheid foi abolido.

Isto é uma lição profunda que deve ser profundamente compreendida e interiorizada, caso as massas populares, não só na África do Sul mas em todo o mundo, realmente queiram conseguir lutar conscientemente pela sua emancipação e pela emancipação de toda a humanidade.

** Uma outra ilustração disto é o contraste entre a Índia e a China em relação ao fim do antigo colonialismo e ao surgimento de uma nova (ou não assim tão nova) sociedade num país e no outro. Aqui, estamos a falar de dois caminhos fundamentalmente opostos: um nascido da luta revolucionária e, sim, da guerra revolucionária, sob a liderança global de Mao e do Partido Comunista da China, que resultou no derrube do sistema então existente, numa rutura com a dominação imperialista, embarcando num caminho de transformar radicalmente a sociedade com o objetivo final de eliminar todas as relações de exploração e opressão e as instituições e ideias que lhes estão associadas e as reforçam; e, por outro lado, o caminho da Índia, representado por Gandhi e algumas outras pessoas, de procurar a conciliação com o imperialismo — procurando pôr fim ao colonialismo formal mas mantendo as coisas dentro de um quadro de opressão, tanto em termos das relações internacionais em que a Índia está enredada e oprimida, como em termos das relações económicas e sociais dentro da própria Índia, não sendo de menor importância a horrenda opressão das mulheres, bem como o sistema de castas, os ultrajes continuamente cometidos contra os chamados “intocáveis”, e por aí adiante. Num caso e no outro, trata-se de forças de classe específicas — forças de classe muito diferentes e fundamentalmente opostas — agindo para alcançarem certas soluções, de acordo com os seus interesses e com a sua perspetiva e, em conformidade com isso, a maneira como veem os problemas.

** Ou poderíamos ver a luta dentro do próprio Partido Comunista da China, sobretudo quando se tornou na força dirigente dentro do estado socialista após a tomada do poder e o derrube da dominação imperialista e do regime reacionário da China em 1949. Especialmente quando esta luta, dentro do Partido Comunista da China, atingiu o seu auge com a Grande Revolução Cultural Proletária (GRCP), na década desde meados dos anos 1960 até a morte de Mao em 1976, tornou claro que havia dois pontos de vista e programas agudamente opostos que representavam não só indivíduos mas também forças sociais — ou seja, diferentes forças de classe — que existiam ambos no interior do próprio Partido Comunista da China, e que tinham posições de autoridade e liderança no interior dele. Foi por isto que Mao fez a inovadora análise que está encapsulada na seguinte afirmação dele, popularizada durante a GRCP: Vocês estão a fazer a revolução mas não sabem onde está a burguesia. Está dentro do próprio Partido Comunista. Os seguidores da via capitalista (dentro do Partido) continuam na via capitalista.

Algumas questões sobre o papel dos intelectuais e o processo revolucionário

Isto não foi apenas uma questão de os burocratas no partido e no estado chinês terem enriquecido ou ficado famintos de poder em resultado de deterem posições de autoridade — não foi essencialmente uma questão de burocracia. Foi uma questão de diferentes pessoas que, sim, eram intelectuais, mas (regressando à perspicácia de Marx) intelectuais que nas suas maneiras contrastantes de pensar, e nas políticas e programas que tinham desenvolvido — por outras palavras, nas linhas deles — representavam duas classes fundamentalmente opostas (pensem novamente nas muito importantes observações de Marx sobre as relações entre as classes e os representantes políticos e literários dessas classes). Ou, para dizer isto de outra maneira, a questão, sobre a qual houve uma luta antagónica, era: À imagem de que classe social deveria ser refeita essa sociedade (e, em última análise, o mundo)? À imagem do proletariado — não num sentido reducionista ou reificado mas no sentido dos interesses dele como classe social que residem em resolver definitivamente as contradições do capitalismo, em particular a sua contradição fundamental entre a produção socializada e a apropriação privada, e avançar para abolir todas as distinções de classe e todas as relações de produção, relações sociais, ideias e instituições que lhes estão associadas (em suma, concretizar as “4 Todas”)? Ou deve a sociedade (e em última instância o mundo) ser refeita de acordo com o ponto de vista daquele estrato que tinha tomado uma forma concentrada no interior do Partido Comunista da China, que procurava somente tornar a China num país poderoso e que estava decidida a que a melhor maneira de o fazer era instituir o que são objetivamente relações económicas capitalistas e implementar políticas que dariam mais vida e reforçariam todas as relações que estão associadas às relações económicas capitalistas, e que colocariam a China diretamente dentro do quadro global da dominação e da exploração imperialistas à escala mundial?

Isto não é uma questão de “lutas pelo poder” entre indivíduos ou cliques. É uma questão de diferentes classes — ou de pessoas e grupos que objetivamente representam diferentes classes — que percebem mais ou menos corretamente os seus interesses como força social, como classe, e que então se esforçam por influenciar e utilizar a luta e as aspirações das massas para mudar a sociedade, para moldar a sociedade de acordo com esses interesses de classe. Era do interesse desse estrato, que era constituído, num sentido real, por intelectuais, mas intelectuais que tinham assumido a perspetiva da burguesia — uma vez mais, representantes políticos e literários da burguesia, tal como Marx se referiu a isto — era do interesse daquela classe, estava de acordo com as aspirações dela como classe, instituir essas relações capitalistas, fazer regressar a China ao quadro da dominação, exploração e opressão imperialistas globais no mundo. E isto estava em oposição direta àqueles dirigentes do Partido — uma vez mais, um grupo de intelectuais, num sentido geral, mas intelectuais que tinham adotado o ponto de vista do proletariado, como classe, e que tinham estado a lutar pelos interesses revolucionários dele — que estavam na via socialista, como transição para o objetivo final do comunismo a nível mundial. Esta batalha — entre a via socialista, e aquelas forças dirigentes que representavam essa via, e, por outro lado, a via capitalista e aqueles que a representavam — prosseguiu de uma forma muito intensa, ainda que com alguns fluxos e refluxos parciais, durante toda a década da GRCP, e resultou, infelizmente, pouco depois da morte de Mao em 1976, na vitória daquelas forças de classe que representavam o programa do capitalismo e do imperialismo e na derrota daquelas que representavam o programa do comunismo e da abolição final das relações de exploração e opressão.

Ao falar desta batalha que assumiu uma forma concentrada como luta entre intelectuais (dirigentes do partido) que representavam, respetivamente, a via socialista e a via capitalista, não quero dizer, de nenhuma forma, que ignore ou menospreze a importância do papel das massas em tudo isto — que apresente as coisas como se elas tivessem sido meras espectadoras ou peões dos principais grupos em contenda em tudo isto. Não, uma das marcas da GRCP foi o grau — verdadeiramente sem precedentes na história — em que as massas populares, literalmente às centenas de milhões, se envolveram nesta enorme convulsão social, com pelo menos dezenas de milhões a fazerem-no com uma elevada consciência, sem precedentes, das condições e riscos dessa luta. Mas a questão é, tal como resumiu Lenine:

Toda a gente sabe que as massas se dividem em classes; [...] que as classes são dirigidas normalmente [...] por partidos políticos; que os partidos políticos, regra geral, são dirigidos por grupos mais ou menos estáveis de pessoas que reúnem o máximo de autoridade, de influência, de experiência, levados por meio de eleições às funções mais responsáveis, e que se chamam chefes. Tudo isto não passa do abc.5

Mesmo que se esteja apenas a falar de autoproclamados marxistas, pode ser que Lenine tenha sido demasiado otimista ao afirmar que “toda a gente sabe” isto; contudo, a verdade continua a ser que realmente “Tudo isto não passa do abc”. Mas o que é mais complicado — e que continuará a ser um fenómeno significativo enquanto as massas estiverem divididas em classes, e até que sejam superadas as relações sociais desiguais e opressoras associadas às divisões de classe, incluindo em particular a divisão entre trabalho intelectual e manual — é que os líderes são geralmente pessoas que, entre as suas qualidades essenciais, têm uma capacidade mais desenvolvida para trabalhar com ideias (são intelectuais, falando de uma forma geral). Este facto objetivo, e o fosso entre esses intelectuais e as massas populares, em particular aquelas que não são intelectuais, será real e terá implicações e ramificações reais, quer esses intelectuais (líderes) venham eles mesmos de origens e circunstâncias que são, falando de uma forma geral, da pequena burguesia, quer venham do proletariado e de outras massas de base.

Uma das características distintivas dos intelectuais é que — devido às suas circunstâncias específicas e à natureza do papel deles de trabalharem com ideias — enquanto indivíduos (e mesmo, num certo sentido, enquanto fenómeno social mais vasto), têm relativamente mais liberdade e capacidade para “se vincularem” a uma classe ou a outra, e mesmo para “se desvincularem” de uma classe e “se vincularem” a outra. Por outras palavras, eles podem adotar uma perspetiva do mundo e vir a representar os interesses de uma classe ou de outra. Ora, em geral — e é disto que Marx está a falar ao descrever os intelectuais democratas e a relação deles com os lojistas — acontece que os intelectuais gravitam espontaneamente, e de uma forma bastante forte, para a perspetiva e os interesses da pequena burguesia, porque isso é o que mais corresponde à posição social e às circunstâncias da intelligentsia, regra geral. Mas, tal como sabemos, certos intelectuais (ou mesmo grupos de intelectuais) podem tornar-se altos funcionários, e mesmo líderes políticos, da burguesia. Por outro lado, alguns intelectuais — incluindo intelectuais que entram para as fileiras revolucionárias saídos das massas de base e que desenvolvem a capacidade de trabalhar com ideias, de formular uma linha e uma política, a um nível elevado — podem adotar, e fazem-no, a perspetiva do proletariado e tornar-se combatentes pelos interesses dele. Em geral, isto torna-se mais num fenómeno social em tempos de convulsão social, em particular quando as correntes revolucionárias são mais fortes entre as massas populares e na sua influência sobre a sociedade em geral.

Mas para aqueles intelectuais que são atraídos para a causa revolucionária do proletariado, no sentido mais fundamental, há o desafio muito real de aplicarem consistentemente a perspetiva e o método do materialismo dialético e não apenas de se envolverem, mas de perseverarem, ao longo de todas as dificuldades, na via da revolução e, num sentido real, entregando as suas capacidades intelectuais, bem como os seus corações, à causa desta revolução e dos seus objetivos emancipatórios. Além disso, e mais particularmente para aqueles que chegam a ocupar posições de liderança na vanguarda da revolução proletária, eles enfrentam o desafio de não simplesmente fornecerem uma liderança a essa revolução, mas mais especificamente de o fazerem de uma maneira que, cada vez mais, as massas populares, e em particular as dos setores mais explorados e oprimidos da sociedade, tenham a capacidade de participar de uma forma cada vez mais consciente nesta luta revolucionária. Para dizer isto de outra forma — para falar de outra dimensão chave e de uma profunda contradição que caracteriza a revolução proletário-comunista e das maneiras em que deve ser fundamentalmente diferente de todas as revoluções anteriores na sociedade humana (e isto foi abordado, há mais de uma década, em “Questões Estratégicas”6): Todas as revoluções são lideradas por uma pequena parte da sociedade — e de uma maneira concentrada por um grupo dirigente que é bastante pequeno, em comparação com as massas populares que, em última análise, está a liderar — um grupo dirigente que, de facto, vai ser constituído principalmente por pessoas que são intelectuais, de um modo geral, independentemente de onde venham esses intelectuais, em termos das “origens sociais” deles. Num aspecto muito importante, isto é verdade em relação à revolução proletária, e não simplesmente às revoluções lideradas por pessoas que encarnam a perspetiva das classes exploradoras e representam os interesses delas. O desafio profundo, verdadeiramente histórico, à revolução proletário-comunista, e aos que a lideram, é criar o salto radical e a rutura para além da situação — característica de todas as revoluções anteriores, levadas a cabo, em última análise, ao serviço dos interesses de classes exploradoras e lideradas por pessoas que representam essas classes — em que as massas são a principal força combatente na revolução (ou, para dizer isto de uma forma mais franca, sofrem o essencial dos sacrifícios e das mortes nessa luta) mas em que os frutos dessa luta e sacrifícios são recolhidos por forças que são na realidade exploradoras e opressoras das massas, e em que a sociedade é, uma vez mais, “refeita à imagem” de uma classe exploradora, mesmo que haja certas mudanças em relação à forma específica como isto ocorre.

Conseguir o salto radical e a rutura para além disto envolve, e requer, superar a contradição intelectual/manual como aspecto crucial de concretizar as “4 Todas”. Mas isto irá requerer toda uma época histórica e só pode ser alcançado à escala mundial; e ao longo de toda esta transição, onde quer que seja tomado o poder, estabelecida a ditadura do proletariado e continuada a revolução sob essa ditadura, haverá contradições complexas, e por vezes muito intensas, ligadas ao facto de que ultrapassar a divisão intelectual/manual, e concretizar as “4 Todas”, não só deve ser um objetivo de longo prazo, mas algo em que se deve estar “a trabalhar” em concreto, em cada etapa do processo, ainda que, pelo menos durante um período muito longo dessa transição, a contradição intelectual/manual continue a ser um fenómeno muito pronunciado. Lidar com tudo isto de uma forma correta, no processo vivo de fazer avançar a revolução, com toda a sua complexidade, é um dos grandes desafios da nossa revolução e do seu objetivo final do comunismo, em todo o mundo.

Diferentes interesses de diferentes forças de classe na luta contra a opressão dos negros nos EUA

Como outra ilustração da questão fundamental aqui — relativa ao fenómeno de diferentes classes tentarem “refazer o mundo à imagem delas” — podemos olhar para o papel da burguesia negra (e mesmo de setores da pequena burguesia negra, mas em particular da burguesia negra) nos EUA, em relação à longa luta dos negros, em particular no período desde imediatamente após a Segunda Guerra Mundial até ao presente. Há certos indivíduos e grupos entre os negros que têm tentado identificar essa luta como não sendo nada mais que uma luta reformista pelos, como eles diziam, “direitos civis” — e limitar e moldar essa luta nesse sentido. Em alguns aspectos importantes, há aqui um paralelo com o que aconteceu na África do Sul com Mandela. Essas forças tentaram (re)direcionar a luta para uma luta limitada à eliminação de certas barreiras formais e legais de discriminação e segregação — embora essas barreiras estejam longe de ter sido realmente removidas, e de algumas formas tenham sido reforçadas mais que nunca nas escolas, no alojamento, no emprego, nos cuidados de saúde e em muitas outras esferas. Claro que acabar com as leis e os códigos formais que encarnam a discriminação e a segregação é do interesse das vastas massas negras (e das vastas massas de todas as nacionalidades). Mas a questão é que é do interesse de um setor da burguesia entre os negros — e não do interesse das massas populares — impedir que a luta saia dos limites das reformas dentro do atual sistema. Estas forças burguesas viram que estas reformas lhes poderiam oferecer a possibilidade — dadas as formas como elas se posicionam agora nesta sociedade e a posição mais privilegiada delas em relação às massas negras — de terem uma oportunidade mais favorável para melhorarem a situação delas dentro do quadro atual, de “ascenderem” dentro deste quadro e mesmo, em alguns casos, de alcançarem posições elevadas dentro deste sistema. Ora, na realidade, e quer elas o reconheçam ou não (algumas podem fazê-lo e outras não, mas a realidade é esta) isto é condenar — e enquanto isto for predominante, irá condenar — as massas negras, e na realidade os negros como povo, como nação oprimida dentro dos EUA, a continuarem a sofrer uma horrenda opressão.

Não é tão simples como dizer que estas forças da burguesia negra não se preocupam com isso. A questão fundamental e essencial é que — para regressar à formulação de Marx — é assim que elas veem o problema e a solução. A perspetiva delas é que eliminar estas barreiras formais e permitir que as pessoas na posição delas avancem, e talvez mesmo que atinjam o pináculo como aconteceu agora com Obama — tornarem-se funcionários dirigentes do estado imperialista com todos os horrores dele — é a melhor forma de os negros — ou pelo menos os negros “à imagem deles” — conseguirem avançar e “tornar o sonho realidade”. Elas veem as suas próprias aspirações e interesses como a expressão mais elevada do bem comum. Num certo sentido, isto é verdade para todas as classes e para os representantes delas: veem os interesses de classe que defendem como representando os interesses gerais, e o bem comum, de todos. A questão fundamental é se isto é verdade ou não — e a diferença fundamental é que isto  é  verdade para o proletariado, enquanto classe, de uma maneira que não é verdade, e nunca foi verdade, para nenhuma outra classe: as condições para a emancipação do proletariado, da sua situação de exploração e opressão, são de facto as condições necessárias e essenciais para a emancipação geral da humanidade, para a abolição de todas as relações de exploração e opressão, em todo o mundo. Mas — e há uma certa ironia nisto —, precisamente com a eliminação de certas barreiras formais de discriminação e segregação, acontece que os interesses da burguesia negra, enquanto classe, estão objetivamente (independentemente de como ela o percebe) em conflito agudo com os interesses das massas negras, em particular das massas amontoadas, confinadas e brutalizadas nas zonas urbanas oprimidas, bem como com os interesses das massas oprimidas e exploradas nos EUA e em todo o mundo em geral.

Para ser claro, isto não significa que a burguesia negra — ou pelo menos muitas pessoas dentro dessa classe — não possa ser ganha para o lado da revolução, à medida que as coisas evoluem e através de muito luta; é tanto possível como necessário, como questão de orientação estratégica, ganhar tantas pessoas quanto possível dentro dessa classe para o lado da revolução. E certamente que isto é verdade para a pequena burguesia negra. Mas o que é crucial e essencial perceber — para a vanguarda e as massas que serão a coluna vertebral da luta revolucionária — é que as forças que representam a burguesia negra, ou mesmo a pequena burguesia negra — a perspetiva e os interesses que correspondem às posições sociais dessas forças de classe — não podem estar na posição dirigente, ou a luta não chegará onde precisa de chegar para concretizar a emancipação geral das massas oprimidas e exploradas, de todas as nacionalidades, e a emancipação final da humanidade no seu todo, e em todo o mundo. Só uma vanguarda que represente e lute pelos interesses do proletariado, enquanto classe, pode liderar a luta para concretizar essa emancipação geral.

Todos estes exemplos aqui discutidos — que apenas consegui esboçar de uma forma breve e em traços largos — demonstram a verdade fundamental de que diferentes forças de classe combatem de acordo com a sua compreensão do problema e da solução. E, por seu lado, as suas diferentes compreensões do problema e da solução são essencialmente moldadas pelas relações decisivas na sociedade — muito fundamentalmente as relações de produção, mas também as relações sociais e as relações políticas — e também pelas diferentes posições e papéis dos diferentes grupos sociais, ou classes, dentro dessas relações globais.

Mas um fator adicional que complica, e um problema, é que sob a dominação dos exploradores e opressores — e especificamente hoje sob a dominação dos imperialistas e das forças burguesas — a pesada carga do hábito, da tradição e da espontaneidade a que isto dá origem, tudo isto vai no sentido de exercer uma poderosa influência alinhada com os interesses e as aspirações das classes exploradoras. É por isto que requer uma rutura consciente da parte dos explorados e oprimidos — e também da parte dos intelectuais e outras pessoas que procuram representá-los — para poderem conseguir em primeiro lugar sequer reconhecer, e depois agir de acordo com esse reconhecimento, os interesses fundamentais das massas exploradas e oprimidas, em contraste e em conflito com os da burguesia, e mesmo com os dos estratos mais privilegiados, mesmo que não sejam burgueses em sentido estrito, em termos de como os representantes desses estratos são impelidos a ver os problemas e as soluções.

A importância decisiva da liderança, a liderança concentrada como linha

Tudo isto sublinha a importância crucial da linha — e da liderança — em relação à questão de que tipo de mudança irá acontecer, que tipo de transformação da sociedade. É certo que haverá mudança. Há sempre mudança, de um tipo ou de outro, e tem havido e haverá de novo uma mudança importante no mundo e na sociedade humana. A sociedade, tal como toda a realidade material, não pode ficar nem ficará tal como está. Passa por mudanças, incluindo, em certos momentos, mudanças importantes, e mesmo mudanças qualitativas. Mas a questão da linha e da liderança é decisiva na determinação, em última análise, de que tipo de mudança, que tipo de transformação da sociedade e fundamentalmente que tipo de revolução irá ser possível, se e quando as massas de facto se levantarem e exigirem e lutarem por uma mudança radical.

Linhas e bases sociais — uma relação dialética

A este respeito, é importante voltar a salientar um ponto em que já temos tocado antes, que é a relação, a relação materialista dialética, entre linhas e bases sociais. Ou seja, por um lado as linhas refletem certas bases sociais. Ou, para dizer isto de outra maneira, representam certas classes. Este é um ponto em que tenho vindo a tocar através dos vários exemplos que aqui tenho discutido, ou de outras formas, nesta palestra. As linhas são um concentrado dos interesses e aspirações fundamentais de diferentes classes; diferentes linhas representam diferentes forças de classe. Uma vez mais, sobretudo na sociedade burguesa, mas mesmo na sociedade socialista, os únicos interesses de classe que não podem ser representados espontaneamente, pelo menos de uma forma plena, são os do proletariado, que num sentido global representa os interesses das massas exploradas e oprimidas em geral. Todos os outros interesses de classe, e as linhas que os representam, podem — sob a dominação da burguesia e da ideologia dela e com toda a história de regime da classe exploradora e da influência da ideologia das classes exploradoras — ter muita espontaneidade associada. Mas para que uma linha seja apresentada, e para que as massas reconheçam e assumam uma linha que de facto representa os seus interesses fundamentais como classes exploradas e oprimidas e massas populares, isto requer uma rutura consciente com a espontaneidade.

Assim, por um lado, as linhas refletem bases sociais ou classes diferentes e opostas. E, num sentido fundamental e essencial — embora não numa linha reta, e não tudo de uma vez — diferentes linhas atraem diferentes bases sociais. A razão por que estou a enfatizar “não numa linha reta, e não tudo de uma vez” pode ser vista olhando uma vez mais para o exemplo da revolução iraniana. Uma das coisas decisivas de uma insurreição revolucionária — e isto é mostrado, como exemplo negativo, pela revolução iraniana — é que quanto mais ela se desenvolve, e não é interrompida por algum tipo de “acordo no topo”, mais as massas são capazes de ficar cientes e testar as diferentes linhas e os programas que estão associados a elas — os diferentes interesses e aspirações que estão concentrados nessas linhas e programas. (Por outras palavras, ao falar de linhas eu estou a falar de mundivisões e programas para a mudança social — ou para se oporem à mudança social — que correspondem a essas mundivisões.) Numa verdadeira sublevação social, e sobretudo numa que evolui para dimensões revolucionárias, as pessoas diretamente envolvidas, e aquelas mais em geral que são significativamente afetadas, tornam-se cada vez mais cientes e testam as diferentes linhas e programas e, com o tempo, as massas populares gravitam cada vez mais para aquelas linhas e programas que começam a ver como estando basicamente em linha com não só os seus interesses mais profundos, mas também com as suas necessidades mais imediata e intensamente sentidas e que, ao mesmo tempo, oferecem um meio realista para mudar radicalmente as coisas quando uma mudança radical é o que um número crescente de pessoas começa a ver como necessária.

Isto está diretamente relacionado com a muito correta e muito ignorada — e, mesmo entre alguns alegados comunistas, frequentemente difamada — insistência de Mao em que o que é decisivo é se a linha ideológica e política de uma vanguarda comunista é correta ou não: quer ela, na sua perspetiva e no seu programa e estratégia, realmente represente os interesses do proletariado e das outras massas exploradas e oprimidas e seja um meio para transformar radicalmente a sociedade através da revolução a fim de começar a erradicar a exploração e a opressão, em conjunto com a mesma luta em todo o mundo; quer ela represente, de uma forma ou outra, o reforço (ou, no máximo, um ligeiro ajuste) dessas relações de exploração e opressão. Isto é, em termos essenciais, o que se quer dizer com o princípio de que o que é decisivo é se a linha ideológica e política é correta ou não. Como sabemos, as revoluções são processos muito complexos, e não há nenhuma possibilidade de transformar radicalmente a sociedade ao serviço dos verdadeiros interesses das massas de oprimidos e explorados sem a liderança de uma força que tenha — e que lute continuamente por manter, desenvolver e aplicar — uma correta linha ideológica e política. Isto é de facto decisivo, independentemente de quanto escárnio possa ser derramado sobre este conceito fundamental.

O que  é  a liderança comunista?

Há um grande número de compreensões erradas e de confusão sobre a questão da liderança comunista, confusão que em grande medida está ligada a conceções erradas sobre os princípios e objetivos da própria revolução comunista — e que, de algumas maneiras, se lhes opõem. A liderança — e em particular a liderança comunista — está, como tenho vindo a dizer, concentrada na linha. Isto não significa simplesmente a linha enquanto abstrações teóricas, embora essas abstrações, sobretudo na medida em que reflitam corretamente a realidade e o seu movimento e desenvolvimento, sejam extremamente importantes. Mas, num sentido global, é uma questão de liderança tal como ela se expressa na capacidade de fazer continuamente abstrações teóricas essencialmente corretas; para formular, para agir e para liderar outros a assumirem e a agirem — e para que eles próprios tomem a iniciativa de agir — de acordo com a perspetiva e o método, e a estratégia, o programa e as políticas, necessários para transformar radicalmente o mundo através da revolução rumo ao objetivo final do comunismo; e através deste processo de continuamente capacitar outros que estamos a liderar, a que eles próprios desenvolvam cada vez mais a sua capacidade de fazerem tudo isto. Isto é a essência da liderança comunista.

Não é uma questão de estar fisicamente presente no meio deste ou daquele grupo das massas. Tenho lido relatos que descrevem que as pessoas dizem: “Como sabemos que Avakian é realmente tudo o que dizes que ele é?; Porque é que não podemos falar com ele? Como podemos saber se ele é realmente tudo isso, se não o podemos ver, ou se ele não está aqui mesmo entre nós?” Entre outras coisas, isto reflete uma errada compreensão básica do que é a liderança comunista e das realidades práticas, bem como da orientação estratégica envolvida na construção de um movimento para a revolução. O nosso objetivo é construir um movimento revolucionário de milhões de pessoas, com o fim de se tomar de facto as rédeas da sociedade e de a transformar radicalmente, quando estiverem criadas as condições para isso. Por muito que seja genuinamente uma coisa fantástica poder falar com as massas, e aprender com elas, bem como lutar com elas, será de facto concebível que um líder (ou, para o caso, qualquer número de líderes) desse processo revolucionário, e do partido que lidera essa revolução, se possa mover entre todos esses milhões de pessoas que, em última análise, têm de constituir as fileiras da revolução, e falar pessoalmente com eles? Se estivéssemos apenas a pensar em termos de pequenos círculos, e se não estivéssemos realmente a pensar em transformar a sociedade e, em última análise, o mundo no seu todo, pois então, muito bem, talvez fosse realista exigir que o pequeno número de pessoas que nesse caso estariam envolvidas pudesse ter um contacto pessoal (um “tempo cara-a-cara”) com o líder de tudo isso. Nesse caso, porém, o que é que isso interessa — não teria nada a ver com o que é suposto sermos, e que realmente devemos ser: pessoas que estão a fazer a revolução e a avançar para o objetivo final do comunismo em todo o mundo. Se realmente estivermos a pensar em milhões de pessoas envolvidas — e, sim, a serem lideradas — e ao mesmo tempo a aprender com esses milhões de pessoas, e a sintetizar tudo isto de uma maneira científica, ao serviço do tipo de revolução que é realmente necessária, então temos de compreender que a liderança comunista significa algo radicalmente diferente das noções de contacto direto de um para um entre a liderança e todas as massas populares que devem estar envolvidas nisto.

O seguinte trecho toca em importantes aspectos disto:

Primeiro, a razão de ser dos meus textos e palestras, e de facto de tudo o que faço como líder comunista, é aplicar a perspetiva e o método do materialismo dialético para continuar a desenvolver uma compreensão científica do mundo e para fornecer uma liderança na sua transformação radical rumo à meta da revolução e ao objetivo final do comunismo.

A este respeito, embora eu deva manter-me, e mantenho-me, num padrão muito elevado em termos de integridade e rigor intelectuais, e embora eu respeite aqueles que aplicam os mesmos padrões no campo do trabalho académico, o meu objetivo e abordagem não é o mesmo dos estudiosos académicos que não desempenham o papel de líderes comunistas. A minha responsabilidade, no meu papel específico de liderança, envolve (embora não se limite a isso) lidar com as contradições mais fundamentais e os problemas mais urgentes relacionados com fazer de facto a revolução e avançar para o objetivo final do comunismo e, ao fazê-lo, proporcionar liderança a outros. Um aspecto disto é fazer continuamente, e popularizar, uma análise e uma avaliação do ‘terreno político’ sempre em mudança — as condições objetivas e o papel das diferentes forças políticas e sociais relacionadas com essas condições objetivas. Uma outra dimensão chave disto é lidar com as questões que estão nas mentes dos proletários e de outras massas de base, bem como de pessoas de outros estratos, em particular no que diz respeito a coisas que lhes podem pesar e colocar obstáculos relacionados com a maneira como eles veem tanto a necessidade como a possibilidade da revolução comunista, e agirem com base nessa compreensão — questões que a maioria dos académicos largamente ignora e das quais muitos são francamente ignorantes. Num sentido mais vasto, em relação à teoria e ao trabalho intelectual, o meu papel específico não é apenas esforçar-me por fazer face às necessidades urgentes e profundas no campo do desenvolvimento da teoria, da linha e da orientação estratégica, para servir o objetivo da revolução e a meta final do comunismo, mas também para inspirar — e, sim, provocar — outros a este respeito e de uma forma mais geral em termos de tomarem a iniciativa de trabalharem com ideias e debaterem no campo da teoria, falando em termos gerais; para ajudar a fornecer uma fundação continuamente aprofundada e um quadro em desenvolvimento àqueles que procuram aplicar a perspetiva e o método do comunismo para que se empenhem no trabalho teórico e analítico, cobrindo um vasto espectro de campos; e para desafiar outros, para além das fileiras dos comunistas, a se empenharem seriamente nesse método e abordagem comunistas e na teoria e na análise que resultam da aplicação desse método e abordagem.7 (Ênfase no original)

A base social para a revolução

Isto traz-me a algumas outras declarações muito importantes de Marx, que foram citadas no livro Gana: Fim de Uma Ilusão, de Bob Fitch e Mary Oppenheimer. Este livro foi escrito há mais de 40 anos e analisa a ascensão e queda de Kwame Nkrumah no Gana e as relações sociais e internacionais mais globais ligadas a isso. Ao falar da revolução parcial — ou, de facto, das reformas dentro do sistema do imperialismo e de exploração que as pessoas agrupadas à volta de Nkrumah estavam a tentar levar a cabo no Gana — Fitch e Oppenheimer citam Marx para contrastar essa experiência com uma “revolução total”, ou seja, uma verdadeira revolução que envolva a transformação radical da sociedade. Os próprios Fitch e Oppenheimer colocaram isto da seguinte maneira:

Uma outra característica de uma revolução “total” é que a classe que forma a base do movimento revolucionário deve ser uma classe que tenha “grilhões radicais” para romper. [...] Marx disse que deve ser uma classe dentro mas não da sociedade civil.8 (Ênfase no original)

E depois, ao elaborarem sobre este ponto, eles citam diretamente Marx, salientando que a base da revolução deve ser um grupo social, ou classe, que represente

[...] uma esfera que possua um caráter universal mediante os seus sofrimentos universais e que não reivindique nenhum direito particular porque contra ela não se comete uma injustiça particular, mas a injustiça por excelência, que já não possa exigir um título histórico, mas apenas um título humano, que não se encontre numa oposição unilateral às consequências mas numa oposição abrangente aos pressupostos do sistema político.9

Isto está relacionado com — é, num certo sentido, uma outra forma de declarar — o que foi antes discutido em relação às observações de Marx no 18 de Brumário, e especificamente com as profundas diferenças como as diferentes forças de classe e os seus representantes políticos e literários (ou intelectuais) veem os problemas e as soluções. A burguesia negra nos EUA, as forças agrupadas à volta de Mandela na África do Sul, Gandhi na Índia, as forças à volta de Khomeini no Irão, e por aí adiante, veem (ou viam) as coisas não de uma maneira universal, mas de uma maneira específica; aquilo que eles defendem, e pelo qual se esforçam, encarna um direito, ou uma mudança, particular ou parcial, e não um direito universal — não uma transformação vasta e radical do atual sistema. Na realidade, eles representam um estatuto tradicional — e não, como o proletariado (quando se torna numa força revolucionária, com base nos seus interesses fundamentais como classe), uma erradicação dos grilhões da tradição.

Gana: Fim de Uma Ilusão também cita o que disse Marx sobre aquilo a que ele se refere como uma “revolução parcial, meramente política”. “Em que se baseia”, pergunta Marx, essa “revolução parcial, meramente política?” Marx responde assim:

No facto de que uma parte da sociedade civil se emancipa e alcança o domínio universal; que uma determinada classe, a partir da sua situação particular, realiza a emancipação universal da sociedade. Tal classe liberta a sociedade inteira, mas apenas sob o pressuposto de que toda a sociedade se encontre na situação da sua classe, portanto, por exemplo, de que ela possua ou possa facilmente adquirir dinheiro e cultura.10 (Ênfase no original)

Ora, claro que a afirmação de Marx encarna aqui uma ironia: ele não quer dizer de facto que sob a liderança dessa classe, e ao refazer a sociedade ao serviço dos interesses e à imagem dessa classe, toda a sociedade possa realmente fazer isto (colocar-se na mesma posição que essa classe). A questão essencial é que é assim que esses estratos e classes mais privilegiados e mesmo exploradores veem o refazer da sociedade, mesmo quando eles são impelidos para esse objetivo: eles acreditam, e insistem, que as condições gerais da sociedade se devem conformar aos seus interesses particulares e à sua maneira de abordar as coisas — por outras palavras, ao estatuto e às aspirações específicas deles — em vez de haver um “salto pelos ares” e uma transformação radical da sociedade no seu conjunto, que leve à abolição da tradição e dos grilhões da tradição.

Também, como uma espécie de aparte mas definitivamente relacionado com isto, há uma observação muito interessante e, em certos sentidos, humorística de Engels que é citada nesse mesmo livro, Gana: Fim de Uma Ilusão. Falando sobre a contrarrevolução que afogou em sangue as revoluções de 1848 na Europa, Engels escreveu:

[...] quando se inquire das causas dos sucessos contrarrevolucionários, é-se confrontado de todos os lados com a resposta de que foi o senhor Este ou o cidadão Aquele que “traiu” o povo. Resposta esta que pode ser muito verdadeira ou não, consoante as circunstâncias, mas que em circunstância alguma explica o que quer que seja — nem mesmo mostra como é que veio a acontecer que o “povo” consentisse, desse modo, em ser traído. E quão poucas hipóteses tem um partido político cujos inteiros recursos consistam num conhecimento do facto solitário de que o cidadão Tal ou Tal não é digno de confiança.11

Desde então, quantas vezes tem sido repetido este tipo de “análise”, que Engels tão justamente ridicularizou, incluindo mesmo à nossa volta hoje!

Isto, por sua vez, chama à atenção para aquela observação muito perspicaz e concentrada de Lenine que muitas vezes temos citado, por muito boas razões:

Os homens sempre foram em política vítimas ingénuas do engano dos outros e do próprio, [notem bem: “e do próprio”] e continuarão a sê-lo enquanto não aprendem a descobrir por trás de todas as frases, declarações e promessas morais, religiosas, políticas e sociais, os interesses de uma ou outra classe. Os partidários de reformas e melhoramentos serão sempre enganados pelos defensores do velho, enquanto não compreenderem que toda a instituição velha, por mais bárbara e apodrecida que pareça, se mantém pela força de umas ou de outras classes dominantes.12 (Ênfase no original)

Quão profundamente verdadeira — e quão profundamente relevante uma vez mais nestes dias!

De facto, este tipo de abordagem, que Lenine está a comentar de uma maneira crítica, é hoje muito pronunciado, sobretudo quando entre as massas oprimidas e exploradas — e, de facto, entre todos os estratos do povo, incluindo nomeadamente a intelligentsia — há quase tudo exceto uma compreensão materialista das coisas, e especialmente da sociedade e do seu desenvolvimento histórico. Há uma clara falta de compreensão — e uma gritante necessidade de as pessoas compreenderem — que há um sistema cuja dinâmica e contradições basilares determinam as condições das coisas num sentido fundamental; e de fornecer às pessoas, de uma forma viva e convincente, uma análise materialista e uma avaliação materialista, tal como disse Lenine, de como este sistema realmente funciona e de qual o papel das diferentes classes e forças sociais em relação a tudo isto.

E aqui, falando novamente sobre as diferentes forças sociais, a sua compreensão do problema e as suas aspirações a uma solução, há uma observação muito pertinente de Jack Belden no livro dele A China Sacode o Mundo, a qual foi recentemente citada num relato de um camarada dirigente do nosso partido:

Nenhuma revolução social, seja boa ou má, alguma vez ocorreu sem a existência de uma grande massa de pessoas deserdadas que pudesse fornecer uma base de apoio a um novo grupo. Nas mulheres chinesas, os comunistas tiveram, quase formada, uma das maiores massas de seres humanos deserdados que o mundo alguma vez viu. E porque eles encontraram a chave para o coração dessas mulheres, também encontraram uma das chaves para a vitória sobre Chiang Kai-shek.13

Isto faz-nos recordar a análise crucial que está contida na passagem de Marx acima citada sobre o que é necessário para haver uma “revolução total”.

O que realmente é uma revolução... e o que realmente não é

Esta questão não só é importante num sentido geral e fundamental, como assume um significado particular no que diz respeito ao atual “fenómeno Obama” e a algumas das emoções mais profundas que a candidatura dele — e ainda mais a eleição dele (e a tomada de posse) — provocou e às formas como, é triste dizer, isto cegou algumas pessoas em relação ao que Obama realmente é e à verdadeira natureza do sistema de que ele faz parte, do qual de facto ele é agora o chefe executivo e comandante-chefe.

A este respeito, talvez a seguinte história faça alguma luz. Nos anos 1970, quando Idi Amin ainda era o chefe do governo do Uganda, fui a uma festa que teve lugar na casa de um dos nossos camaradas, e havia lá alguns elementos das massas dessa zona, entre os quais várias pessoas negras. Eu andava por lá, a ouvir as diferentes conversas e apenas a divertir-me, mas também a tentar descobrir do que as pessoas estavam a falar e, num canto, havia uma discussão e um debate muito animados sobre Idi Amin: Uma das pessoas negras estava a apoiar e a defender vigorosamente Idi Amin, o qual na realidade era simultaneamente um lacaio do imperialismo e um brutal opressor em si mesmo. E, finalmente, depois de ter escutado durante algum tempo, eu intervim e disse: “Eu compreendo, eu vi aquela fotografia de Idi Amin a fazer com que aqueles cidadãos britânicos o levassem de gatas. Compreendo os sentimentos que isso evoca. Compreendo por que razão isso te fez sentir bem. Mas temos de ir além disso para ver o que realmente é Idi Amin.” E então começámos a falar sobre o que Amin realmente representava — e o que não representava.

O desejo de vingança (de que “os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos”) e de ver um dos “nossos” a, de facto, “chegar ao topo” — isto, sobretudo sob um sistema como este e com o poder da sua ideologia e a noção de que o objetivo da mudança é que as pessoas oprimidas “tenham a sua oportunidade” de ficarem numa posição de privilégio e poder é, compreensivelmente, mesmo que uma maneira muito errada, muito forte. E, para voltar à atual situação nos EUA, ouvimos falar em muitas pessoas, em particular pessoas negras, que dizem coisas como: “Tivemos uma revolução, é uma nova América”. Não, não tivemos uma revolução, e não é uma nova América. Está a acontecer algo diferente: há um tipo diferente de presidente que vem de um lugar diferente, e que tem uma cor diferente, se quiserem. Mas isso não é uma revolução, e não é uma nova América. É a mesma velha América, o mesmo velho estado imperialista, a tentar restabelecer-se melhor no mundo, bem como entre as pessoas nos EUA — incluindo as pessoas negras em particular — com o seu programa assassino e brutalmente opressor.

Malcolm X, mesmo tendo certas limitações inquestionáveis na sua perspetiva e compreensão, fez muitas observações importantes, e entre elas a maneira como ele salientou que as revoluções não são apenas uma mudança dentro do atual sistema e que as revoluções não se fazem através da urna eleitoral. Como ele disse, as revoluções derrubam sistemas. Não foi isso que aconteceu com a eleição de Obama. Que sistema foi derrubado? Que relações fundamentais na sociedade e no mundo foram radicalmente mudadas, ao serviço dos interesses das massas populares? Nenhuma. Uma mudança de rosto, uma mudança de cor, não é uma revolução e não cria uma “nova América”.

De uma forma muito concisa e científica, Mao Tsétung falou sobre o que é uma revolução quando salientou que uma revolução não significa nada menos que o derrube de uma classe por outra. Uma revolução significa que o controlo de uma classe dominante reacionária sobre a sociedade — tal como está concentrado no monopólio, por parte dessa classe, do poder político, encarnado num estado (forças armadas, tribunais e prisões, burocracia, etc.) que representa e serve os interesses dessa classe dominante — é rompido e totalmente desmantelado, através de uma luta decidida das massas populares organizadas em torno de um programa de mudança radical — e quando um novo estado, que representa os interesses de uma classe revolucionária em ascensão, é estabelecido em lugar do velho estado. Isto significa que é criado um sistema totalmente diferente.

Que classe foi derrubada nos Estados Unidos, e por que outra classe, com a eleição de Obama? Que novo estado foi criado? Que novo sistema? Nenhum. É a mesma classe que domina e o mesmo sistema, que é presidido por um novo rosto com uma nova cor. Não é sequer “os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos”. É apenas um dos que se parecem com os “últimos” a juntar-se aos “primeiros”, e a encabeçá-los, para manter os “últimos” em último lugar.

A revolução de que precisamos — uma verdadeira revolução, e em particular uma revolução que vise o objetivo final do comunismo — tem de manter na sua mira, em primeiro lugar, a criação de um estado radicalmente novo que represente os interesses revolucionários do proletariado de abolição final de todas as relações de exploração e opressão. E, de seguida, a revolução deve ser desenvolvida a partir de aí. O objetivo fundamental e de longo prazo desta revolução é extirpar e eliminar os antagonismos de classe, de facto todas as divisões de classe, e tudo o que está ligado a isso; e ao conseguir fazê-lo, em todo o mundo, serão criadas as condições para extinguir o estado — como instrumento de repressão organizada e violenta de classe — e para a sua substituição por formas de associação e funcionamento entre as pessoas que as capacitem a tomar decisões que afetam a interação delas com o resto da natureza, e a interação delas entre si, sem distinções de classe ou qualquer outra divisão opressora. Obviamente, isto envolve algo radicalmente diferente e melhor do que “os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos”. Mas a eleição de Obama nem sequer isso é.

As revoluções são geradas fundamentalmente pelas contradições na base económica — pela maneira como as pessoas são exploradas e pela maneira como o funcionamento da economia prossegue através de certas relações sociais que se tornaram obsoletas, que já não podem satisfazer as necessidades da sociedade num sentido fundamental. Através de muitos canais diferentes e não diretamente de uma maneira biunívoca, mas mesmo assim, num sentido global, isto gera a necessidade de uma mudança radical na sociedade e as pessoas, de uma forma mais ou menos consciente, chegam a uma compreensão disso e agem de maneira a provocar mudanças em conformidade com a compreensão delas.

Ao mesmo tempo, tal como salientei antes, as revoluções não se fazem na esfera da produção, embora procedam das contradições na base económica da sociedade, ou sejam geradas por elas — com o caráter obsoleto das relações económicas fundamentais, e a forma como elas são um grilhão para a sociedade, a manifestarem-se de uma forma particularmente aguda. As revoluções fazem-se no domínio da superstrutura da política e da ideologia, através de uma luta que, em última análise, assume a sua forma mais elevada e mais concentrada na luta total para decidir quem — ou seja, que classe, representando que sistema e que relações económicas, políticas e sociais — irá de facto reger a sociedade e transformá-la em conformidade com a maneira como os seus representantes mais conscientes compreendem os problemas e as soluções. É isto que é uma revolução. Compare-se isto com a eleição de Obama e veja-se como fica a eleição dele em relação a isto.

A revolução comunista é uma revolução radicalmente diferente de todas as anteriores, porque é feita ao serviço dos interesses da classe, e feita fundamentalmente pela classe — ou seja, o proletariado — cujos interesses são não simplesmente mudar de posição dentro da sociedade (já para não falar em mudar apenas alguns rostos) mas sim transformar radicalmente a sociedade para abolir todas as relações económicas, sociais e políticas, e todas as ideias e cultura que encarnam e impõem a exploração e a opressão — não apenas num lugar ou numa parte do mundo, mas no mundo inteiro como um todo. Ela implica e requer o avanço para uma sociedade, um mundo, não dividido em classes nem em opressores e oprimidos, uma sociedade e um mundo comunistas.

Conquistar as pessoas para que sejam comunistas, emancipadores da humanidade

Tendo em conta isto, quero falar uma vez mais sobre a importância crucial de construir e fortalecer continuamente o núcleo sólido comunista de, por sua vez, um movimento revolucionário mais vasto — um movimento cujo objetivo seja a revolução e nada menos. Isto sublinha uma vez mais a grande importância de lutar para conquistar pessoas para a orientação global de serem emancipadores da humanidade, em oposição às noções de vingança — “os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos”, “esta é a minha oportunidade de conseguir chegar a uma posição de topo” e assim sucessivamente — as quais são, em grande medida, a maneira espontânea como as pessoas veem a questão da mudança na sociedade, quando e na medida em que elas pensam nisso. Portanto, tem de haver uma luta para que as pessoas se afastem dessa perspetiva, rompam com ela, e se tornem emancipadores da humanidade — para que se empenhem conscientemente na abolição não só desta ou daquela relação específica de opressão, e não apenas numa mudança de posição dentro do quadro de opressão e exploração, mas na abolição de toda a opressão e exploração em todo o mundo.

Isto põe em relevo porque é que é tão crucial dar tanta atenção, neste momento, às questões da perspetiva, da orientação e dos objetivos comunistas, em contraste com as perspetivas e os programas que representam os interesses e as aspirações de outras classes, e em particular em contraste com a perspetiva e os interesses da burguesia e com o que está concentrado na expressão “direito burguês”: a noção de “direito” (ou direitos) no quadro da sociedade burguesa, uma sociedade dominada por uma classe exploradora, uma sociedade baseada em relações de exploração e que encarna e impõe essas relações. Isto tem uma importância crucial se realmente vier a haver uma revolução e se essa revolução vier de facto a levar a um mundo radicalmente novo.

Ao mesmo tempo, embora seja importante levar a cabo esta luta entre as massas de base — os proletários e outras pessoas exploradas e mantidas submetidas na base da sociedade — também há a importância crucial de conquistar um setor dos intelectuais — e, falando em termos mais gerais, dos jovens instruídos — para a visão mas também para o objetivo concreto do comunismo. Vemos repetidamente que o empenho dos jovens num mundo melhor, mesmo quando ele se exprime de uma forma espontânea, é desviado, desvirtuado, aviltado e caluniado pela classe dominante. E, uma vez mais, o papel de Obama é um exemplo concentrado disto. Vemos hoje muitos jovens a, por exemplo, ir atrás do apelo genérico de Obama a, de uma forma ou outra, fazerem “serviço” pelo país — não simplesmente o serviço militar, mas mesmo outras formas de serviço — no ensino ou em termos da infraestrutura ou de outras necessidades do país, tal como estas são percebidas e apresentadas pela classe dominante de que Obama é um representante e à qual serve. Aquilo a que Obama está a apelar é a que sirvam o imperialismo — a que sirvam o sangrento sistema que esmaga, avilta, brutaliza e literalmente chacina milhões de pessoas, ano após ano, década após década, ao serviço da exploração, e para reforçar as relações de opressão, incluindo as relações de opressão entre nações e povos opressores e oprimidos e a opressão da mulher.

Ouve-se hoje, com Obama, todo um eco da frase de John Kennedy [falando com sotaque de Nova Inglaterra]: “Não perguntes o que o teu país pode fazer por ti, pergunta o que podes fazer pelo teu país”. Obama está a fazer eco disto de uma forma muito consciente com o apelo dele ao serviço. E, tal como mostrou um artigo no n.º 153 do Revolution/Revolución, isto está a ser dirigido, distorcido e desvirtuado ao serviço do imperialismo norte-americano. Isto foi algo que as pessoas aprenderam nos anos 1960. Uma manifestação muito significativa disto ocorreu com pessoas que foram para o Corpo de Paz e que depois descobriram o que o imperialismo estava de facto a fazer e o que elas estavam a ser direcionadas e levadas a fazer como parte de uma agência imperialista — e que depois voltaram e formaram grupos como os Voluntários Regressados que eram explicitamente anti-imperialistas. Elas aprenderam nesses tempos, numa situação em que as pessoas se estavam a revoltar contra o imperialismo em todo o mundo, quais eram as verdadeiras relações a que estavam a ser chamadas a servir ao fazerem parte de agências imperialistas como o Corpo de Paz. Aprenderam que organismos como o Corpo de Paz eram “apêndices” e faziam parte do mesmo aparelho global que o exército norte-americano, a CIA e outros instrumentos da dominação e exploração imperialista violenta e trituradora da vida — e revoltaram-se contra isso. Isto salienta como é crucial que as pessoas rompam com o quadro construído pelo imperialismo em que elas são condicionadas na maneira de ver a possibilidade de fazerem contribuições para um mundo melhor: as maneiras como isso é distorcido e desvirtuado ao serviço dos objetivos literalmente sanguinários do imperialismo — sim, tal como ele é representado por Obama, não menos que Clinton, não menos que “W” Bush e todos os outros.

Ao mesmo tempo, vemos como há hoje no mundo o fenómeno crescente do fundamentalismo islâmico, uma mundividência obsoleta que representa relações obsoletas, relações altamente opressoras, entre as quais a escravização das mulheres sob muitas formas diferentes. As pessoas são atraídas para isso porque o veem como uma força que de facto se opõe às potências imperialistas dominantes do Ocidente (independentemente de como compreendam isso), representadas acima de tudo pelos EUA. A este respeito, vale a pena recordar de novo o comentário feito por um observador burguês sobre as pessoas que em Inglaterra levaram a cabo o que eram objetivamente atos de terrorismo, na base de estarem sob a influência dessa ideologia fundamentalista islâmica. Ele fez notar que, há uma geração, essas pessoas, ou muitas delas, teriam sido maoistas. Ora, tal como já salientei antes, a questão não é, decididamente, que os maoistas levam a cabo o mesmo tipo de táticas que os fundamentalista islâmicos — claramente, os comunistas têm uma perspetiva do mundo muito diferente e objetivos fundamentais diferentes e, em resultado disso, táticas muito diferentes — mas a questão essencial aqui é que, há algumas décadas, em circunstâncias em que, no mundo em geral, o comunismo revolucionário tinha um impacto e uma influência muito mais poderosos, essas pessoas, ou muitas delas, teriam estado num caminho radicalmente diferente e muito melhor, teriam sido atraídas para uma perspetiva do mundo radicalmente diferente e verdadeiramente libertadora e para uma estratégia completamente diferente para mudar o mundo que se baseia nas massas populares, e que as faz avançar, e às mulheres não menos que aos homens, e que visa erradicar todas as relações de exploração e opressão, e não aterrorizar alguns setores das massas para que aceitem uma nova forma de opressão, ou uma forma ligeiramente modificada de opressão.

Neste contexto, também vale a pena recordar um artigo de primeira página no The New York Times de 23 de dezembro do ano passado (2008),14 que cita um jovem de um país do Médio Oriente que diz que o movimento fundamentalista islâmico é para os jovens como ele o que o pan-arabismo foi para a geração dos pais dele.

Este fenómeno geral é algo que eu salientei e analisei com alguma profundidade no livro Fora Com Todos os Deuses! Libertar a Mente e Mudar Radicalmente o Mundo.15 Mas uma coisa que não foi aí suficientemente dita (falei sobre isto noutro lugar mas na realidade desejava que tivesse dito mais sobre isto nesse livro... mas falarei sobre isto aqui [risos]) foi que, além do fenómeno das massas pobres das zonas rurais — os camponeses e outras pessoas — que estão a ser desenraizadas e atiradas para as zonas urbanas, e em particular para os bairros de lata, nos países de todo o Terceiro Mundo, também há o fenómeno dos jovens instruídos que, porém, são educados (como disse um comentador burguês) numa certa base estreita: pessoas que vão para a universidade para se tornarem engenheiros ou técnicos ou para terem ocupações semelhantes, mas que veem as aspirações delas serem frustradas pela corrupção dos governos desses países (é assim que esses jovens espontaneamente veem isto), mas fundamentalmente pelo facto de a economia desses países e o papel delas dentro do quadro global do imperialismo não poder fornecer uma saída para essas aspirações — para dizer isto de uma forma simples, não consegue fornecer suficientes posições e empregos às pessoas que obtêm educação e treino nesses campos. Esta é uma das fontes que estão a alimentar correntes e movimentos fundamentalistas islâmicos organizados em muitos desses países. E isto está a alimentar o fundamentalismo islâmico — e outros fundamentalismos religiosos — no mundo de hoje num sentido mais geral.

Em oposição a isto, está a necessidade de captar de uma forma muito mais ampla e profunda a imaginação das pessoas em geral, das massas de base mas também dos jovens instruídos — de os inspirar com o ponto de vista do comunismo e de os conquistar para a sua perspetiva e objetivos verdadeiramente libertadores, de os conquistar para que verdadeiramente sejam emancipadores da humanidade, visando abolir todos os grilhões, tanto os mentais como os económicos, sociais e políticos, que mantêm submetidas as massas populares — como parte importante da construção do movimento global pela revolução, rumo ao objetivo final de um mundo comunista. Este é um ponto extremamente importante, e é algo a que voltarei: a atratividade do que o comunismo representa e a necessidade de divulgar isto de uma forma muito mais ousada e vigorosa e de lutar por isto entre os jovens instruídos, bem como entre as massas de base e outros setores do povo.


NOTAS

1  Bob Avakian, “Democracy: More Than Ever, We Can And Must Do Better Than That” [“Democracia: Mais que nunca, podemos e devemos fazer melhor”]. Esta polémica saiu na revista A World To Win [Um Mundo A Ganhar] n.º 17, 1992, e foi depois incluída como apêndice na 2ª edição do livro de Bob Avakian, Phony Communism Is Dead... Long Live Real Communism! [O Falso Comunismo Está Morto... Viva o Verdadeiro Comunismo!] (RCP Publications, Chicago, 2004). A polémica está disponível em:

2  Ver Bob Avakian, “Democracia: Mais que nunca, podemos e devemos fazer melhor”, em O Falso Comunismo Está Morto... Viva o Verdadeiro Comunismo!, op. cit., pp. 209-210. Esta citação de Marx, bem como as três citações seguintes, é de Karl Marx, O 18 de Brumário de Louis Bonaparte, dezembro de 1851 a março de 1852, 2ª Edição, Cap. III (Editorial Avante!, Lisboa — Edições Progresso, Moscovo, 1984), marxists.org/portugues/marx/1852/brumario/.

3  Karl Marx, Grundrisse, 1857-61, “Capítulo do Dinheiro”, p. 166-7 (Boitempo Editorial, São Paulo, 2011),
nupese.fe.ufg.br/up/208/o/Karl_Marx_-_Grundrisse_(boitempo)_completo.pdf.

4  Para uma mais profunda, e mais específica, análise disto, ver o artigo “30 anos após a revolução iraniana”, do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar, 23 de fevereiro de 2009, paginavermelha.org/noticias/30-anos-apos-a-revolucao-iraniana.

5  V. I. Lenine, O “Esquerdismo”, Doença Infantil do Comunismo, Cap. 5, p. 40 (Edições Maria da Fonte, Lisboa), disponível numa tradução diferente em marxists.org/portugues/lenin/1920/esquerdismo/. Citado na polémica contra K. Venu, “Democracia: Mais que nunca, podemos e devemos fazer melhor”, em O Falso Comunismo Está Morto... Viva o Verdadeiro Comunismo!, p. 204.

6  Strategic Questions [Questões Estratégicas] foi uma palestra de Bob Avakian em meados da década de 1990. Seleções dela foram publicadas no jornal Revolutionary Worker/Obrero Revolucionario (agora Revolution/Revolución) nos n.os 881, 884-893 (entre 10 de novembro de 1996 e 9 de fevereiro de 1997) e 1176 (24 de novembro de 2002). Essas seleções podem ser consultadas em:

7  Bob Avakian, “On The Role Of Communist Leadership And Some Basic Questions Of Orientation, Approach And Method” [“Sobre o papel da liderança comunista e algumas questões fundamentais de orientação, abordagem e método”], excerto da palestra do ano passado, “Out Into the World – As a Vanguard of the Future” [“Ir pelo mundo — como vanguarda do futuro”], Revolution/Revolución n.º 156, 15 de fevereiro de 2009:

8  Bob Fitch e Mary Oppenheimer, Ghana: End Of An Illusion [Gana: Fim de Uma Ilusão], p. 24 (Monthly Review Press, 1966).

9  Karl Marx, Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, 1843-1844, p. 156 (Boitempo Editorial, São Paulo, 2010), ciml.250x.com/archive/marx_engels/portuguese/marx_1843_critica_da_filosofia_do_direito_de_hegel.pdf. Citado em Gana: Fim de Uma Ilusão, p. 24.

10  Karl Marx, Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, op. cit., p. 154. Citado em Gana: Fim de Uma Ilusão, op. cit., p. 23.

11  Friedrich Engels, “Revolução e Contrarrevolução na Alemanha”, setembro de 1852, Cap. I, em Marx-Engels, Obras Escolhidas em três tomos (Editorial Avante!, Lisboa — Edições Progresso, Moscovo, 1982), marxists.org/portugues/marx/1852/revolucao/. Citado em Gana: Fim de Uma Ilusão, p. 10.

12  V. I. Lenine, “As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo”, março de 1913, em Obras Escolhidas em três tomos, Tomo I (Editorial Avante!, Lisboa, 1977), marxists.org/portugues/lenin/1913/03/tresfont.htm. Citado em O Falso Comunismo Está Morto... Viva o Verdadeiro Comunismo!, 2ª Edição, p. 122.

13  Jack Belden, China Shakes the World [A China Sacode o Mundo] (New World Press, Beijing, 1989).

14  Michael Slackman, “Jordanian Students Rebel, Embracing Conservative Islam” [“Estudantes jordanos revoltam-se, abraçando um Islão conservador”], The New York Times, 23 de dezembro de 2008, nytimes.com/2008/12/24/world/middleeast/24jordan.html (em inglês).

15  Bob Avakian, Away With All Gods! Unchaining the Mind and Radically Changing the World [Fora Com Todos os Deuses! Libertar a Mente e Mudar Radicalmente o Mundo] (Insight Press, Chicago, 2008, em inglês e JB Books, 2009, em castelhano).

 

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