Este documento foi publicado na edição especial (n.º 5, outono de 2019) da revista Demarcations: A Journal of Communist Theory and Polemic [Demarcações: Uma revista de teoria e polémica comunistas], demarcations-journal.org, em inglês, castelhano, farsi, português, alemão, turco (parcial) e árabe. A Página Vermelha acrescentou todas as ligações online e algumas notas finais.

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Bob Avakian

Breakthroughs

(Abrindo Brechas)

O avanço histórico realizado por Marx
e o novo avanço histórico do novo comunismo

Um resumo básico

Pré-publicação
28 de outubro de 2019

Copyright © 2019 de Bob Avakian. Todos os direitos reservados.

Até esta data, e à luz da importância do que é tratado nesta obra, Bob Avakian só autorizou a distribuição de uma versão de pré-publicação e, com a mesma orientação, autorizou agora a publicação desta versão na revista Demarcations. Também autorizou a publicação desta obra em várias línguas, com a compreensão e a indicação clara de que se trata de traduções não-oficiais da versão original em língua inglesa.

Editorial de introdução a esta edição

Estamos muito entusiasmados por publicar esta edição especial da Demarcations.

Esta edição apresenta a versão de pré-publicação de Breakthroughs (Abrindo Brechas): O avanço histórico realizado por Marx e o novo avanço histórico do novo comunismo, Um resumo básico, de Bob Avakian, em vários idiomas. Esta obra é um concentrado do novo comunismo, que “é a continuação da teoria comunista tal como ela foi anteriormente desenvolvida, mas também representa um salto qualitativo para além dela e, em alguns sentidos importantes, é uma rutura com ela. Ele fornece a base — a ciência, a estratégia, a liderança — para uma verdadeira revolução e uma sociedade radicalmente nova na via para a verdadeira emancipação.”

Num momento em que não é exagero dizer que vastos setores da humanidade e do planeta se confrontam com um futuro catastrófico e mesmo com riscos potencialmente existenciais devido ao funcionamento deste sistema do capitalismo-imperialismo, não há maior necessidade e contribuição para um mundo radicalmente diferente do que assumir e divulgar, em todo o lado, o quadro inteiramente novo desenvolvido por Bob Avakian para a emancipação humana, o qual está concentrado nesta obra. Como afirmou Avakian, “em todo o lado todas as pessoas estão a questionar porque as coisas são da maneira que são, e se é possível um mundo diferente; em todo o lado as pessoas estão a falar sobre a ‘revolução’, mas não têm uma verdadeira compreensão do que significa a revolução, não têm nenhuma abordagem científica para analisar e lidar com o que enfrentam e com o que é necessário fazer; em todo o lado as pessoas estão a erguer-se em revolta, mas estão confinadas, desiludidas e deixadas à mercê de opressores assassinos, ou são induzidas a seguir caminhos que apenas reforçam, muitas vezes com uma brutalidade bárbara, os escravizadores grilhões da tradição; em todo o lado as pessoas precisam de uma saída para a sua situação desesperada, mas não veem a fonte do sofrimento delas nem o caminho para avançarem para fora das trevas.”1

Breakthroughs fornece um resumo preciso e sintético do novo comunismo, a compreensão que é necessária e indispensável para acabar com este sofrimento tão desnecessário. “O que é mais fundamental e essencial na nova síntese é o novo desenvolvimento e síntese do comunismo como método e abordagem científicos, e a aplicação mais consistente deste método e abordagem científicos à realidade em geral e, em particular, à luta revolucionária para derrubar e extirpar todos os sistemas e relações de exploração e opressão e avançar para um mundo comunista.”2

Índice

Breve prólogo explicativo

Karl Marx: Pela primeira vez na história, uma abordagem e uma análise fundamentalmente científicas do desenvolvimento social humano e das perspetivas para a emancipação humana

O avanço histórico do marxismo

O marxismo como ciência: O materialismo dialético, não a metafísica utópica

O novo comunismo: O novo avanço histórico da nova síntese do comunismo

A ciência

A estratégia... para uma revolução concreta

A liderança

Uma sociedade radicalmente nova na via para a verdadeira emancipação

Notas

Breakthroughs

(Abrindo Brechas)

O avanço histórico realizado por Marx
e o novo avanço histórico do novo comunismo

Um resumo básico

Bob Avakian


Breve prólogo explicativo

No texto que se segue, muitos dos conceitos que serão abordados resultam da necessidade de lidar com as coisas com um elevado nível de abstração teórica. Fiz o meu melhor para tornar isto acessível a pessoas que ainda não têm sequer uma familiaridade básica com estes conceitos, a fim de lhes fornecer uma “porta de entrada” ao que é aludido na parte principal do título, enquanto para aqueles já familiarizados e apoiantes destas coisas, o objetivo é que aprofundem a compreensão das mesmas e a capacidade de as trabalharem e aplicarem para contribuírem para a revolução, e para o objetivo final do comunismo, que esta teoria assinala como sendo possível, necessário e urgentemente requerido para que haja um profundo avanço na emancipação humana. Este livro constitui, numa dimensão importante, uma ampliação de A Nova Síntese do Comunismo: Orientação, Método e Abordagem Fundamentais, e Elementos Centrais — Um Esboço3. Ao mesmo tempo, como se indica no título, é “um resumo básico” porque, ainda que uma exposição mais abrangente de muito do que é aqui abordado esteja incluído no livro O NOVO COMUNISMO4 — e de alguns elementos importantes estarem incluídos nas passagens selecionadas em O BÁsico5, um livro que pode, de uma maneira importante, servir de manual para a revolução —, também se torna necessária uma discussão condensada da teoria, da orientação estratégica e dos objetivos do movimento comunista tal como este se desenvolveu desde a época de Marx e com a continuação do seu desenvolvimento e síntese com o novo comunismo. É também “um resumo básico”, e não uma tentativa de fazer um resumo completo e definitivo, porque o desenvolvimento do novo comunismo é um trabalho em curso, parte importante do qual é continuar a aprender com e a sintetizar ainda mais o que foi feito antes, na primeira grande vaga da revolução comunista, começando com o avanço histórico realizado por Marx.


Karl Marx: Pela primeira vez na história, uma abordagem e uma análise fundamentalmente científicas do desenvolvimento social humano e das perspetivas para a emancipação humana

Em Teorias da Mais-Valia, Marx assinala a limitação essencial dos economistas políticos burgueses: eles consideram as relações económicas capitalistas, e a sociedade baseada na economia capitalista, como a única forma “natural” de economia e o ponto mais elevado e final do desenvolvimento social humano. Ou nas palavras do próprio Marx: “esta forma histórica definida e específica do trabalho social, tal como ela se manifesta na produção capitalista, é proclamada por estes economistas como a forma geral e eterna, como algo determinado pela natureza, e estas relações de produção como as relações absolutamente (e não historicamente) necessárias, naturais e razoáveis do trabalho social.”6 [Ênfase no original] As ideias deles, explica Marx, estão “inteiramente confinadas dentro dos limites da produção capitalista”7.

Isto constitui o ângulo morto e a falha fundamentais de todos os teóricos, teorias e comentários burgueses sobre a existência humana e o seu desenvolvimento histórico — e possibilidades —, e de todos os projetos e esquemas reformistas que procedem em conformidade com esta mundivisão burguesa.

Um exemplo disto: a palestra Fazer a Revolução e Emancipar a Humanidade (1ª Parte)8 inclui uma polémica contra Karl Popper e o ataque dele ao marxismo, que ele considera não ser uma ciência. Como parte disso, eu refutei as tentativas de Popper para desacreditar toda a análise marxista da mais-valia e a compreensão de que o valor é determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário que é incorporado na produção de algo, e a insistência de Popper em que, pelo contrário, são a oferta e a procura que estabelecem o valor. Mas a verdade é que uma aprofundada refutação deste argumento foi feita pelo próprio Marx em Teorias da Mais-Valia (e noutras obras). As pessoas como Popper são simplesmente preguiçosas, para além de tudo o resto. Nem sequer se dão ao trabalho de responder à refutação disto feita por Marx, incluindo em Teorias da Mais-Valia.

Mas, para além de alguém como Popper, em grande medida, a limitação essencial de que Marx fala é de tal maneira uma premissa operativa que foi interiorizada, ou “herdada” por aqueles que falam em nome deste sistema (ou, em qualquer caso, de acordo com os princípios e valores dele), como parte do “senso comum” da sociedade burguesa, muitas vezes sem sequer pensarem nisso nem estarem conscientes disso em nenhum momento. E isto também está inteiramente ligado ao parasitismo do imperialismo capitalista contemporâneo, muito especialmente nos Estados Unidos: o facto de que um capitalismo cada vez mais globalizado se baseia em muito grande medida, para a produção e a manutenção da taxa de lucro, numa vasta rede de fábricas de exploração extrema, particularmente no terceiro mundo da América Latina, África, Médio Oriente e Ásia, enquanto a atividade capitalista nas “pátrias” capitalistas-imperialistas se localiza cada vez mais na esfera da finança e da especulação financeira, e na “gama alta” das tecnologias de ponta (e não na produção dos materiais físicos básicos para essa tecnologia), bem como no setor dos serviços e na esfera comercial (incluindo no crescente papel do comércio online). Como assinalou Lenine, isto “imprime uma marca de parasitismo”9 à totalidade das sociedades como os Estados Unidos; e as teorias e observações daqueles que, uma vez mais, assumem que as relações de produção burguesas são as relações naturais, finais e eternas do trabalho social, não são mais que manifestações intelectuais dessas relações burguesas, marcadas como estão hoje pelo elevado grau de parasitismo de um país como os Estados Unidos. São uma manifestação da incapacidade de ver mais além daquilo que Marx caracterizou como o horizonte estreito do direito burguês — tal como definido, e circunscrito dentro dos limites delas, pelas relações de produção burguesas e pelas correspondentes relações sociais.

E isto é muitas vezes expresso em termos de uma espécie de “democracia” mágica que, por sua vez e ao mesmo tempo, está inextricavelmente ligada ao capitalismo, ainda que, de alguma maneira, não tenha conteúdo social e de classe — é uma democracia “pura” metafísica —, quando na realidade (como comentarei mais adiante) a democracia de que se está a falar e a exaltar desta maneira é uma forma de ditadura de classe que facilita e impõe as relações capitalistas de produção e o sistema global de exploração e opressão.

Vejamos algumas ilustrações contemporâneas disto — de entre o aparentemente infinito manancial de exemplos desses.

Em “Um renascimento na direita”10, David Brooks, um comentador conservador (mas opositor de Donald Trump), cita as teorias de John Locke como uma grande inspiração para o que Brooks exalta como o grande sucesso da democracia e do capitalismo norte-americanos. Locke, um filósofo inglês do período da ascensão do capitalismo há vários séculos, é um campeão do indivíduo — do indivíduo enquanto indivíduo, com capacidade de mobilidade social, que será julgado de acordo com o mérito individual e não de acordo com a casta social em que esse indivíduo nasce. Isto, declara Brooks, repetindo uma muito gasta receita burguesa, é a base para a igualdade humana e para a democracia e o capitalismo, dos quais os Estados Unidos são o modelo supremo e sobressaliente. Na realidade, Locke foi, acima de tudo, um defensor e teórico do indivíduo como proprietário de bens. Analisei isto em Democracia: Será o Melhor Que Conseguimos?, onde assinalei que “a sociedade de que Locke foi um expoente teórico, bem como um defensor político na prática, era uma sociedade baseada na escravidão assalariada e na exploração capitalista”11 — a qual, deve salientar-se, é uma sociedade marcada por uma profunda desigualdade e por relações sociais de opressão. E, como também assinalei em relação a Locke:

Não é surpreendente que, ao mesmo tempo que se opunha à escravatura na própria Inglaterra, ele não só defendeu no Segundo Tratado a instituição da escravatura, em determinadas circunstâncias, como também obteve um lucro nada insignificante no comércio de escravos e ajudou a elaborar a carta constitucional para um governo liderado por uma aristocracia proprietária de escravos numa das colónias norte-americanas.12

Aqui vemos um outro dos gritantes “ângulos mortos” dos teóricos e apologistas da sociedade burguesa, e em particular daqueles que cantam loas ao capitalismo norte-americano: ignoram regularmente o papel da escravatura na “grande história de sucesso” do capitalismo norte-americano — quando, na verdade, como assinalei em O BÁsico 1:1: “Sem a escravatura não haveria Estados Unidos como os conhecemos hoje. Isto é uma verdade simples e básica.” Esta afirmação concentra uma profunda realidade. Como assinalei em Revolução — E Nada Menos!, Adam Goodheart, no livro 186113, “cita o seguinte facto: no período anterior à Guerra Civil norte-americana, o valor monetário total dos escravos nos Estados Unidos era maior que o valor total de todas as fábricas e caminhos-de-ferro14. [Ênfase acrescentada] (E aqui também podemos referir A Metade Que nunca Foi Dita15, de Edward Baptist, que analisa em profundidade o papel crucial que a escravatura desempenhou no desenvolvimento da economia norte-americana e os indescritíveis horrores que isso envolveu.)

David Brooks exalta particularmente a grande expansão económica que ocorreu nos Estados Unidos no período de 1860 a 1900 (a qual também foi celebrada em termos extravagantes por Ayn Rand). Mas, uma vez mais, isto foi levado a cabo sobre uma base que, em grande medida, tinha sido construída sobre a escravatura; e no período posterior à Guerra Civil, juntamente com a continuação da extrema exploração das massas negras em condições muito pouco melhores que a escravatura (e ainda incorporando alguns dos elementos dela), esta expansão económica esteve ligada à expansão territorial para o Oeste norte-americano, que envolveu ainda mais massacres dos nativos norte-americanos e o roubo em grande escala das terras deles (e repetidamente rasgou tratados durante esse processo), e à expansão dos caminhos-de-ferro para o Oeste, que envolveu, entre outras coisas, uma cruel exploração dos imigrantes chineses, acompanhada de uma discriminação brutalmente opressiva. Também é uma verdade simples e básica que, como assinalei em O REGIME DE TRUMP E PENCE TEM DE SE IR EMBORA! Em Nome da Humanidade, RECUSAMO-NOS a Aceitar Uns Estados Unidos Fascistas, Um Mundo Melhor É Possível: “Os Estados Unidos são um país que estabeleceu o seu território e construiu os alicerces da sua riqueza através de uma violenta conquista de terras, do genocídio, da escravatura e da desapiedada exploração de sucessivas vagas de imigrantes para a América.”16

Um exemplo mais crasso do uso da filosofia em nome das aspirações burguesas encontra-se no artigo de Robert E. Rubin, “A filosofia produz resultados”. Rubin cita um professor de filosofia de Harvard na década de 1950, Raphael Demos, que, como Rubin descreve:

usava Platão e outros grandes filósofos para demonstrar que é impossível provar que qualquer proposição é verdadeira num sentido final e definitivo. (...)

Concluí que não se pode provar nada em termos absolutos, do que extrapolei que todas as decisões importantes têm a ver com probabilidades. Interiorizar o princípio central dos ensinamentos do Professor Demos — de ponderar os riscos e analisar as probabilidades e os compromissos — foi fundamental para tudo o que fiz nas décadas seguintes a nível profissional na finança e no governo.17

Não é acidental nem fortuito que o Robert E. Rubin que está aqui a defender este tipo de sofística relativista e anticientífica (de que não é possível provar nada definitivamente e que, em vez disso, devemos proceder através de ponderar os riscos e analisar as probabilidades e os compromissos) é o mesmo Robert E. Rubin que foi Secretário do Tesouro durante a presidência de Bill Clinton e que escreveu (num artigo na New York Times Book Review) que, na fundação dos Estados Unidos e na adoção da sua Constituição:

Os desacordos sobre a extensão do poder federal e o desenho das nossas instituições democráticas foram resolvidos através de longas discussões e, por fim, de acordos de princípios.18

Em “Sobre os ‘acordos de princípios’ e outros crimes contra a humanidade”19, chamei a atenção para o facto de que um exemplo saliente e atroz dos “acordos de princípios” adotados pelos fundadores dos Estados Unidos foi a aceitação da escravatura, com a cláusula na Constituição norte-americana que considera os escravos como três quintos de um ser humano. E, como também assinalei em O REGIME DE TRUMP E PENCE TEM DE SE IR EMBORA!: esta Constituição institucionalizou de facto o estupro em massa, juntamente com a escravatura. Todos os “fundadores” — e não apenas os próprios proprietários de escravos — são responsáveis por esses crimes monstruosos. Alega-se muitas vezes, como que para racionalizar tudo isto, que se não se tivesse chegado a esse compromisso, então não teria sido possível unir as colónias num único país com um único governo. Mas aqui levanta-se a questão, cuja mera colocação deve sugerir intensamente a resposta: porque foi necessário, e de que maneira se justifica, fundar um país com base na institucionalização da escravatura e nas atrocidades que lhe estão relacionadas — por que razão não teria sido muito melhor terem-se recusado a fundar um país com base nisso?

Aqui destaca-se com um relevo muito acentuado não apenas a cegueira — intencional ou não — mas também a absoluta bancarrota de alguém como Rubin e, mais geralmente, dos seguidores e apologistas no campo intelectual do capitalismo e mais especificamente do imperialismo capitalista norte-americano.


O avanço histórico do marxismo

Em contraste com o que é argumentado nestas várias expressões da filosofia, da teoria política e da teoria social burguesas (ou da mercantilização da filosofia, como no caso de Rubin), a abordagem científica encarnada no que Marx desenvolveu reconhece e realça que as relações fundamentais e essenciais de que as pessoas fazem parte na sociedade, e a chave para se compreender como funcionam uma economia e uma sociedade, são as relações de produção dessa sociedade e as suas correspondentes relações sociais. (Isto foi algo que Marx condensou numa formulação que veio a ser chamada de “4 Todas”, e à qual regressarei mais adiante.)

Estas relações não são “acidentais” nem “fortuitas”, nem arbitrárias — elas baseiam-se na realidade material de que qualquer sociedade é fundamentalmente uma maneira como os seres humanos interagem, uns com os outros e com o resto da natureza, para satisfazerem as necessidades materiais da vida e para gerarem as futuras gerações. E há a observação essencial de Marx de que, em qualquer sociedade, as pessoas entram em relações de produção definidas, que não são uma escolha delas mesmas, são antes determinadas fundamentalmente pelo caráter das forças produtivas (que incluem as terras, as matérias-primas, os edifícios e outras estruturas físicas, a tecnologia e as pessoas com os seus conhecimentos e capacidades) num dado momento. E, dado que as forças produtivas se estão continuamente a desenvolver, através da iniciativa e da ação humanas, num qualquer sistema dado, chega-se a um certo momento em que as relações de produção se transformam mais num entrave às forças produtivas do que numa forma adequada ao desenvolvimento delas, e torna-se necessária uma revolução para resolver esta contradição. Esta revolução é feita na esfera política, de uma maneira concentrada no derrube do velho poder político e no estabelecimento de um novo sistema de governo político cujo requisito fundamental é transformar as relações de produção de acordo com a maneira como se desenvolveram as forças produtivas.

Como assinalou Marx, uma das características distintivas dos reformistas — incluindo os “socialistas” reformistas — é que, dado que identificam a economia como a fonte da desigualdade e de outros males sociais, tendem a situar o problema na esfera da distribuição, quando a fonte fundamental da opressão e da desigualdade que caracterizam uma sociedade exploradora, como o capitalismo, reside na esfera da produção, e mais especificamente nas relações de produção.

Ora, no que diz respeito às relações de produção, vale a pena rever o que Lenine identificou como as diferentes partes componentes das relações de produção. As relações de produção, disse ele, são constituídas pelas seguintes três partes: a propriedade dos meios de produção; o papel da divisão social global do trabalho; e a consequente parcela na distribuição da riqueza social. Então, se pensarem nisso, se fossem uma grande empresa ou instituição financeira, ou um grande capitalista, possuiriam muitos meios de produção (fábricas, maquinaria e outra tecnologia, terras e por aí adiante). Se fossem um capitalista de pequena escala, um pequeno-burguês, talvez possuíssem algumas dessas coisas, mas não uma grande quantidade delas; não teriam um capital próprio de milhões ou milhares de milhões de dólares — talvez possuíssem uma quantidade muito menor. Assim, este é o primeiro aspecto — e Lenine identificou-o como sendo o mais fundamental — das relações de produção: a propriedade ou não propriedade dos meios de produção, e quantos desses meios de produção possui uma pessoa (ou uma empresa, etc.).

O segundo aspecto ou parte componente das relações de produção é o papel na divisão social do trabalho. Por exemplo, uma pessoa que não possui meios de produção, por si só, mas que possui uma capacidade rara, pode conseguir receber uma remuneração elevada devido a essa capacidade, apesar de não possuir meios de produção próprios. E as pessoas que em geral obtiveram um elevado grau de formação, os profissionais especializados, por exemplo, também estão numa posição diferente da das pessoas que não possuem meios de produção nem têm uma capacidade altamente desenvolvida (e tudo o que têm para viver é a sua capacidade de vender a sua capacidade de trabalho, a sua força de trabalho). Assim, os profissionais especializados e as pessoas em situações semelhantes, juntamente com os proprietários de meios de produção em pequena escala (ou de meios de distribuição em pequena escala, como os proprietários de pequenos comércios ou os lojistas) constituem a classe média (a pequena burguesia), por oposição à grande burguesia, a classe dominante capitalista.

Em relação à pequena burguesia — e às importantes diferenças que existem entre setores específicos desta classe, bem como ao que eles fundamentalmente têm em comum — são extremamente perspicazes e relevantes as seguintes observações feitas por Marx em O 18 de Brumário de Louis Bonaparte. Não se deve imaginar, escreveu Marx, que os intelectuais democráticos

sejam na realidade todos lojistas ou defensores entusiastas destes últimos. Segundo a sua formação e posição individual podem estar tão longe deles quanto o céu da terra. O que os torna representantes da pequena burguesia é o facto de que a sua mentalidade não ultrapassa os limites que esta [a pequena burguesia, ou os seus representantes democráticos] não ultrapassa na vida, de que são consequentemente impelidos, teoricamente, para os mesmos problemas e soluções para os quais o interesse material e a posição social impelem, na prática, a pequena burguesia.20

Os intelectuais democráticos pequeno-burgueses (as pessoas na sociedade capitalista cuja posição social e modo de vida se baseiam no trabalho na esfera das ideias, de um tipo ou de outro), tendem principalmente para o lado “esquerdo” do espectro político burguês (a posição “liberal” ou “progressista”), enquanto grande parte da camada dos “lojistas” (ou, em termos mais gerais, os proprietários de meios de produção ou distribuição em pequena escala) muitas vezes se inclinam para a direita, e mesmo para a extrema-direita, desse espectro (embora pelo menos alguns pequenos empreendedores, bem como muitos dos que estão na “economia de trabalho autónomo”, pareçam ser uma exceção a isto). Mas o que é verdade tanto para os lojistas (entendidos de uma maneira mais geral) como para os intelectuais democráticos é que, espontaneamente, permanecem confinados dentro dos limites constritivos das relações capitalistas de mercadorias e das correspondentes conceções do direito burguês.

E depois há as pessoas que não possuem meios de produção próprios e não têm nenhuma capacidade altamente desenvolvida nem um elevado nível de formação com os quais possam ascender a uma posição intermédia na sociedade e na sua divisão global de trabalho e que, por isso, estão no fundo da sociedade e ou vendem a sua capacidade de trabalho e de serem exploradas dessa maneira, ou não a conseguem vender e, consequentemente, ou estão a passar fome ou, para conseguirem viver, têm de se meter em tramoias de uma forma ou de outra, muitas vezes envolvendo-se no que equivalem a atividades pequeno-burguesas — como vendedores ambulantes ou coisas semelhantes.

Portanto, podemos ver que a divisão do trabalho está interligada à propriedade ou não propriedade de meios de produção, mas não está em total identidade com ela devido à questão da formação, das capacidades, das profissões, etc. E também podemos ver como a propriedade (ou não propriedade) de meios de produção e a divisão do trabalho na sociedade estão muito estreitamente relacionadas com a participação na distribuição da riqueza da sociedade. Se uma pessoa possui meios de produção com um valor de milhões ou milhares de milhões de dólares, a menos que seja terrível no que faz ou que seja simplesmente engolido pela anarquia do capitalismo, irá obter grandes lucros e uma parte deles será embolsada por essa pessoa como rendimentos pessoais, em grandes quantidades, mesmo que reinvista a maior parte desse lucro como parte do ímpeto competitivo do capitalismo. Se uma pessoa é um profissional especializado ou possui uma certa quantidade de meios de produção (ou de distribuição), mas não muitos, irá obter uma parcela média, por assim dizer, da distribuição da riqueza da sociedade. E se uma pessoa não possui meios de produção e não tem um elevado nível de formação nem capacidades altamente desenvolvidas, então terá uma menor parcela da distribuição da riqueza social.

Eis aqui um ponto interessante e importante: um lojista, por exemplo, pode ganhar menos que alguém que trabalhe por um salário numa fábrica ou que esteja numa situação similar (num hospital ou num armazém, etc.). Ainda assim, os lojistas estão na pequena burguesia, porque são proprietários de poucos meios de produção, ou de meios de distribuição, enquanto uma outra pessoa que pode ter um rendimento mais elevado mas não possui meios de produção, nem capacidades altamente desenvolvidas, e que vive apenas da venda da sua força de trabalho, está numa classe diferente, o proletariado. É importante compreender isto porque, nos Estados Unidos, com todo este populismo, há uma identificação grosseira da classe simplesmente com o estatuto económico ou os rendimentos. Então, ouve-se frequentemente dizer que “a classe operária” — e os comentaristas burgueses muitas vezes esquecem-se de incluir aí a palavra “branca”, quando é claramente a isso que se estão a referir — “a classe operária votou em Trump porque estava a sair-se muito mal a nível económico”. Mas, juntamente com o facto de as relações sociais e os “valores” terem sido um fator mais determinante que os rendimentos no que diz respeito a as pessoas terem votado ou não em Trump, muita desta “classe operária”, quer esteja a sair-se mal ou não tão mal a nível económico, faz de facto parte da pequena burguesia. Portanto, é importante compreender cientificamente estas coisas. Não se trata apenas de categorias arbitrárias. Faz uma verdadeira diferença em termos de qual é a perspetiva de uma pessoa o facto de ela estar realmente nos negócios e aspirar a ter sucesso e talvez a se transformar num empresário de maior dimensão, ou ser alguém que está meramente a vender a sua capacidade de trabalho — isto tem consequências reais no que é a vida dela e também em qual é a perspetiva dela, mesmo que espontaneamente. (E irei falar mais adiante sobre os limites da espontaneidade.)

Esta é uma importante análise feita por Lenine, a delineação destas três componentes das relações de produção, e de como elas estão interconectadas e se influenciam umas às outras e não podem ser completamente separadas umas das outras, ainda que cada uma seja importante por direito próprio e a primeira componente (a propriedade dos meios de produção) seja globalmente decisiva. Portanto, embora as relações de produção não sejam as únicas relações importantes entre as pessoas na sociedade, são as mais fundamentais e, em última instância, as mais determinantes, e esta análise de Lenine fornece-nos uma abordagem científica para compreendermos onde se situam as pessoas na sociedade e qual é o papel delas na sociedade em geral — e, mesmo, pelo menos até certo grau, quais são as inclinações espontâneas delas em relação às várias coisas que ocorrem na sociedade e no mundo (uma vez mais, compreendendo as limitações definidas da espontaneidade, que voltarei a abordar mais adiante). E a questão não é simplesmente que há estas relações fundamentais e essenciais na sociedade, mas compreender que elas são, como salientou Marx, independentes da vontade dos indivíduos. São categorias sociais reais que têm um significado real. Isto não é apenas um exercício intelectual arbitrário para agrupar as pessoas nestas categorias — isto reflete a realidade material concreta que tem consequências reais e uma profunda influência sobre as pessoas.

Quando Trump aparece com algumas das diatribes fascistas e ataques raivosos dele, ouvimos alguns desses porta-vozes do Partido Democrata a se queixarem: “Ele não nos está a unir, está a dividir-nos”, como se fosse possível unir toda a gente se o presidente, em vez de delirar raivosamente, dissesse as palavras melosas certas. E (regressando a Locke, por exemplo) tudo isto faz parte de tentar agir como se cada pessoa na sociedade fosse apenas um indivíduo. Claro que as pessoas são indivíduos, mas não são apenas indivíduos — para além disso, fazem parte das relações sociais e, mais fundamentalmente, das relações de produção, e isto tem consequências reais na maneira de viver delas, em como percebem as coisas espontaneamente e em como agem, num grau significativo. Estas coisas estão embutidas nesta sociedade e não é possível simplesmente substituí-las ou afastá-las dizendo palavras melosas para “nos unir em vez de nos dividir”.

Como já referi, as relações de produção na sociedade, por mais importantes e fundamentais que sejam, não são, claro, as únicas relações importantes na sociedade, e seria errado reduzir tudo a essas relações de produção. Também há relações sociais muito definidas e significativas, que também são objetivas e não são simplesmente categorias arbitrárias ou coisas nas mentes das pessoas. Por exemplo, há a relação social — uma relação desigual da opressão — entre os homens e as mulheres. Há a relação entre os povos ou nações opressores e os povos e nações oprimidos no interior da sociedade norte-americana (bem como à escala mundial). Por exemplo, se uma pessoa é branca, está objetivamente numa certa posição nesta sociedade; e se não é branca, faz parte do que é popularmente referido como “pessoas de cor” — os negros, os latino-americanos e outros —, está numa posição diferente, é objetivamente mantida numa posição inferior e oprimida. Não é que seja inferior como ser humano, claro, mas faz parte de uma categoria de pessoas que existe objetivamente em termos das relações sociais na sociedade e que é tratada e mantida numa posição inferior, mesmo que não seja, de maneira nenhuma, inferior como ser humano. E para racionalizar isto foi desenvolvida uma ideologia que diz que essa pessoa faz parte de um grupo de pessoas inferiores. Estas relações sociais de opressão correspondem às relações de produção de exploração.

É muito interessante: quando recentemente esses reacionários da idade das trevas começaram a centrar os ataques deles no campo da educação no Arizona, por exemplo, uma das coisas que fizeram foi mobilizarem-se para eliminar os estudos chicanos [mexicanos ou latino-americanos em geral — Nota do Tradutor]. E eu ouvi uma das pessoas da instituição de ensino estadual responsável por esta decisão a declarar: Não podemos ter uma educação que diz às pessoas que elas fazem parte de um grupo na sociedade que é oprimido; temos de ter uma educação que diga às pessoas que elas são todas apenas indivíduos.

Ora, a vida seria muito mais simples se realmente pudéssemos eliminar a opressão social simplesmente recusando-nos a falar nela. Mas, no mundo real, estas categorias de pessoas — estas relações sociais, para descrevê-las de uma maneira mais correta — existem objetivamente. Fazem parte das relações que evoluíram historicamente nesta sociedade. Não é possível eliminá-las simplesmente através de se desejar fazê-lo, e não é possível eliminá-las proibindo que se fale delas. (Claro, o objetivo, e certamente o efeito, ao proibirem que as pessoas falem destas coisas não é realmente eliminá-las mas, pelo contrário, perpetuá-las e reforçá-las.)

Compreender cientificamente o caráter da sociedade e a necessidade da revolução envolve obviamente uma compreensão das limitações de alguém como Martin Luther King, mas é muito interessante ver como as pessoas de direita, e mesmo alguns liberais, tratam o famoso discurso dele “Tenho um sonho”. Para parafrasear Martin Luther King, ele disse: Tenho um sonho de que um dia os descendentes dos escravos e os descendentes dos proprietários de escravos serão todos capazes de se unir e de se tratar uns aos outros apenas como indivíduos e de que serão julgados não pela cor da pele deles mas pelo conteúdo do caráter deles. Agora lembrem-se, Martin Luther King disse: “Tenho um sonho” — é um sonho, ou uma esperança, ou um objetivo — de que um dia isto será realidade. E então estas pessoas de direita e alguns liberais vêm e dizem: “Martin Luther King disse que esta é uma sociedade em que todos são julgados não segundo a cor da pele deles, mas segundo o conteúdo do caráter deles, portanto parem de reclamar sobre serem oprimidos por serem negros.”

Ora bem, isto é mais uma tentativa, em linha com o que declarou o funcionário fascista do ensino do Arizona, de obliterar as relações de opressão (ou antes, de obliterar o reconhecimento dessas relações de opressão) proibindo que as pessoas falem delas, ou distorcendo o que elas dizem quando falam delas. O objetivo é, obviamente, manter essa opressão e intensificá-la. Portanto isto é muito importante, a questão das relações sociais. Obviamente, estas relações sociais estão interligadas às relações fundamentais de produção na sociedade, mas elas também têm uma vida própria, e têm enormes consequências. E, uma vez mais, o que é importante aqui é que estas relações evoluíram historicamente e existem objetivamente. Não poderia haver uns Estados Unidos da América sem a supremacia branca. Esta é uma outra verdade simples e básica.

Para regressar ao que eu disse antes, vejam como eles articularam os Estados Unidos, os “grandes pais fundadores” — e, sim, eles foram os pais. Articularam o país com base num “acordo de princípios” — um “acordo de princípios” para institucionalizar a escravatura. Isso está embutido nesta sociedade, e isso tem uma consequência real. A escravatura não é simplesmente uma abstração. A escravatura é algo real que afeta pessoas reais. É um modo de vida: é uma maneira de produzir coisas; tem a sua própria dinâmica, interage com a produção e o intercambio de bens noutras partes da sociedade e a nível mundial — é uma coisa real. E depois, quando eles fizeram a Guerra Civil norte-americana, e o Norte derrotou o Sul, como parte necessária da derrota do Sul, o Norte teve de abolir a escravatura, primeiro nos estados da Confederação [do Sul], e depois em todo o país — foi isso que eles foram obrigados a fazer, Lincoln e o outros.

Mas depois, como é que eles voltaram a articular o país? Eles não estavam dispostos a ficar com metade de um país. Foi por isso, em primeiro lugar, que Lincoln foi para a guerra. Ele disse: Não podemos permitir que metade do país se separe, não se pode ter um país se metade dele se pode ir embora. Portanto, eles não estavam dispostos a ficar com metade do país e a ter todas aquelas potências europeias a fazer alianças com a outra metade do país que o abandonou, que se separou. Então eles tiveram de voltar a articular o país como país inteiro, e a única maneira como o podiam fazer, dadas as relações de produção e as relações sociais dominantes, era fazendo todo o tipo de “acordos de princípios”, uma vez mais, com a aristocracia do Sul, os grandes proprietários de terras, que eram, em muito grande medida, os antigos proprietários de escravos. Portanto, foi por isto que voltaram atrás com a Reconstrução, muito pouco tempo após a Guerra Civil, e as massas negras foram novamente traídas.

O que tudo isto reflete e ilustra é que estas são relações que evoluíram historicamente. Se eles tivessem tentado, digamos, subjugar completamente os antigos proprietários de escravos que tinham liderado a revolta da Confederação — a qual se tinha tentado separar e fez uma guerra na tentativa de o conseguir —, se tivessem avançado com toda a força contra eles, não teriam podido articular novamente o país como país capitalista. Isso teria estilhaçado o país inteiro, e no final provavelmente não teriam conseguido manter grande parte, ou nada, dele. Portanto, estas relações sociais e a interconexão delas com as relações de produção dominantes têm um significado real e um efeito real.

A relação de opressão entre os homens e as mulheres evoluiu historicamente ao longo de milhares de anos, e agora assumiu uma forma particular dentro do quadro das relações de produção capitalistas e do sistema capitalista em geral (não apenas num país específico, mas à escala mundial). Isto não é simplesmente uma coisa arbitrária, nem meramente uma questão das atitudes das pessoas. E isto leva-nos à questão da família, a qual, no capitalismo é, e continuará a ser, uma instituição patriarcal opressora. Ela envolve relações económicas, mas também sociais — é uma unidade económica da sociedade, e uma relação social que, em última instância, é determinada e moldada pelas relações de produção mais fundamentais que prevalecem numa dada sociedade, mesmo que tenham uma vida e uma dinâmica e impacto próprios.

Portanto, o que é preciso sublinhar aqui, uma vez mais, é que estas relações de produção e relações sociais evoluíram historicamente, estão profundamente embutidas na sociedade em qualquer momento dado, incluindo numa sociedade como os Estados Unidos neste momento. E, por outro lado, em contraste com o que é argumentado por todos estes teóricos e (para ser caridoso) filósofos burgueses, ainda que estas relações tenham evoluído historicamente, ao mesmo tempo não são permanentes.

Em relação a tudo isto, ao falar da mobilidade social que é muitas vezes referida como uma das grandes características da sociedade capitalista, Marx, numa outra importante obra dele, os Grundrisse, salientou que os indivíduos podem mudar de posição social e de classe numa sociedade como esta, mas as massas populares só podem escapar às relações sociais e de produção opressoras por meios revolucionários — através do derrube e abolição do sistema que se baseia nessas relações e que as encarna.

Há aqui uma questão a que tenho dado grande ênfase ao desenvolver o novo comunismo, e que é altamente relevante:

Em última instância, o modo de produção define a base e os limites da mudança, em termos de como se aborda qualquer problema social, como a opressão das mulheres, a opressão dos negros ou dos latino-americanos, a contradição entre o trabalho intelectual e o trabalho manual, a situação com o meio ambiente ou a situação dos imigrantes e por aí adiante. Embora todas essas coisas tenham uma realidade e uma dinâmica próprias, e não sejam redutíveis ao sistema económico, todas elas ocorrem dentro do quadro e dentro da dinâmica fundamental desse sistema económico; e esse sistema económico, esse modo de produção, estabelece a base e os derradeiros limites da mudança no que diz respeito a todas essas questões sociais. Portanto, se nos quisermos libertar de todas estas diferentes formas de opressão, temos de as abordar por direito próprio, mas também temos de mudar de uma maneira fundamental o sistema económico para lhe dar a capacidade de conseguir concretizar essas mudanças em termos fundamentais. Para dizer isto de outra maneira: Tem de haver um sistema económico que não impeça que se façam essas mudanças e que, pelo contrário, não só permita como forneça uma base favorável para fazer essas mudanças.21 [Ênfase no original]

Na polémica contra o reformista utópico do tempo dele, Proudhon, Marx argumentou que da parte de Proudhon havia uma miséria da filosofia (isto era um jogo de palavras com o título da obra de Proudhon, A Filosofia da Miséria). Da parte dos atuais teóricos burgueses, comentadores, etc. (os atuais apologistas do imperialismo capitalista), há uma gritante miséria da imaginação deles, bem como da moralidade e, de uma maneira mais fundamental, uma miséria da ciência.

Em contraste, Marx estabeleceu a análise da sociedade humana e do seu desenvolvimento histórico sobre uma base científica e com um método científico.

Vale a pena aprofundar esta afirmação de Marx, feita na mesma parte de Teorias da Mais-Valia que eu citei antes:

Mas, na mesma medida em que se compreende que o trabalho é a única fonte de valor de troca e a fonte ativa do valor de uso, também o “capital” é concebido pelos mesmos economistas burgueses (...) como o regulador da produção, a fonte da riqueza e o objetivo da produção, enquanto o trabalho é visto como trabalho assalariado, (...) um mero custo da produção e instrumento da produção, dependente de um salário mínimo e forçado a descer mesmo abaixo deste mínimo assim que a quantidade de trabalho existente se torna “supérflua” para o capital. Nesta contradição, a economia política [burguesa] meramente exprimiu a essência da produção capitalista ou, se se quiser, do trabalho assalariado, do trabalho alienado de si mesmo, que se vê confrontado com a riqueza que ele criou como sendo a riqueza alheia, com a sua própria força produtiva como sendo a força produtiva do seu produto, com a riqueza por ele criada como sendo o seu próprio empobrecimento e com a sua força social como sendo a força da sociedade.22 [Negrito acrescentado]

Aqui, Marx acrescenta que “esta forma histórica definida e específica do trabalho social, tal como ela se manifesta na produção capitalista, é proclamada por estes economistas como a forma geral e eterna, como algo determinado pela natureza, e estas relações de produção como as relações absolutamente (e não historicamente) necessárias, naturais e razoáveis do trabalho social”23. Examinemos mais de perto esta análise crucial, especialmente a parte a que aqui dei particular ênfase (a negrito).

Por exemplo, salientei as frases em que Marx diz que os economistas políticos burgueses consideram o trabalho assalariado como “um mero custo da produção e instrumento da produção”. Por outras palavras, eles viram a realidade do avesso e tratam o processo de produção, e a produção de lucro, como algo que flui do capital e do papel do capitalista, em vez de onde ele de facto reside — na exploração do trabalho assalariado. E isto leva-nos ao ponto crucial que tenho vindo a salientar, e que não é demasiado salientar: o capital é uma relação social — uma relação social de exploração, e de opressão — e não apenas uma “coisa”. Não é apenas maquinaria; não são apenas terras; não são apenas matérias-primas; não são apenas edifícios — é uma relação social. É muito importante compreender isto, e isto é continuamente encoberto. Hoje em dia, eles não só falam no capital como maquinaria e outros objetos inanimados, chegam a falar descaradamente em “capital humano”, a falar das pessoas como “capital humano”, o que nos dá uma pista sobre a natureza do sistema, que reduz as pessoas a “capital humano”.

Esta relação social, a exploração do trabalho assalariado, é a forma específica de exploração no capitalismo, e é a fonte de mais-valia e lucro neste sistema. É o papel concreto que, ao ser aplicado no processo de produção, o trabalho desempenha na criação de mais valor do que o valor que é pago àqueles que trabalham desta maneira como trabalhadores assalariados. É isso que cria a mais-valia da qual provém o lucro, depois de se terem deduzido as outras despesas. E, com o capitalismo, não só há uma generalização das relações de mercadorias — com tudo a ser cada vez mais transformado numa mercadoria —, como também há a crucial particularidade de a força de trabalho, a capacidade de trabalhar, ser uma mercadoria. Esta é um tipo particular de mercadoria: ao contrário dos outros elementos da produção (os outros instrumentos de produção, para usar a expressão de Marx), a força de trabalho enquanto mercadoria, utilizada no processo de produção, pode criar mais valor quando é utilizada no processo de produção do que o valor que equivale ao salário, para dizer isto de uma maneira simples. É por isso que Marx se referiu a ela como capital variável, por oposição ao capital constante: o capital que é investido na força de trabalho pode levar à criação de mais capital, mais riqueza, mais-valia — enquanto o capital constante se refere à maquinaria, às matérias-primas e a outras coisas que são meros “insumos” (meros “instrumentos” de produção) que não aumentam o valor do produto no processo de produção; eles simplesmente passam o valor que já têm para o novo produto.

Juntamente com isto, é importante compreender que, ao contrário das noções dominantes da economia burguesa, o valor não é “adicionado” na esfera comercial, através da venda do produto; em vez disso, o que acontece através dessas transações comerciais é a realização de valor que já foi criado através da aplicação do capital variável, ou seja, da exploração do trabalho assalariado, no processo de produção.

Portanto, esta força de trabalho como capital variável aplicado na produção não é apenas mais um “custo de produção”, mais um “insumo”; e a fonte do “crescimento económico” não são os proprietários desses “insumos” (os capitalistas) e a inovação deles, ou o “talento empresarial” deles, mas sim, uma vez mais, a exploração daqueles cujo trabalho cria a “riqueza alheia” de que fala Marx, os quais são, nas palavras dele, confrontados com a riqueza que criaram como sendo a “riqueza alheia” — confrontados com o que foi produzido pela própria força produtiva deles como sendo a “força produtiva do seu produto”, a qual de facto eles criaram através do seu trabalho.

Isto é uma outra maneira de dizer — um outro ponto muito importante que Marx trouxe à luz do dia — que no capitalismo o trabalho morto domina o trabalho vivo. Que significa isto? Não significa que vamos a uma fábrica e aí encontramos pessoas mortas! Naturalmente, hoje em dia ninguém pensa espontaneamente desta maneira neste tipo de sociedade, e os economistas políticos burgueses geralmente não falam nestes termos, mas a própria expressão “trabalho morto” aponta para uma correta compreensão das coisas, porque o que é um qualquer objeto concreto senão um produto do trabalho? Sim, as matérias-primas entram nele, mas de onde vieram as matérias-primas? Elas também são um produto do trabalho. Em “Sobre a possibilidade da revolução”24 (um documento muito importante do Partido Comunista Revolucionário, EUA) assinalou-se que coisas como as terras e as matérias-primas são, por assim dizer, “fornecidas pela natureza”. Elas estão lá quer aí haja pessoas ou não. Mas, para se tornarem parte do processo de produção, têm de ser trabalhadas por pessoas. Por exemplo, o ouro ou a prata ou outros minerais têm de ser minerados. As terras têm de ser trabalhadas. Têm de se tornar parte de um sistema de produção. No capitalismo, isto é feito esmagadoramente — não inteiramente, mas esmagadoramente — através do trabalho assalariado. Portanto, o que há, quando se olha para as matérias-primas, por exemplo, é o trabalho morto — o trabalho que já foi incorporado no processo —, não se vê o trabalho que aí está a ser feito nesse momento porque já está feito. Os capitalistas e os economistas políticos burgueses veem isso como um mero instrumento de produção. Mas, como salientou Marx, o que de facto está aí envolvido é a materialização do trabalho que já foi feito para produzir essas coisas: a mineração das matérias-primas, ou o trabalho feito sobre essas matérias-primas para fabricar uma máquina que, por sua vez, é usada para fabricar outra máquina, a qual, por sua vez, é usada para fazer um produto acabado para ser vendido como produto de consumo.

Então, quando se diz que, no capitalismo, “o trabalho morto domina o trabalho vivo”, isto significa que quando os assalariados entram no processo de produção, eles são basicamente tratados como apêndices da máquina, e são dominados por essa máquina, a qual é ela mesma produto de trabalho anterior. Todos os que já viveram a aceleração do trabalho numa fábrica, por exemplo, sabem o que isso significa. (Ou podem ver o famoso episódio da série televisiva norte-americana I Love Lucy em que as personagens de Lucy e da amiga dela, Ethel, estão a trabalhar numa linha de montagem e não conseguem manter o ritmo. Bem, elas estão a ser dominadas pelo trabalho morto, a maquinaria.) É isto o que acontece no capitalismo: a classe das pessoas que criaram essa maquinaria é, por sua vez, dominada por ela, o que é uma expressão essencial da sua condição de explorados.

A generalização das relações de mercadorias no capitalismo, e a crucial especificidade da força de trabalho como mercadoria — um tipo específico de mercadoria que, ao contrário dos outros elementos da produção, pode criar mais valor quando é utilizado no processo de produção (o capital variável, por oposição ao capital constante) — é a característica distintiva do capitalismo como relação social. E, com a generalização da produção e troca de mercadorias e a especificidade da força de trabalho como mercadoria, temos a contradição fundamental do capitalismo, a contradição fundamental entre a produção socializada (por oposição à produção individualizada) com um enorme número de trabalhadores organizados em sistemas de trabalho, muitas vezes com milhares deles sob um único teto, mas como parte de um processo global que envolve milhões e, em última instância, milhares de milhões de pessoas — trabalho esse que é feito não pelos proprietários dos meios de produção, mas por pessoas empregadas por eles como trabalhadores assalariados —, temos essa produção socializada, e apesar disso, e ao mesmo tempo, a apropriação privada nas mãos não apenas de capitalistas individuais mas, especialmente hoje em dia, de grandes agregados de capital sob a forma de grandes empresas e outras associações similares de capital. Ao contrário da apropriação social, em que a riqueza pertence à sociedade no seu conjunto, em vez disso ela está em agregados de associações específicas de capital — às vezes indivíduos, mas predominantemente, no mundo de hoje, empresas e outras associações de capital que muitas vezes controlam milhares de milhões de dólares de capital, não apenas num país, mas a nível internacional. É isso o que se quer dizer com apropriação privada, não é a apropriação pela sociedade no seu conjunto, mas a apropriação por capitalistas que competem entre si. E esta palavra, “competem”, é muito importante, porque esta apropriação privada significa que haverá concorrência entre os diferentes grupos de capitalistas que se apropriam privadamente da riqueza produzida socialmente.

E isto leva a quê? À anarquia — à anarquia na produção e à anarquia no sistema capitalista no seu conjunto. Engels, no Anti-Dühring25, analisou o movimento da contradição fundamental do capitalismo entre a produção socializada e a apropriação privada. Ele assinalou que o desenvolvimento desta contradição assume duas formas diferentes de movimento que entram no processo dinâmico do movimento desta contradição fundamental. Essas duas formas de movimento são, por um lado, a contradição entre a burguesia e o proletariado que aquela explora e a outra forma de movimento que Engels identificou, de uma maneira importante, é a contradição entre a organização e a anarquia, a organização da produção a nível de, digamos, uma empresa — a qual pode ser altamente organizada, em que são feitos muitos cálculos, estimativas de mercado e todos os tipos de coisas, e que pode estar muito firmemente organizada em termos da maneira como é realizado o processo concreto de produção ao nível de uma empresa capitalista específica, e por aí adiante —, enquanto, ao mesmo tempo, isto está em contradição com a anarquia da produção e intercâmbio de mercadorias em toda a sociedade (ou hoje em dia em todo o mundo, hoje em dia mais do que nunca em todo o mundo). Portanto, há estas duas formas de movimento — e voltarei a falar mais adiante de um aspecto crucial que distingue o novo comunismo: a importância de identificar a segunda forma de movimento desta contradição fundamental, ou seja, a contradição anarquia/organização, ou a força motriz da anarquia, como sendo globalmente a forma principal e mais essencial de movimento da contradição fundamental do capitalismo.

Com tudo isto, Marx fez o que todos os economistas políticos burgueses e expoentes da teoria política e social não fizeram — ou se recusaram a fazer —, pelo menos de uma maneira essencial e consistente: situar o capitalismo e as suas relações essenciais de produção num contexto histórico mais vasto, revelando que isto não é, de facto, o ponto final e a maior expressão do desenvolvimento social humano — “a forma geral e eterna, (...) as relações absolutamente (e não historicamente) necessárias, naturais e razoáveis” —, mas apenas uma forma particular, historicamente condicionada e temporária dessas relações, as quais podem e devem ser substituídas pelas relações económicas e sociais socialistas e, em última instância, comunistas (e pelas correspondentes instituições e ideias), as quais encarnam a abolição de todas as relações de exploração e opressão.

Ora, é verdade que não se confirmaram algumas das previsões específicas feitas por Marx e Engels ao observarem as tendências da sociedade capitalista na época deles, em particular de que a sociedade capitalista se continuaria a dividir cada vez mais em duas classes antagónicas — a burguesia (os exploradores capitalistas) e as massas de proletários explorados —, com a classe média a encolher, especialmente com um maior desenvolvimento do capitalismo para um sistema internacional de exploração, o imperialismo capitalista, que envolve o saque colonial do terceiro mundo e a sobre-exploração aí de vastas massas populares, numa rede global de fábricas de exploração extrema. Os críticos burgueses do marxismo (como, uma vez mais, Karl Popper) aproveitaram a diferença entre as previsões de Marx (e Engels) sobre a polarização na sociedade capitalista e o que de facto aí aconteceu, com o desenvolvimento do imperialismo capitalista, para tentarem desacreditar o marxismo e a sua reivindicação de ser cientificamente válido. Mas esses “críticos” ignoram, ou tentam afastar, a análise científica, iniciada por Engels no final da vida dele (em finais do século XIX) e desenvolvida por Lenine, de como a depredação colonial levada a cabo pelo imperialismo capitalista forneceu os espólios que constituem, em grande medida, a base económica material para o aburguesamento de um setor da classe trabalhadora e para o crescimento da classe média nas “pátrias” do imperialismo, entre as quais países como a Inglaterra e depois os Estados Unidos como principal potência colonial (ou neocolonial), com um vasto império de exploração.

Portanto, embora as tendências definidoras que foram observadas por Marx na sociedade capitalista se tenham mitigado, ou se tenham invertido em certa medida, nos países capitalistas-imperialistas, e ainda que a classe média também tenha crescido em muitos países do terceiro mundo ao longo das últimas décadas, o empobrecimento massivo nesses países continua a ser um fenómeno importante, e a polarização fundamental que Marx identificou — “A acumulação de riqueza num polo é, portanto, simultaneamente, acumulação de miséria, tormento de trabalho, escravatura, ignorância, brutalidade e degradação moral no polo oposto”26 — continua claramente a se aplicar, mas agora mais essencialmente à escala mundial. E, de importância fundamental, o método e a abordagem científicos que marcam o profundo avanço histórico feito por Marx no que diz respeito à análise da sociedade humana e ao seu desenvolvimento histórico não só continuam a ser válidos num sentido geral, como fornecem a base para se analisar e sintetizar, cientificamente, as mudanças que ocorreram desde a época de Marx, incluindo as mudanças que Marx não podia ter antecipado.


O marxismo como ciência:
O materialismo dialético, não a metafísica utópica

Como Mao tão pungentemente afirmou, os marxistas não são adivinhos. O marxismo é uma ciência, a qual deve ser continuamente aplicada, de uma forma viva, à realidade que está em processo de movimento e transformação contínuos, e cujo reconhecimento é um dos elementos fundamentais do materialismo dialético marxista.

Marx (numa carta a Joseph Weydemeyer, em 1852) fez este importante balanço sucinto. Ele disse:

Quanto a mim, não me cabe o mérito de ter descoberto nem a existência das classes na sociedade moderna nem a sua luta entre si. Muito antes de mim, alguns historiadores burgueses tinham exposto a evolução histórica desta luta das classes e alguns economistas burgueses tinham descrito a anatomia económica destas. O que eu trouxe de novo foi demonstrar: 1) que a existência das classes só está ligada a fases históricas determinadas do desenvolvimento da produção; 2) que a luta de classes conduz necessariamente à ditadura do proletariado; 3) que esta ditadura não representa por si mais que a transição para a abolição de todas as classes e para uma sociedade sem classes.27 [Itálicos no original]

Muitas pessoas dizem: “Ah, Marx, para ele tudo tem a ver com a luta de classes. Ele pensava ter feito uma grande coisa ao descobrir que as classes existem e que as classes lutam.” E no entanto, aqui está Marx, em 1852, a explicar que essa não era a essência, e a importância, do que era novo no que ele fez — foi muito mais além de meramente falar da existência de classes e da luta de classes.

Em relação à palavra “necessariamente”: devo dizer que não me é inteiramente claro exatamente o que Marx queria dizer com “necessariamente” neste contexto, mas a relação — e em particular a diferença — entre “necessidade” e “inevitabilidade” é uma questão muito importante. Falarei mais sobre isto quando discutir mais diretamente o novo comunismo, mas por agora deixem-me citar esta afirmação muito importante da polémica “Ajith — Um retrato do resíduo do passado”:

Inevitabilidade quer dizer que “não se pode evitar”. Indica uma trajetória fixa de desenvolvimento sem nenhum outro resultado possível. A necessidade é diferente; a necessidade determina, estrutura e limita os potenciais e os caminhos, mas nem sempre produz um resultado único. O conceito de necessidade envolve leis causais, há relações de “causa e efeito”, mas isto não é linear nem predeterminado — é um processo dinâmico.28 [Ênfase no original. Este excerto está na Parte VII, “A REVOLUÇÃO COMUNISTA É NECESSÁRIA E POSSÍVEL, MAS NÃO INEVITÁVEL... TEM DE SER FEITA CONSCIENTEMENTE”, e especificamente na secção “Marx e Avakian sobre a ‘coerência’ na história humana”.]

Novamente, irei dizer mais sobre isto mais adiante, mas agora regressemos à questão da ditadura — e da democracia —, porque Marx disse que a luta de classes conduz necessariamente à ditadura do proletariado. Para começar, a democracia no capitalismo é uma forma de ditadura, a ditadura da classe capitalista (a burguesia): é uma democracia nas condições do capitalismo e da dominação da vida económica, social e política e da esfera da cultura e das ideias pela classe capitalista no poder. Isto exprime a essência do que é uma ditadura. Não se trata de um indivíduo a bater na mesa e a dizer: “Vocês têm de fazer o que eu digo!” A ditadura é a ditadura de uma classe, a ditadura ao serviço dos interesses de uma classe e ao serviço de um sistema específico do qual essa classe é a expressão essencial e concentrada. A essência da ditadura — de qualquer tipo de ditadura, de qualquer classe que seja — é o monopólio do poder político e a exclusão de outros de qualquer exercício real desse poder político. E isto, por sua vez, está concentrado como monopólio não apenas da força armada e da violência em geral, mas do que são consideradas força armada e violência “legítimas”. Daí que, quando o exército vai para a guerra, isso é a extensão dessa ditadura, e da sua força armada e violência “legítimas”, a nível internacional. Quando alguém rouba uma loja — isso é força e violência ilegítimas. Quando um polícia mata a tiro um negro na rua — a classe dominante quer declarar isso como força armada e violência legítimas e tenta fazer passar esse veredicto, sempre que possa e onde possa, mas quando alguém se defende disso, então isso é força e violência “ilegítimas”. Tudo isto é um reflexo não de algumas categorias abstratas de legítimo e ilegítimo que de alguma maneira tenham caído do céu (ou que existam eternamente), mas de relações sociais reais, e fundamentalmente de relações de produção, e do correspondente sistema de governo, ou seja, da ditadura da classe capitalista.

Uma vez mais, a ditadura é, em última instância e fundamentalmente, a ditadura de uma classe ao serviço dos interesses de um sistema de que essa classe é uma expressão, e não a ditadura de um indivíduo ou de apenas um pequeno grupo que governa meramente através da imposição da sua vontade, independentemente e à parte das reais relações sociais e de produção subjacentes.

E aqui chegamos a uma outra importante componente da compreensão científica marxista: a relação entre a base económica da sociedade e a superestrutura política e ideológica (as estruturas e instituições políticas, e a cultura e ideias dominantes). Em última instância — não no sentido mecânico de que tudo pode ser imediatamente reduzido a isto, mas em última instância e fundamentalmente —, a superstrutura da sociedade tem de corresponder às relações de produção subjacentes. A base económica da sociedade, o “modo de produção” — a maneira como a sociedade de facto leva a cabo a produção e a reprodução dos requisitos materiais da vida e possibilita que as pessoas se reproduzam —, isso estabelece as condições para o que irão ser as instituições e processos políticos e para o que irão ser as ideias e a cultura prevalecentes. E eu assinalei, por exemplo em Os Pássaros não Podem Dar à Luz Crocodilos, mas a Humanidade Pode Voar para além do Horizonte29, que se a superstrutura está, de alguma maneira significativa e num dado período de tempo, em dissonância, em conflito de alguma maneira essencial, com a base económica, a sociedade entra em paralisia. É muito importante compreender isto, tem tudo a ver com a maneira como a sociedade funciona, incluindo qual é o papel das eleições numa sociedade onde haja eleições. Toda a maneira como as pessoas são moldadas por esta sociedade, através do mero funcionamento da sociedade, bem como da superestrutura política e ideológica prevalecente, de facto condiciona, num sentido fundamental, a maneira como elas respondem politicamente, e que ideias prevalecem na própria maneira de pensar delas. Há uma interconexão entre as duas; há uma certa “vida própria” nas ideias e na cultura da sociedade e nas instituições e processos políticos, mas elas também estão estreitamente entrelaçadas com as relações sociais e de produção e, em última instância, são determinadas por essas relações.

Uma vez mais, se de alguma maneira essencial e durante qualquer período de tempo a superstrutura está em dissonância com as relações de produção subjacentes, isso irá fazer com que a sociedade entre em paralisia, e então haverá forças que irão intervir para tentarem restaurar a “ordem” por um ou outro meio, incluindo os meios mais extremos. Imagine-se, por exemplo, que na sociedade capitalista era eleito um partido político que dizia “Vamos transformar gradualmente a contradição fundamental do capitalismo entre a produção socializada e a apropriação privada, tomando progressivamente posse de todas as empresas capitalistas e convertendo-as em propriedade da sociedade no seu conjunto através do estado”, e que começava a implementar isso. Mesmo que não houvesse imediatamente uma revolta política, e militar, da classe capitalista e dos seus representantes armados, haveria caos na sociedade, porque a base subjacente estaria a operar de uma certa maneira, e ao mesmo tempo haveria essas movimentações políticas para tentar mudar isso, por partes, mas isso não seria feito com base na tomada do poder à burguesia e em haver um plano global para de facto transformar a base económica, bem como as relações sociais. Se, em vez disso, houver um governo (ou partes dele) nas mãos de pessoas que tentam levar a cabo essa transformação, ou alguns aspectos dela, progressivamente e sem esmagar o poder de estado da classe capitalista — isso não só seria imediatamente combatido politicamente, e militarmente, pelas forças burguesas, como iria, em qualquer dos casos, atirar tudo para o caos, porque a sociedade seria “em parte desta maneira e em parte daquela maneira”, e isso seria ainda mais anárquico que o “funcionamento normal” da sociedade capitalista.

Recentemente, passou a série televisiva Ocupados, que gira em torno de um cenário em que um governo na Noruega decidiu eliminar a produção de petróleo e gás natural — e o país foi rapidamente ocupado pela Rússia, agindo em conluio com a União Europeia. Esse governo norueguês não conseguiu manter a sua decisão de parar a produção desses combustíveis fósseis — ou manter a sua soberania — porque esses outros países capitalistas-imperialistas não podiam funcionar sem o petróleo e o gás natural que eram produzidos pela Noruega e por isso agiram para forçar a Noruega a continuar essa produção. Ainda que situada no campo da ficção, e envolvendo uma não pequena dose de fantasia (ao conceber uma Noruega capitalista cuja economia pudesse funcionar sem petróleo e gás natural), isto ilustra as maneiras como uma decisão política, mesmo do governo de um pequeno país capitalista, que está em conflito com a dinâmica de base do sistema capitalista-imperialista mundial — em que as economias dos diferentes países capitalistas-imperialistas, bem como as dos países que eles dominam no terceiro mundo, estão estreitamente interligadas e interdependentes —, poderia levar a uma situação caótica e à intervenção de estados imperialistas mais poderosos para forçar esse país a regressar ao quadro e à dinâmica estabelecidos.

O que isto também ilustra é que não é possível fazer isso por partes — não é possível transformar a sociedade sem se tomar o poder na superstrutura, derrotando e desmantelando as instituições que impõem violentamente a ditadura da classe capitalista, e estabelecendo novas instituições revolucionárias que forneçam os meios para transformar totalmente a base económica, a começar com a expropriação dos grandes capitalistas e a socialização dos grandes meios de produção, e defendendo a revolução contra as tentativas das forças estrangeiras e/ou “internas”, de inverterem esta revolução. E quando se tenta fazer isso parcialmente e por partes, só se vai gerar uma confusão e criar o caos, e então haverá outras forças que irão avançar para “corrigir as coisas” com uma base capitalista.

Como outra ilustração da maneira como a superstrutura política e ideológica tem de estar em conformidade fundamental com a base económica subjacente, tenho usado o exemplo do “direito a comer” — um direito que não existe, e que na realidade não pode existir, no capitalismo (um direito que, mesmo que fosse proclamado e consagrado na lei, não poderia de facto ser implementado numa tal sociedade). Ampliemos isto para além do direito a comer, para incluir todas as necessidades básicas da vida: imaginem que o sistema político e as leis decretavam que as pessoas podiam simplesmente pegar em tudo o que precisassem como necessidades básicas da vida, sem pagar por isso. Se isso fosse feito, enquanto a economia continuava a funcionar segundo os princípios e a dinâmica do capitalismo, em que as coisas são produzidas como mercadorias pelas quais outras mercadorias (e em particular o dinheiro, sob alguma forma) têm de ser trocadas (em suma, em que as coisas têm de ser compradas), então a economia iria, obviamente, colapsar muito rapidamente. Isto é tão claramente óbvio que muitas pessoas iriam objetar imediatamente que, “claro”, não se podia fazer isto, e que é ridículo sugerir tal coisa. Mas semelhante resposta é em si mesmo fundamentalmente um reflexo de que as pessoas estão tão condicionadas a agir e a pensar dentro dos limites das relações capitalistas de mercadorias que lhes é difícil conceberem uma sociedade e um mundo radicalmente diferentes, um mundo comunista, em que de facto as coisas poderiam e seriam distribuídas às pessoas com base na necessidade — em que a produção e a troca de mercadorias (e, com isso, do dinheiro como equivalente universal das mercadorias) teriam sido superadas e eliminadas, e em que as palavras de ordem comunistas “de cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades” seriam o princípio operativo.

(Quanto ao argumento, que pode ser levantado, de que não é uma questão de haver indivíduos que se empenham em satisfazer as suas necessidades básicas através de simplesmente pegarem nas coisas, mas uma questão de o governo fornecer essas necessidades básicas: no artigo “‘Serem previamente transformados em capital’... e pôr fim ao capitalismo”30 — e em particular nas secções “O governo não pode ‘eliminar por decreto’ a dinâmica fundamental do capitalismo” e “Porque é que ‘a vida não é justa’ no capitalismo… Porque é que o mundo é como é, e como poderia ser radicalmente diferente” — analisei por que razão, mesmo que houvesse um governo que, neste sistema, tentasse usar as receitas do governo para conceder o “direito a comer” — ou, de uma maneira mais geral, para satisfazer os requisitos básicos da vida às massas populares, as relações e a dinâmica fundamentais do capitalismo, não apenas num país específico, mas à escala mundial, iriam limitar, minar e, em última análise, desfazer qualquer tentativa dessas.)

Ou, pensem no que aconteceria se realmente se tentasse eleger um partido que dissesse: “Vamos abolir a supremacia branca”. Veja-se o que já aconteceu nos Estados Unidos, por exemplo. As pequenas concessões à luta contra a supremacia branca e a supremacia masculina foram um importante fator na gestação de uma forma fascista de governo, com a eleição de um fascista através do sistema do Colégio Eleitoral — eleito para o cargo mais alto do país — e com o Partido Republicano, que neste momento é essencialmente um partido fascista, a dominar as estruturas governamentais: tudo isto acontece, em grande medida, como resposta a concessões menores em algumas dessas esferas das relações sexuais e de género e da supremacia branca. Portanto, podemos ver o que aconteceria se a superstrutura estivesse de facto radicalmente fora de passo com as subjacentes relações sociais e de produção: haveria caos, e isso daria um ímpeto a forças cuja missão é restaurar a ordem, de uma natureza fascista, tal como já hoje acontece nos Estados Unidos.

O que é de salientar em tudo isto é que a democracia não é alguma grande ideia que existe no etos e nas cabeças de grandes homens, desde os gregos da antiguidade à atual sociedade norte-americana, com algumas interrupções infelizes ao longo do caminho, as sociedades feudais e esclavagistas. A democracia faz parte de quê, de facto? Da superstrutura. Faz parte do que, em última instância, está ancorado e é determinado pela base económica da sociedade. E a forma específica da democracia em qualquer sociedade dada é condicionada pelo que é o caráter da produção subjacente e das correspondentes relações sociais. Portanto, quando há uma base económica capitalista, tem-se uma forma capitalista de democracia. Por outras palavras, tem-se uma democracia burguesa. Tem-se uma democracia se acordo com os termos do sistema capitalista, o qual corresponde aos interesses da classe capitalista que domina esse sistema de relações sociais e de produção.

A democracia burguesa — que é na realidade a forma democrática da ditadura burguesa — é, em “tempos normais”, a forma de governo que pode ser a mais adequada para a sociedade capitalista porque permite à classe dominante capitalista manter nas pessoas a ilusão de que elas são a força de governo da sociedade quando, de facto, é a burguesia que as está a dominar e a governar. Portanto, corresponde aos interesses da classe capitalista, em “tempos mais normais”, manter esta forma de governo e permitir que as pessoas votem para decidirem que grupo de capitalistas irá administrar a dominação da classe capitalista sobre as massas populares e manter e servir os interesses do sistema capitalista subjacente, não só no país, como a nível internacional, incluindo através de guerras.

Mas, como assinalei ao falar da necessidade de expulsar o regime de Trump e Pence através de uma mobilização não violenta mas sustentada das massas: no contexto das profundas e agudas contradições que se expressam de maneiras que rasgam o próprio tecido e aprofundam as fendas nos alicerces da sociedade, ao mesmo tempo que a classe capitalista dominante enfrenta sérios desafios a nível internacional, o fascismo é uma possível resolução desta situação, nos termos deste sistema e da sua classe dominante, mesmo que seja um horror para a humanidade. O fascismo é a ditadura aberta e flagrante da classe capitalista, que espezinha e elimina as “normas” do regime democrático burguês, como o estado de direito e os direitos civis e legais formais, e que em geral envolve a paralisia e/ou o esmagamento das forças mais “tradicionais” da classe dominante pelo ascendente setor fascista da classe dominante. (Podemos ver isto nas experiências da Itália fascista e da Alemanha nazi após a Primeira Guerra Mundial; e, nos tempos mais recentes, o regime de Trump e Pence nos Estados Unidos e os regimes e forças similares na Europa são exemplos gritantes do fascismo no poder ou em ascensão.)

O primeiro passo, ou salto, crucial e necessário para se ultrapassar tudo isto é o derrube da ditadura burguesa (qualquer que seja a sua forma) e a sua substituição, país após país, pela ditadura do proletariado — cuja meta fundamental é a concretização do comunismo, em todo o mundo, com a abolição de todas as relações de exploração e opressão e dos correspondentes antagonismos sociais. Esta ditadura proletária é fundamentalmente o oposto da ditadura burguesa: é uma democracia para as vastas massas populares no contexto de um sistema socialista que, na esfera da economia, da política, das relações sociais e das ideias, está a fazer avançar a transformação da sociedade rumo à meta do comunismo.

Como afirmou Marx, de uma maneira muito concentrada, em As Lutas de Classes em França, 1848-5031 (numa formulação que se tornou conhecida como as “4 Todas”), esta ditadura do proletariado é a transição necessária para a abolição de todas as distinções de classe; a abolição de todas as relações de produção em que se baseiam essas distinções de classe; a abolição de todas as relações sociais que correspondem a essas relações de produção; e o revolucionamento de todas as ideias que resultam dessas relações sociais. E quando se “inverte” esta formulação das “4 Todas”, e se insiste na manutenção das relações capitalistas sociais e de produção, das ideias e da cultura, e das distinções de classe prevalecentes, torna-se muito claro por que não pode haver uma base e uma superstrutura que estejam completamente em dissonância uma com a outra porque, uma vez mais, as relações sociais e de produção irão ditar uma certa maneira de como a sociedade tem de ser gerida, e isto dita fundamentalmente a maneira como as pessoas irão responder aos acontecimentos na sociedade. Enquanto este sistema estiver no poder e em vigor, mesmo que as pessoas se inclinem para um programa mais radical que conduza à abolição das relações de exploração e de opressão deste sistema, elas irão ser puxadas para trás, para longe disso, pelo próprio funcionamento do sistema, e isso irá ser-lhes apresentado de uma maneira concentrada pelos representantes da classe dominante, que lhes dirão: “Não podem fazer isso neste sistema. Se o fizerem, vão causar um caos. Se o fizerem, não vão ter emprego. Se tomarmos medidas para abolir completamente a supremacia masculina e a supremacia branca, isso vai gerar o caos na sociedade e apenas vamos obter o fascismo. Por isso é melhor votarem no Partido Democrata e manterem as coisas tal como elas estão.”

Portanto, podemos ver como tudo isto está entrelaçado — estas “4 Todas” — as distinções de classe, as relações de produção em que elas se baseiam, as relações sociais que correspondem a essas relações de produção e as ideias que andam de mãos dadas com essas relações sociais e de produção. Tudo isto está entrelaçado, e ou há uma coisa ou a outra: ou estamos a avançar na direção de abolir tudo isso — o primeiro grande salto do qual é, repito, tomar o poder à classe capitalista e abolir a ditadura burguesa —, ou a influência e o funcionamento destas “4 Todas” no sistema atual (as relações sociais e de produção, distinções de classe e ideias que prevalecem) irão puxar constantemente as pessoas de volta ao reforço do sistema atual. Portanto, quando as pessoas vão às urnas, o que é realista fazer, neste sistema, é votar em coisas que reforçam o sistema. De outra maneira, haverá o caos, no qual as pessoas irão sofrer, e não haverá falta de políticos burgueses que serão muito rápidos a apontar-lhes isso. É por isso que tem de haver o derrube total deste sistema, o que então torna possível a transição e a luta para transformar estas “4 Todas”.

O avanço histórico realizado por Marx é a base sobre a qual se continuou o desenvolvimento do comunismo científico, como a teoria que guia a luta viva para se alcançar as “4 Todas” e fazer avançar a sociedade humana para uma era completamente nova — não uma utopia marcada pela ausência de contradição, mas uma sociedade e um mundo de seres humanos libertados do antagonismo social e do predomínio das correspondentes ideias e da maneira como tudo isto tem agrilhoado e desfigurado a existência social humana e a interação humana com o resto da natureza. Foi sobre esta base científica e com esta compreensão científica que Marx disse celebremente que o proletariado só se pode emancipar a si mesmo emancipando toda a humanidade.


O novo comunismo:
O novo avanço histórico da nova síntese do comunismo

Aqui quero falar do que tenho feito que é novo, tomando por base Marx e toda a primeira etapa da revolução comunista e da sociedade socialista, mas indo para além disso em importantes aspectos.

Em Bob Avakian (BA) — Biografia Oficial assinala-se que a nova síntese do comunismo (também chamada o novo comunismo) “é a continuação da teoria comunista tal como ela foi anteriormente desenvolvida, mas também representa um salto qualitativo para além dela e, em alguns sentidos importantes, é uma rutura com ela”32. E esta biografia oficial cita a primeira das “Seis Resoluções do Comité Central do Partido Comunista Revolucionário, EUA”, sobre a questão crucial de que a nova síntese

representa e encarna uma resolução qualitativa de uma contradição crítica que tem existido no comunismo e no seu desenvolvimento até este momento, entre o seu método e abordagem fundamentalmente científicos e os aspectos do comunismo que têm ido em sentido contrário a isto.33 [Ênfase no original]

Já há muitos anos, em Conquistar o Mundo?34 no início da década de 1980, e noutras obras publicadas desde então, comecei a investigar extensivamente a história do movimento comunista e da sociedade socialista desde o tempo de Marx (e Engels), e assinalei que Marx e Engels foram extremamente visionários, de muitas maneiras e num sentido fundamental, ao mesmo tempo que, não surpreendentemente, também limitados e mesmo, em alguns sentidos, ingénuos, em certos aspectos secundários, ainda que significativos — o que, quando se pensa nisso, é verdade para todas as abordagens e métodos científicos, ao contrário das perspetivas metafísicas, como a religião. E, falando de perspetivas metafísicas e religiosas, quando Conquistar o Mundo? foi publicado, algumas pessoas no movimento comunista internacional disseram que esse ensaio apresentava o comunismo como uma bandeira esfarrapada; e houve mesmo a atitude de que, de alguma maneira, era proibido falar não só dos erros que foram cometidos, mas também de alguns problemas com algumas das conceções e abordagens dos dirigentes genuinamente grandes do movimento comunista, entre eles os seus fundadores, Marx e Engels — isto foi essencialmente tratado como um sacrilégio. Bem, para começar, este tipo de atitude e abordagem é completamente contrário aos próprios Marx e Engels, e teria sido recebido por eles com repugnância. De qualquer maneira, houve a primeira vaga da revolução comunista, que levou à experiência do socialismo na União Soviética (de 1917 a meados da década de 1950) e a seguir na China (de 1949 a 1976), a qual foi invertida com a ascensão ao poder das forças burguesas e a restauração do capitalismo, primeiro na União Soviética e depois na China após a morte de Mao em 1976. É preciso retirar profundas lições desta primeira vaga da revolução comunista e da sociedade socialista, mas é preciso retirar lições com uma orientação, método e abordagem críticos e científicos, e não religiosos. Foi isso que comecei a fazer em Conquistar o Mundo? e continuei a fazê-lo em várias obras desde então. E isto foi uma importante componente e ímpeto no desenvolvimento do novo comunismo.

A expressão concentrada de muito do que é novo no novo comunismo encontra-se em A Nova Síntese do Comunismo: Orientação, Método e Abordagem Fundamentais, e Elementos Centrais — Um Esboço. Aqui irei falar de alguns dos elementos essenciais disso, utilizando o título do livro O NOVO COMUNISMO — de seu título completo, O NOVO COMUNISMO: A ciência, a estratégia, a liderança para uma verdadeira revolução e uma sociedade radicalmente nova na via para a verdadeira emancipação — como quadro e guia fundamentais para o fazer.


A ciência

Uma vez mais, o comunismo não só não é uma religião, também não é uma filosofia nem uma ideologia no sentido errado (ou seja, subjetivo, não-científico), algo que está desligado e, em última análise, em oposição a um método e abordagem científicos. É fundamental e essencialmente um método e abordagem científicos para analisar e sintetizar o desenvolvimento social humano e as suas perspetivas. Mas no comunismo desenvolveram-se tendências não-científicas, as quais, num grau significativo, iam contra a sua base fundamentalmente científica. O populismo e a epistemologia populista: o que quer que pensem as pessoas — ou a maioria das pessoas ou um grupo social específico ao qual se atribuiu uma capacidade especial de adivinhar a verdade (e aqui utilizo deliberadamente a palavra “adivinhar” [semelhante a “divina” em inglês — NT]) —, o que quer que elas pensem, em qualquer momento, é a verdade, ou o equivalente funcional da verdade. Toda essa noção do populismo e da epistemologia populista conseguiu, num grau significativo, entrar, e viciar de várias maneiras significativas, o movimento comunista e a sua necessidade de ser científico. Juntamente com isto tem andado a adoração e o seguir na cauda da espontaneidade das massas, e o conceito de “linha de massas” — de recolher as ideias das massas e depois concentrá-las e levar isso de volta às massas sob a forma de linha e política —, que foi um conceito formulado por Mao, mas que, como já antes assinalei, não era de facto a maneira de proceder de Mao, num sentido fundamental, no desenvolvimento de linhas, políticas e estratégias, e na determinação de quais eram as contradições essenciais em que se devia concentrar num dado momento, para fazer avançar a luta revolucionária. Isto era feito por Mao principalmente numa base científica, e não através de ir buscar ideias às massas e depois concentrá-las e levá-las de volta às massas.

Juntamente com isto também tem andado a reificação, ou seja, tomar o fenómeno geral do proletariado (e de outros grupos oprimidos) e reduzi-lo à maneira como ele supostamente reside em proletários individuais ou em indivíduos de outros grupos oprimidos, como se, uma vez mais, eles tivessem (para invocar a linguagem do nosso tempo) um conhecimento especial da verdade, de que há algo inerente a este ou aquele grupo oprimido que capacita as pessoas desse grupo a chegarem espontaneamente à verdade, ou pelo menos a uma “narrativa” que seja um substituto aceitável da verdade. Isto anda de mãos dadas com outra noção muito errada e nociva, que tem tido aceitação no movimento comunista, de que a verdade tem um caráter de classe — de que há uma verdade burguesa e há uma verdade proletária. Isto até encontrou expressão em diretivas orientadoras da Revolução Cultural na China, apesar de irem em sentido contrário ao caráter esmagadoramente positivo dela como luta revolucionária de massas liderada sobre uma base comunista. Depois há o conceito da “verdade política”, que anda de mãos dadas com a noção de que a verdade tem um caráter de classe; a “verdade política” é uma forma de “verdade conveniente”, a ideia de que é verdade tudo o que seja considerado bom para os interesses e objetivos apercebidos dos comunistas, ou de certos comunistas, num dado momento — independentemente de ser realmente verdade ou não. E, por vezes, isto tem assumido a forma de uma “realpolitik” muito grosseira (da qual falarei mais adiante).

Em relação à nova síntese — o novo comunismo, e o novo desenvolvimento do comunismo através deste — é importante centrarmo-nos na epistemologia, a teoria do conhecimento. A questão de qual é a nossa teoria do conhecimento e de como devemos proceder para determinar a verdade — ou se sequer achamos que existe isso da verdade objetiva — é obviamente crucial e central para termos, ou não, uma abordagem científica às coisas. A seguinte afirmação minha, que está em Observações sobre Arte e Cultura, Ciência e Filosofia, concentra muita coisa, incluindo as linhas divisórias fundamentais na epistemologia e na abordagem geral à realidade e à sua transformação radical: “Tudo o que é realmente verdade é bom para o proletariado, todas as verdades podem ajudar-nos a chegar ao comunismo”35.

Algumas pessoas reagiram a isto dizendo: “Que grande coisa, o fulano diz que temos de procurar a verdade, toda a gente faz isso.” Um oportunista disse: Se uma pessoa fosse a um campus universitário e dissesse, “Vamos procurar a verdade, pensamos que todos devem procurar a verdade”, acham realmente que isso seria uma grande coisa? Bem, em primeiro lugar, sim. Como assinalámos na resposta a este oportunista, nas universidades, hoje em dia, a ideia de procurar a verdade objetiva não é exatamente a ideia que tem mais aceitação. Há todo o tipo de ideias que se opõem a isso, todo o tipo de noções relativistas ao serviço da política de identidade e por aí adiante — argumentos de que há diferentes narrativas e diferentes “verdades”, de que não há uma verdade objetiva e mesmo a ideia de que não deve haver isso da verdade objetiva. Portanto, sim, primeiro que tudo, essa seria uma questão de intensa controvérsia na maioria das universidades hoje em dia.

Mas, para além disso, a insistência em que devemos procurar consistentemente a verdade através de meios científicos — empenharmo-nos em compreender corretamente a realidade material tal como ela realmente existe, e tal como ela está em movimento e em transformação —, sendo muito importante, não é tudo nem sequer é a essência do que está concentrado nessa minha afirmação. Vejamos novamente o que ela diz: “Tudo o que é realmente verdade é bom para o proletariado, todas as verdades podem ajudar-nos a chegar ao comunismo”. Há aqui um determinado objetivo para o qual se está a apontar. É uma afirmação não apenas sobre procurar a verdade — embora seja isso, e isso é muito importante. Mais fundamental e essencial, é uma afirmação sobre a relação entre procurar a verdade e fazer avançar a luta pelo comunismo. É uma afirmação sobre a epistemologia e a relação dela com a transformação radical do mundo. E é importante compreender que isto é um processo muito complexo, procurar a verdade e fazer avançar a luta pelo comunismo. Há muitas verdades — a que me tenho referido como verdades dolorosas — que, a curto prazo, se interpõem na luta pelo comunismo. Mas o que se está a salientar aqui é que mesmo as coisas que revelam insuficiências ou aspectos negativos da luta pelo comunismo, ou no que é a nossa atual maneira de pensar, podem fornecer importantes observações, podem fazer parte de obtermos uma compreensão mais profunda da realidade, o que, por sua vez, pode permitir-nos fazer avançar melhor a luta pelo comunismo, porque só é possível fazer isso, em termos fundamentais e essenciais, numa base científica.

Aquilo de que estamos aqui a falar é a relação dialética, e por vezes muito contraditória, entre procurar a verdade e fazer avançar a luta pelo comunismo, e a insistência em que, mesmo quando a curto prazo procurar a verdade pode fazer com que soframos reveses e nos crie mais dificuldades, ainda assim temos de fazer isso porque, de outra maneira, nunca chegaremos ao objetivo do comunismo. Isto leva-nos à relação entre ser-se científico e ser-se parcial para com a causa do comunismo (de que falarei um pouco mais à frente). O essencial aqui é que a procura da verdade e o avanço rumo ao comunismo estão fundamentalmente em unidade, mas há contradições e, por vezes, a muito curto prazo, estão em oposição, por vezes mesmo agudamente, e temos de lutar para resolver isso, temos de manter a orientação e o método de nos esforçarmos por uma compreensão da realidade tal como ela realmente é, e tal como ela está em movimento e em transformação, ou nunca conseguiremos avançar rumo ao comunismo — quaisquer ganhos temporários que obtenhamos serão invertidos e sofreremos mais reveses se nos desviarmos do caminho correto e tomarmos o atalho de tentar refinar a questão da verdade, ou inventar verdades, ou criar “verdades políticas”, ou seja, verdades convenientes que de todo não são realmente verdadeiras.

A afirmação de que tudo o que é realmente verdade é bom para o proletariado nem sempre é verdade em termos mais imediatos e estreitos. As coisas que são verdadeiras podem ser más para nós num sentido muito imediato e estreito, mas são necessárias — para podermos avançar rumo ao comunismo é crucial reconhecermos essas verdades, compreendê-las cientificamente e incorporá-las na nossa compreensão geral do mundo, e na nossa luta com base nisso, e nunca o conseguiremos fazer sem isso. Portanto, está a fazer-se aqui uma afirmação muito completa que está concentrada de uma maneira concisa nesta formulação: “Todas as verdades podem ajudar-nos a chegar ao comunismo”. Bem, há algumas verdades sobre a história do movimento comunista que não são muito agradáveis. Mas apesar disso elas podem ajudar-nos a chegar ao comunismo se realmente as abordarmos cientificamente, e assim poderemos aprofundar a nossa compreensão tanto do método científico em si, como da aplicação dele ao mundo para o transformarmos na direção do comunismo.

Referi anteriormente o facto de que, nas universidades e noutros lugares, em particular entre a intelligentsia (fazendo uso deste termo de uma maneira algo intencional), há a noção, uma noção muito amplamente defendida, de que o próprio conceito da verdade, em oposição às diferentes narrativas e às “diferentes” verdades, é um conceito totalizador e fundamentalmente totalitário — a ideia de que uma pessoa possa chegar à verdade é totalizadora e à beira, se não já de facto dentro, do terreno do totalitarismo. Bem, há aqui algo que se está a contrabandear, algo que é uma ideia não-científica do que é a verdade. O que realmente se está aqui a dizer, ou objetivamente o que está aqui refletido, é a noção de que a verdade é apenas mais uma narrativa e de que quando uma pessoa diz que chegou à verdade, está a tentar impor a narrativa dela a mais alguém, e que ninguém deve estar a tentar impor a narrativa dela como sendo a narrativa que abarca tudo. O que aqui está em questão e em jogo é precisamente: O que é a verdade? A verdade é um correto reflexo concreto da realidade, incluindo do seu movimento e desenvolvimento. E, claro, é verdade que ninguém consegue chegar a toda a verdade. Isso faz parte de uma correta compreensão da realidade, faz parte do método científico. Mas, ao contrário destas negações absurdas (e em proveito próprio) de pessoas como Robert E. Rubin, é verdade que podemos chegar a decisões definidas e definitivas sobre a realidade de muitas coisas específicas, mesmo que tenhamos sempre de estar abertos a aprender mais, e à possibilidade de que algumas das coisas que pensávamos ser verdadeiras poderem acabar por não o ser, ou que ocorram novos desenvolvimentos que significam que o mundo mudou de tal maneira que a nossa compreensão tem de ser modificada. Tudo isso também faz parte do método científico. Quando falamos da verdade, não estamos a falar da VERDADE como uma verdade absoluta e final, mas também não estamos a falar de uma narrativa. Estamos a falar de uma abordagem científica à compreensão da realidade para depois, com base nisso, a transformar. E a abordagem científica a esse processo de análise e síntese da realidade pode chegar a importantes conclusões definitivas, mesmo que isto seja um processo contínuo que nunca estará completo porque nunca se pode compreender toda a realidade — incluindo porque ela está constantemente a mudar e porque haverá sempre aspectos da realidade em que os seres humanos nem sequer terão penetrado num dado momento, quanto mais chegado a compreender. Portanto, esta ideia da verdade como conceito totalizador e totalitário é estar a contrabandear um grande número de conceitos e abordagens que são ele mesmo não-científicos, não-verdadeiros.

Mas regressemos à afirmação de que “Tudo o que é realmente verdade é bom para o proletariado, todas as verdades podem ajudar-nos a chegar ao comunismo”, e contrastemo-la com o seu oposto. O verdadeiro significado e importância dela podem ser mais plenamente compreendidos se a colocarmos em relação ao seu oposto, ou seja, “tudo o que é bom para o proletariado é verdade, tudo o que nos ajuda a chegar ao comunismo é verdade”. E se virem isto dessa maneira, se contrastarem “tudo o que é bom para o proletariado é verdade”, com a correta afirmação textual de que tudo o que é realmente verdade é bom para o proletariado, podem conseguir ter uma ideia ainda mais correta da profunda importância dela. Uma das formulações tem a ver com o método científico e a aplicação dele, enquanto a outra é profundamente não-científica e subjetiva e, em última instância, levará a todos os tipos de erros e mesmo, em alguns casos, horrores.

É importante analisar os “liberais” e os fascistas em termos da verdade. Um exemplo revelador disto é fornecido por alguns comentários do ex-diretor do FBI, James Comey, feitos para a CNN numa Assembleia Pública Municipal na primeira metade de 2018. Ele estava a falar sobre como Trump mente constantemente — o que, claro, é verdade. E, ao falar sobre como Trump mente constantemente, Comey refutou, à maneira própria dele, o método instrumentalista de primeiro determinar um objetivo e depois “estruturar os factos” (a expressão é minha) para servir esse objetivo. Comey defendeu que não é assim que de se deve proceder — deve-se olhar realmente para os factos, as evidências, e depois aplicar o pensamento racional para ver para onde apontam os factos e as evidências. Portanto, o que ele disse foi correto, até certo ponto. Mas Comey prosseguiu falando sobre como é muto errado atacar as forças da ordem, as agências de informações e as forças armadas dos Estados Unidos, porque elas sempre foram uma força para o bem e sempre procuraram a verdade! Portanto aqui, por um lado, ele expõe uma abordagem mais ou menos correta e logo a contradiz completamente e a rasga em frangalhos numa declaração como esta (poderíamos dedicar não sei quanto tempo, mas muito mais tempo do que dispomos, só a fazer uma lista inicial de todas as mentiras que têm sido perpetradas pelas forças da ordem, pelas agências de informações e pelas forças armadas norte-americanas, e de todos os crimes de guerra e crimes contra a humanidade que elas têm cometido em todo o mundo).

Aqui vemos algo delineado em acentuado relevo: os liberais, e em particular os “liberais” da classe dominantes, falam na verdade mas mentem e distorcem repetidamente as coisas quando a realidade é “inconveniente” e vai contra as apreciadas “narrativas” e objetivos deles, mesmo que, pelo menos por vezes (e particularmente quando o escárnio da verdade é feito de uma maneira que eles consideram ofensiva e nociva, e isto é particularmente pronunciado), professem firmemente uma adesão à importância da verdade e de se proceder a partir de factos e de evidências, etc. Ao mesmo tempo, com base nisso, os fascistas aberta e repetidamente desafiam e espezinham a ciência, o método científico e a procura da verdade. Portanto, isto é importante para se compreender por que razão, especialmente no contexto da chegada ao poder do regime de Trump e Pence, se ouve falar repetidamente na importância da verdade. A CNN fez um anúncio: “Isto é uma maçã, é sempre uma maçã, há muitas maçãs, as maçãs são maçãs.” Por outras palavras, os factos são factos — os factos são importantes, a verdade é importante. Mas depois vemo-los a mentir e a distorcer todos os tipos de coisas sempre que estão de facto em jogo os interesses da classe dominante deste sistema, tal como eles os apercebem. Então, se mentir servir esses interesses, eles mentem com floreados. Este é o tipo de “verdade política” em que, infelizmente, caíram alguns comunistas e com o qual os comunistas precisam de romper completa e definitivamente. Não é que nunca venhamos a cometer erros — claro que vamos cometer erros, todos cometemos erros. Mas, como ponto crucial de orientação e método, temos de romper totalmente com a noção de que o que pode ser vantajoso num determinado momento é tão bom quanto a verdade — mentindo às pessoas, encobrindo as coisas, porque dessa maneira se vai levar as pessoas a fazer as coisas que se quer que elas façam e no final tudo vai correr bem. Não! Temos de romper totalmente com toda essa noção, e com toda essa abordagem.

Portanto, uma parte importante da epistemologia do novo comunismo é, como tenho vindo a referir, a sua oposição ao relativismo e à “verdade como narrativa”. Eis duas afirmações de O BÁsico que são muito importantes. A primeira é de O BÁsico 4:11:

Aquilo que as pessoas pensam faz parte da realidade objetiva, mas a realidade objetiva não é determinada pelo que as pessoas pensam. [Ênfase no original]

Isto é uma afirmação muito importante. Aquilo que as pessoas pensam faz parte da realidade com que estamos a lidar, da realidade que existe objetivamente. E se não reconhecermos isso, não vamos conseguir reconhecer a necessidade de transformar muito do que as pessoas pensam, porque a maioria das pessoas, sob a influência das relações burguesas e da superstrutura burguesa, não sabem nada e pensam com o rabo. Isto não significa que não possam aprender, mas é essa a realidade atual. É importante reconhecer que isto, aquilo que as pessoas pensam, faz parte da realidade objetiva; temos de compreender isso e lutar para transformar o que elas pensam onde quer que isso esteja desfasado da realidade concreta — que, em muito grande medida, espontaneamente está. Mas, uma vez mais, a realidade objetiva não é determinada pelo que as pessoas pensam — não é como “Bem, essa é a tua verdade e eu tenho a minha, e tu não me podes dizer que a tua verdade é melhor que a minha.” Não existe isso da verdade de alguém. A verdade não deveria ter um adjetivo possessivo. A verdade é objetiva.

E depois há O BÁsico 4:10:

Para que a humanidade avance para além de uma situação em que impera a “lei do mais forte” — e em que as coisas, em última instância, se reduzem a relações de poder bruto — será necessária, como elemento fundamental deste avanço, uma abordagem para se compreender as coisas (uma epistemologia) que reconheça que a realidade e a verdade são objetivas e não variam em conformidade com, nem dependem de, diferentes “narrativas” e de quanta “autoridade” uma ideia (ou “narrativa”) possa ter por trás dela, nem de quanto poder e força possam ser exercidos em nome de qualquer ideia ou “narrativa” específica em qualquer momento dado. [Ênfase no original]

Isto também é extremamente importante — a relação entre o relativismo e a “lei do mais forte”. Digamos, por exemplo, que uma pessoas faz parte de um grupo oprimido. Ela tem uma narrativa sobre a opressão dela. Mas se a muito correta e justa luta contra a opressão dela — contra o assassinato policial de negros, latino-americanas e nativos americanos, por exemplo — for reduzida a uma questão de narrativa, a uma questão do que equivale a uma visão subjetiva do mundo (“Sabemos o que isto significa, sabemos as causas e o que fazer em relação a isso porque o vivemos, como parte da nossa identidade de grupo específico”) — se essa é a epistemologia que essa pessoa está a promover, bem, então o que acontece quando enfrenta um grupo com mais força que ela? Como a polícia — eles também têm a epistemologia e a narrativa deles: “Vocês são todos um bando de animais, vocês têm de ser controlados; e se de alguma maneira nos provocarem, temos o direito de vos matar.” É essa a narrativa deles. Este racismo está consagrado diretamente nas leis desta sociedade e na sua ditadura burguesa. Que quero eu dizer com isto? Bem, o que diz a lei na maioria dos estados norte-americanos? Se um polícia tem “um medo razoável” de danos próprios ou alheios, tem direito a usar a força, incluindo uma força letal. Ora bem, então temos o racismo consagrado diretamente nisso, porque quase todos os polícias consideram os negros, e em particular os jovens negros do sexo masculino (não só eles, mas particularmente os jovens negros do sexo masculino), como uma ameaça, como um perigo. Portanto, a justificação para a polícia assassinar os negros está embutida na lei, eles codificaram o racismo na lei. Essa é a narrativa deles — e a narrativa deles tem o apoio do Estado, e é por isso que quase nunca são indiciados judicialmente, e muito menos condenados, por esses assassinatos, uma vez após outra.

E além disso há as forças armadas deste sistema. Elas também têm uma narrativa de que são uma força para o bem no mundo e de que precisam de usar essa força para impor a ordem porque isso acontece em nome do bem maior. E têm o seu poder militar para apoiar essa narrativa. Portanto, se tudo é um conjunto de narrativas, então, em última instância, prevalecerá quem tem mais força por trás da sua narrativa.

Isto leva-nos a uma questão levantada por Mao, em “Contra o estilo de clichê do partido”36, que é importante em si mesma e que também tem uma importante aplicação aqui. Mao disse que tomar ares afetados e pretensiosos para intimidar é uma tática muito comum entre algumas pessoas. Quando se confronta o inimigo, assinalou ele, isso é absolutamente inútil, e entre o povo isso causa grandes danos. Pensem nisto: se uma pessoa se move naqueles círculos restritos em que a divisa é a política de identidade, talvez ela consiga convencer as pessoas ao insistir na narrativa dela sobre as de outras pessoas. Mas no mundo em geral, e em particular contra o inimigo, a classe dominante, este não dá a mínima importância à narrativa dela, não dá a mínima importância à identidade dela. Eles têm os interesses deles e têm muito poder por trás dos interesses deles, e os ares afetados e pretensiosos dessa pessoa com a identidade dela são absolutamente inúteis, não servem de nada, contra isso. E isto é ainda mais assim no caso do regime fascista que agora está no poder. Claro, não é que o fascismo tenha surgido e chegado ao poder devido à política de identidade e à correspondente epistemologia. A questão é que esses fascistas querem reforçar e intensificar as relações de opressão que a política de identidade tenta resolver de uma maneira distorcida e em bases erradas, e essa política de identidade desorienta e desarma ideologicamente as pessoas e torna-as menos capazes de lidar com isto. Essa política de identidade, e em particular os ares afetados e pretensiosos que demasiadas vezes a acompanham, é apenas “útil” entre as pessoas que se deixam intimidar por isso e, na realidade, essa intimidação causa muitos danos. Era isso que Mao queria dizer quando disse que este tipo de coisas causa danos entre as pessoas. Intimidar as pessoas em vez de as ganhar para uma compreensão científica da realidade, e o que é necessário fazer em relação a isso, só pode causar danos entre as pessoas, e é absolutamente inútil contra aqueles que têm um poder real.

Portanto, uma vez mais, há muita coisa concentrada em O BÁsico 4:10 em termos da relação entre a epistemologia e o avanço para além de uma situação em que impera a “lei do mais forte”. Para ilustrar ainda mais as importantes questões de princípio e método que estão aqui envolvidas, deixem-me citar o seguinte excerto de “Uma conversa de Bob Avakian com alguns camaradas sobre epistemologia”, que retira lições da experiência histórica do movimento comunista:

Uma das grandes questões é: “Somos realmente pessoas que estão a tentar chegar à verdade, ou será que de facto se trata apenas de que ‘a verdade é um princípio organizador’?” Lenine criticou filosoficamente isso — “a verdade como princípio organizador” — e podemos criticar isso para rejeitar a religião e o oportunismo que não achamos particularmente úteis, mas podemos vir a acabar a fazer isso de uma outra forma. (...)

Estou a falar de uma nova síntese — de uma epistemologia mais integralmente materialista. Lenine escreveu Materialismo e Empiriocriticismo, onde ele refutava estas coisas [a “verdade política” ou “a verdade como princípio organizador”] mas por vezes o Lenine prático metia-se no caminho do Lenine filosófico. As exigências políticas que lhe eram impostas contribuíram para uma situação em que algumas das maneiras como Lenine lidou com as contradições tinham algo de Estaline.* Há muitos exemplos disso em As Fúrias [um livro de Arno Mayer sobre as revoluções francesa e russa]. Em alguns casos e em alguns aspectos, os bolcheviques tiveram uma abordagem tipo “máfia”, sobretudo durante a guerra civil que se seguiu à Revolução de Outubro de 1917. Em alguns casos, em que os reacionários organizaram as massas para combaterem os bolcheviques, estes retaliariam em larga escala e sem piedade. Noutros casos, matavam pessoas não só por desertarem do Exército Vermelho mas também por não combaterem com entusiasmo durante a guerra civil. Embora por vezes, numa guerra, possa ser necessário tomar medidas extremas, em geral essa não é a melhor forma de lidar com essas contradições. (…) eu li textos de Lenine sobre isto e pensei: “Isto não está correto”. E também há questões epistemológicas ligadas a tudo isto.37

* Nota acrescentada pelo autor: A referência aqui a “algo de Estaline” é uma maneira abreviada de falar do lado negativo de Estaline — em particular da tendência dele, ao lidar com o que eram contradições muito reais e frequentemente agudas, para se basear na repressão estatal, incluindo a pena de morte, em vez da luta ideológica (em combinação com uma insistência na adesão à disciplina, e em castigos menores por violação da disciplina, nas situações em que isso fosse necessário).

E aqui vemos a estreita interligação entre a epistemologia e a moral. A orientação e o princípio de que “Tudo o que é realmente verdade é bom para o proletariado, todas as verdades podem ajudar-nos a chegar ao comunismo” não só são extremamente importantes em si mesmos, como também estão intimamente relacionados com o facto de que o novo comunismo repudia completamente e está decidido a extirpar do movimento comunista a noção venenosa, e a prática, de que “os fins justificam os meios”. É um princípio basilar do novo comunismo que os “meios” deste movimento devem fluir de, e ser consistentes com, os “fins” fundamentais de abolir toda a exploração e opressão através de uma revolução liderada numa base científica.

Ora, em termos do novo comunismo e da economia política, como parte da abordagem científica à realidade e à sua transformação, mencionei antes a questão da anarquia como sendo globalmente a forma principal de movimento da contradição fundamental do capitalismo. Esta tem sido uma questão muito contestada entre os autoproclamados comunistas porque, juntamente com a reificação e o seguir na cauda das massas populares, está a ideia de que o centro de tudo tem de ser a luta de classes (ou, de uma maneira mais geral, a luta dos oprimidos contra os seus opressores). Claro que a luta de classes, e a luta global contra a opressão, é uma força motriz na sociedade e na transformação dela. Mas a questão é: em que é que ela está enraizada, de que é que ela emerge? Quais são as condições materiais que dão origem, e influência e forma, a esta luta, e para que fins pode esta luta ser dirigida, com base nas contradições reais em que está enraizada? Por outras palavras, isto é uma questão de o materialismo e a dialética materialista contra o idealismo (o cozinhar ideias na nossa cabeça que não têm nenhuma verdadeira relação com a realidade) e a metafísica (a noção de que há absolutos que são imutáveis). Segundo alguns pretensos comunistas, temos sempre de dizer que o que é central é a luta de classes, a luta contra a opressão, de uma maneira que a divorcia de qualquer base material. Uma vez mais, não é que a luta de classes (entendida de uma maneira ampla) não seja importante ou que não seja uma força motriz na transformação da sociedade; mas se isso é tratado como uma coisa para si mesma, sem uma base material, então, uma vez mais, transforma-se numa questão de religião (uma perspetiva e uma abordagem que equivalem a um dogma religioso) em vez de uma abordagem científica a se liderar de facto a luta pela abolição da opressão de classe e de todas as outras formas de opressão.

Para aprofundar isto um pouco mais, Engels identificou no Anti-Dühring, como mencionei antes, as duas formas de movimento da contradição fundamental do capitalismo — sendo estas duas formas de movimento a contradição de classe e a contradição anarquia/organização. Em relação a isto, no artigo “Sobre a ‘força motriz da anarquia’ e a dinâmica da mudança”, Raymond Lotta citou a seguinte afirmação minha:

É a anarquia da produção capitalista que é, de facto, a força motriz ou motora deste processo [de produção capitalista], embora a contradição entre a burguesia e o proletariado seja parte integral da contradição entre a produção socializada e a apropriação privada. Embora a exploração da força de trabalho seja a forma pela qual e através da qual a mais-valia é criada e apropriada, são as relações anárquicas entre os produtores capitalistas, e não a mera existência de proletários sem propriedade nem a contradição de classes enquanto tal, que leva esses produtores a explorarem a classe operária numa escala historicamente mais intensa e extensa. Esta força motora da anarquia é uma expressão do facto que o modo capitalista de produção representa o desenvolvimento integral da produção de mercadorias e da lei do valor.38 [Itálicos no original]

E logo a seguir há esta passagem muito importante:

Se não fosse o caso de estes produtores capitalistas de mercadorias estarem separados uns dos outros e ao mesmo tempo unidos pelo funcionamento da lei do valor, eles não sentiriam a mesma compulsão para explorarem o proletariado — e a contradição de classe entre a burguesia e o proletariado poderia ser mitigada. É a compulsão intrínseca do capital a expandir-se que explica o dinamismo sem precedentes históricos deste modo de produção, um processo que transforma continuamente as relações de valor e que conduz a crises.39

Como assinalei na discussão disto em O NOVO COMUNISMO, há muita coisa aqui incluída (a começar com a primeira frase da citação acima), e isto vai diretamente contra muito do que se tornou no “senso comum” e nos preconceitos prevalentes no movimento comunista. Isto envolve, uma vez mais, a questão fundamental de saber se o movimento comunista se vai basear numa análise e síntese científica, materialista dialética, da realidade tal como ela realmente é, e tal como ela está em movimento e em transformação com base nas contradições dentro dessa realidade, ou se um comunismo distorcido e viciado vai agir com base nas tentativas não-científicas — e de facto anticientíficas — de impor à realidade preceitos, dogmas e o que de facto equivale a esquemas utópicos infundados.

Isto é extremamente importante, e abarca uma muito grande parte da rutura com a reificação e as tendências erróneas com ela relacionadas. Por isso, quero concentrar-me em particular na afirmação: “Se não fosse o caso de estes produtores capitalistas de mercadorias estarem separados uns dos outros e ao mesmo tempo unidos pelo funcionamento da lei do valor, eles não sentiriam a mesma compulsão para explorarem o proletariado — e a contradição de classe entre a burguesia e o proletariado poderia ser mitigada.”

Que significa dizer que estão separados uns dos outros e ao mesmo tempo ligados pela lei do valor (“unidos pelo funcionamento da lei do valor”)? Bem, separados uns dos outros refere-se ao facto de eles se aglomerarem em agregados separados de capital — não há uma grande pilha de capital que todos eles partilhem. Há propriedade privada dos diferentes segmentos da economia capitalista, e esses agregados de capital estão em concorrência entre si. Eles estão separados uns dos outros dessa maneira. E, apesar disso, há a outra parte: eles estão unidos pelo funcionamento da lei do valor. Que quer isto dizer? O que é a lei do valor? A lei do valor exprime o facto de que o valor de qualquer coisa é determinado pelo trabalho socialmente necessário que entra na produção dela. Não posso aprofundar tudo isto aqui, mas Marx começa a grande obra dele, O Capital, a examinar a mercadoria. Ele traçou o desenvolvimento histórico dela, a maneira como a produção de mercadorias na sociedade muito primordial ocorria com base em alguns tipos de trocas e depois se desenvolveu para coisas como o gado a serem substitutos de muitas outras mercadorias — mas depois verificou-se que isso era muito limitado porque, no fim de contas, o gado morre e há outros problemas. Então acabou por evoluir para uma situação em que o ouro, por ser um metal precioso e não ser fácil destruí-lo, se tornou, de facto, no equivalente universal de todas as outras mercadorias.

Em As Viagens de Gulliver40 de Jonathan Swift, num dos episódios (das aventuras de Gulliver) ele chega a uma sociedade em que, em vez de haver uma língua mais universal que as pessoas falassem, elas tinham palavras escritas em grandes placas de madeira, e as pessoas tinham de carregar essas pesadas placas sempre que queriam comunicar com alguém, o que é obviamente muito incómodo. A analogia que estou aqui a fazer é com a troca de mercadorias. Imaginem que em cada troca de mercadorias, em vez de se usar dinheiro (ou o equivalente de crédito do dinheiro), se tivesse de levar as mercadorias sempre que se estivesse objetivamente a fazer trocas — isso seria muito incómodo e praticamente impossível. Portanto, historicamente — não por alguém se ter sentado e tomado uma decisão, mas historicamente, por tentativa e erro e assim sucessivamente — isso evoluiu para o ouro se ter tornado no padrão universal. E o dinheiro tornou-se uma abstração do ouro. E agora temos abstrações do dinheiro — tudo se tornou muito parasitário e complicado —, mas basicamente, ao longo de um longo período de tempo, o ouro tornou-se no substituto de todas as outras mercadorias.

Como assinalei em O NOVO COMUNISMO, o que estão as pessoas a trocar de facto quando trocam mercadorias? Estão a trocar a quantidade de trabalho, de trabalho socialmente necessário, que entra na produção dessas mercadorias. Se uma pessoa consegue produzir uma coisa muito rapidamente e outra pessoa demora duas semanas para produzir outra coisa, se elas trocam essas coisas de uma maneira igual, muito em breve irão ficar numa situação muito má. Portanto, é o trabalho socialmente necessário que está a ser trocado, ainda que isso esteja escondido em todas as relações quotidianas de mercadorias, sobretudo hoje em dia com toda esta especulação financeira altamente parasitária por cima de especulação financeira por cima de especulação financeira (com as bitcoins por cima do resto). Mas é isto que lhes está subjacente — a troca de trabalho. E não poderia haver uma economia a funcionar e as pessoas não poderiam sobreviver se, durante qualquer período de tempo, as trocas de trabalho estivessem completamente em dissonância.

Subjacente a toda a especulação financeira, e a tudo o que lhe está ligado, está a lei do valor a unificar toda a produção e troca. E acontece que, mesmo com a interferência dos monopólios e de todos os tipos de regulações políticas e tarifas e de tudo o resto, há uma tendência geral para que o capital flua para aquelas áreas que são mais rentáveis e para que a taxa de lucro seja nivelada, porque se alguma coisa é mais rentável durante algum tempo, então haverá mais capital a entrar nessa área e então haverá mais concorrência e a taxa de lucro diminui. Portanto, há uma tendência geral para a uniformização da taxa de lucro, ainda que isto seja constantemente perturbado pela anarquia do capitalismo. Por trás das costas dos capitalistas, por assim dizer, ou mesmo com os cálculos deles, a lei do valor está constantemente a afirmar-se e a reafirmar-se, mas isto acontece devido à própria anarquia da produção e troca capitalistas. Isto é uma das coisas que Raymond Lotta também cita no artigo dele: o facto de Marx ter assinalado em relação ao capitalismo que a sua total desordem é a sua ordem. E isto faz constantemente com que os capitalistas tentem produzir de uma maneira mais lucrativa, explorando mais intensamente os proletários, acelerando o ritmo do trabalho deles para que produzam mais numa determinado unidade de tempo, deslocando o investimento de uma parte do mundo para outra onde possam explorar as pessoas de uma maneira mais intensiva e barata, introduzindo tecnologias que permitam que a produtividade aumente ao produzirem a mesma quantidade, ou mesmo muito mais, com menos trabalhadores.

Tudo isto é, uma vez mais, extremamente contraditório, porque agora estamos de volta ao capital constante e ao capital variável — assim que são introduzidas novas máquinas (capital constante), se aumentar a proporção das máquinas em relação à força de trabalho, então diminui a parte do capital (o capital variável) de que se pode retirar uma mais-valia. Isso fará diminuir a taxa de lucro, e por isso tem de se tentar tomar medidas compensatórias para contrabalançar isso. E, relembro, tudo isto está a ser comandado por capitalistas que estão separados, mas que, em última instância, têm de concorrer uns com os outros — não necessariamente nos cálculos imediatos deles, mas em última instância — com base na lei do valor.

Isto é o que os impele a intensificarem a exploração do proletariado. É por isso que uma pessoa pode trabalhar para eles durante 25 anos e ser posta na rua no dia seguinte. É por isso que eles lhe podem prometer hoje uma coisa e amanhã talvez não, por exemplo em termos de benefícios de saúde. É por isso que eles chegam aos trabalhadores e dizem: “Se não aceitarem um corte salarial, então vamos ter de vos despedir a todos, ou se não aceitarem deixar de ter esses benefícios de saúde, então vamos ter de despedir metade de vocês.” Isto faz com que eles procurem constantemente novas fontes de capital variável, e em particular pessoas que possam ser exploradas de uma maneira mais intensiva e mais barata.

Tudo isto deriva de a anarquia ser a força motriz. É isto o quer dizer a afirmação de que se eles não estivessem unidos pela lei do valor, enquanto ao mesmo tempo estão separados em agregados de capital que fazem uma apropriação privada, não teriam de explorar tanto os trabalhadores, poderiam mitigar isso. Eles poderiam dizer: “Claro, vamos dar-vos uma garantia vitalícia de emprego. Claro, vamos pagar-vos um salário com o qual vocês de facto possam ter uma vida digna.” Nos Estados Unidos, durante o apogeu dos sindicatos e outras coisas, durante um certo período após a Segunda Guerra Mundial, um significativo número de trabalhadores assalariados tinha casa própria, dois carros, um barco, uma autocaravana. Bem, para muita gente, isso agora desapareceu devido ao funcionamento do capitalismo hoje em dia numa arena internacional cada vez mais globalizada.

Esta “ordem desordenada” não é um processo “neutro” — tem consequências terríveis. Como salientei em O Problema, a Solução e os Desafios Que Enfrentamos:

a brutal realidade é que esta desordem (...) causa um imenso sofrimento à escala mundial às pessoas e ao meio ambiente, que este sistema e a dinâmica interna dele levaram a um ponto em que os próprios futuro e existência da humanidade estão seriamente ameaçados. E depois, por cima de tudo isso, há uma enorme destruição provocada pelas guerras, pelos golpes de estado, e por outras ações sangrentas que são levadas a cabo em todas as partes do mundo para impor o domínio opressor deste sistema.41

É muito importante compreender isto. Simplesmente pensar que a maneira de abolir o capitalismo é meramente fazer a luta de classes, ignora a base em que está a ocorrer essa luta de classes. Ignora a situação, em constante mudança, das massas populares, com a qual temos de lidar para as ganhar e mobilizar para a luta pelos próprios interesses fundamentais delas através da revolução de que elas precisam.

Portanto, uma vez mais, é uma questão de saber se estamos a proceder cientificamente ou a proceder com base em ideias subjetivas e com base apenas na noção de que a luta de classes por si mesma, divorciada de todas as condições materiais subjacentes a essa luta, poderá levar à resolução necessária. Vejam-se as muito diferentes configurações sociais e nas classes que existem hoje nos Estados Unidos em comparação com há três ou quatro décadas. Veja-se a diferença nas condições materiais das pessoas que é preciso mobilizar para esta revolução. E quanto às pessoas que trabalhavam na U.S. Steel em Gary, no estado do Indiana, e que agora estão inteiramente sem trabalho, com essa enorme siderúrgica encerrada e Gary basicamente uma cidade fantasma? Acham que se pode simplesmente dizer “luta de classes”, “luta de classes”, “luta de classes”? Onde estão os proletários para levar a cabo a luta da classes? Bem, eles estão agora numa situação diferente. E não vai resultar agir como se não precisássemos de pensar sobre isso, como se só precisássemos de dizer “luta de classes, lutar pelo socialismo”. Bem, isso não irá levar a nada de bom. Dessa maneira não vamos sequer chegar ao primeiro grande salto, o de derrubar este sistema, e certamente não conseguiremos transformar a sociedade de uma maneira que lide com aquelas “4 Todas”, entre as quais as distinções de classe e a exploração.

A base objetiva para a revolução proletária/comunista não é o desejo inerente dos proletários de combaterem e derrubarem a burguesa. Em vez disso, é a própria natureza e funcionamento do sistema capitalista, as principais contradições que são fundamentais e essenciais para este sistema, mas que nele não é possível resolver — e a miséria a que as massas populares em todo o mundo são submetidas em resultado disso. Mas isto deve ser entendido num sentido amplo, e não simplesmente num sentido estreito e economicista. A minha afirmação citada no artigo de Raymond Lotta que referi antes diz que este processo de produção e acumulação capitalistas, impulsionado pela anarquia, transforma constantemente as relações de valor e conduz a crises. As “crises” a que o capitalismo repetidamente conduz não são simplesmente crises económicas; e, contrariamente ao muito comum equívoco e distorção, a compreensão científica do comunismo não é que o capitalismo vai “colapsar” por si mesmo — é preciso derrubá-lo, através da ação revolucionária das massas populares que ele sujeita a uma miséria constante e a múltiplas e variadas crises, incluindo guerras e a devastação ambiental, as quais estão enraizadas nas contradições e dinâmica fundamentais deste sistema.

Indo ainda mais fundo em relação à nova síntese e ao seu desenvolvimento do comunismo numa base científica mais firme e mais consistente, quero voltar à questão da necessidade e liberdade. Mao, ao criticar uma afirmação de Engels de que a liberdade é a compreensão da necessidade, assinalou que é necessário acrescentar algo — tem de se entender a liberdade como a compreensão e a transformação da necessidade. Tem de se levar a cabo uma luta, disse Mao42. Isto é um ponto muito importante. E, com a nova síntese, a compreensão da relação entre a necessidade e a liberdade foi ainda mais desenvolvida.

Deixem-me começar com uma outra afirmação minha que é citada no início do livro de Ardea Skybreak, Sobre os Passos Primevos e os Saltos Futuros:

Nem o surgimento da espécie humana nem o desenvolvimento da sociedade humana até ao presente foram predeterminados nem seguiram caminhos predeterminados. Não há nenhuma vontade nem agente transcendentes que tenham concebido e moldado todo este desenvolvimento, e a natureza e a história não devem ser tratadas como tal — como Natureza e História. Em vez disso, esse desenvolvimento ocorre através da interação dialética entre a necessidade e o acidente e, no caso da história humana, entre as forças materiais subjacentes e a atividade e a luta conscientes das pessoas.43

Esmiucemos um pouco isto. Acidente... e necessidade. Esta relação tem a ver com a natureza infinita, e o movimento, da matéria. O determinismo estrito (ou seja, absoluto) — o argumento de que, em última instância, não há isso do “acidente”, mas apenas a causalidade (e de que se houvesse alguém com a capacidade de o fazer, poderia rastrear a causalidade de tudo o que já aconteceu e, por extensão, de tudo o que irá acontecer) —, isso leva, logicamente, a uma “causa primeira”, a um deus. Em resposta, e à maneira de refutação, deixem-me oferecer-vos o seguinte como tema para reflexão. As formas específicas da matéria, em movimento, têm um início e um fim, mas se a própria matéria tivesse um início, isso iria requerer algo “antes” da matéria, algo “externo” à matéria, algo (um deus) que tenha dado existência à matéria (a criação). A existência infinita da matéria, sem início nem fim, é algo que para uma mente humana (mesmo uma que em grande medida não tenha os grilhões e a desordem do idealismo e do preconceito burgueses) é muito difícil de conceber, ou mesmo de pensar nisso (iria causar-lhe dores de cabeça!). Mas é a única conclusão a que se pode chegar aplicando um método e uma abordagem científicos, materialistas dialéticos. É a única conclusão que resulta de, e corresponde a, aquilo de que de facto há extensas evidências — a existência da matéria — e daquilo de que não há nenhuma evidência objetiva — a existência de forças não-materiais e especificamente de forças sobrenaturais (incluindo um deus ou deuses). E se a matéria (entendida como algo que tenha existência material, sob qualquer forma, incluindo a energia, por exemplo) existe infinitamente, e se existe contínua e infinitamente como matéria em movimento, repetidamente sofrendo transformações — e tendo em conta que há diferentes níveis e formas de matéria em movimento, que têm uma existência relativamente discreta e são marcados pelas suas contradições definidoras específicas, em qualquer momento dado —, de tudo isto se conclui que não existe, e não pode existir, uma única “cadeia ininterrupta de causalidade”. Portanto, na realidade material há a causalidade, mas também há o acidente.

Quanto à outra parte desta afirmação, que diz respeito à relação entre as forças materiais subjacentes e a atividade e a luta dos seres humanos, isto refere-se à afirmação de Marx de que as pessoas fazem a história, mas não de uma qualquer maneira que desejem. Fazem-no no contexto da sociedade tal como a herdaram, em particular da base económica da sociedade, das forças produtivas disponíveis nesse momento na sociedade e das correspondentes relações de produção. E fazem-no através de saltos radicais, de revoluções na sociedade humana, em que elas transformam essas condições subjacentes. Mas fazem-no com base no que existe, e não através de evocarem na imaginação delas algum tipo de mudança. Surge aqui novamente a analogia que é feita em Pássaros e Crocodilos — a analogia com a evolução no mundo natural. A evolução natural gera constantes mudanças e transformações qualitativas, como o surgimento de novas espécies, mas fá-lo com base no material que já existe, e não através de algo que é injetado nesse processo por alguma força externa — a qual, uma vez mais, seria um deus, ou um “criador inteligente” (ou o que se lhe quiser chamar). O mesmo é válido para o desenvolvimento histórico e a transformação da sociedade humana. As pessoas de facto fazem a história, mas fazem-na atuando sobre a realidade material com que são confrontadas, através de transformarem essa realidade material e não através de evocarem nas imaginações delas uma ideia de como gostariam que fosse a sociedade e de depois imporem essa ideia à realidade.

Em O Comunismo e a Democracia Jeffersoniana44, examinei como há uma determinada corrente na teoria política burguesa que essencialmente considera a liberdade negativa — a libertação de não se ter de submeter a alguma coisa, como a coerção do Estado — como a única liberdade positiva (perdoem-me o jogo de palavras a que não consegui resistir!). Essa teoria burguesa considera a tentativa de liberdade positiva — as pessoas motivadas a agir a favor de certos objetivos — como sendo inerentemente, ou pelo menos em última instância, coerciva, e tendendo para o totalitarismo. Trata-se de uma compreensão fundamentalmente errónea, desprovida de (e em conflito com) uma abordagem materialista dialética, científica, à realidade, incluindo às relações sociais humanas. Sem entrar aqui nisto de uma maneira mais profunda, é correto e importante salientar que pode haver — e com a sociedade socialista, e ainda mais com a sociedade comunista, definitivamente haverá — uma liberdade positiva muito positiva. Uma vez mais, isto está intimamente ligado à relação entre necessidade e liberdade — compreendendo corretamente esta relação, e agindo de acordo com uma correta compreensão dela.

O seguinte excerto de O Comunismo e a Democracia Jeffersoniana examina alguns aspectos essenciais disto:

Fundamental para uma correta valorização disto é a compreensão de que nunca houve, e nunca poderá haver, uma sociedade ou um mundo — nunca poderá haver existência humana — sem necessidade e, para o caso, sem coerção de uma ou de outra forma. A questão é: Qual é a relação entre a necessidade e a coerção, por um lado, e a liberdade, por outro, e entre a emancipação autoconsciente, por um lado, e as condições materiais subjacentes, por outro? (...)

Juntamente com isto, está a realidade de que, em qualquer momento dado e de uma maneira ou de outra, “os termos irão ser estabelecidos”. Isto é uma outra maneira de falar da existência e do papel da necessidade. “Os termos serão estabelecidos” pela realidade objetiva no sentido mais geral e, sim, também serão estabelecidos através das ações conscientes dos seres humanos — como indivíduos mas, mais essencialmente, e com maior impacto, como forças sociais. Isto exprime-se de muitas maneiras na sociedade capitalista. Há a necessidade, a um nível básico, de as pessoas encontrarem trabalho, para poderem viver. (...)

Para ilustrar mais isto, vejamos algumas das melhores aspirações de algumas das pessoas mais progressistas. Elas não gostam de muitas das desigualdades sociais existentes: entre os homens e as mulheres, na opressão das nacionalidades minoritárias, e de outras formas — de facto, elas ficam perturbadas, talvez profundamente perturbadas, com isso. Mas estes termos foram estabelecidos, estas relações estão estabelecidas e são impostas, como resultado da própria natureza e através da dinâmica deste sistema, e as pessoas não podem simplesmente “escolher” aboli-los porque os odeiam, mesmo que de facto os odeiem. As pessoas são forçadas a responder a condições e termos que estão estabelecidos e lhes são impostos por forças acima e para além delas enquanto indivíduos. De facto, isto será sempre verdade para os seres humanos em qualquer sociedade. A diferença é que, na sociedade comunista, as divisões de classe e outras relações sociais de opressão serão eliminadas; estas relações, e as perspetivas que lhes estão associadas, não se manterão como obstáculo e não interferirão com os esforços dos seres humanos — individualmente e, sobretudo, cooperativa e coletivamente — para responderem à necessidade que enfrentam a cada momento dado. Mas, atualmente, ainda estamos na era da história humana em que as tentativas de qualquer pessoa ou de qualquer grupo para responder à necessidade tem de enfrentar não só essa necessidade num sentido geral, como também ao tentar fazê-lo enfrenta obstáculos impostos pelas divisões sociais e de classe e pelas correspondentes ideias e perspetivas.

A diferença essencial no que diz respeito à sociedade comunista não é que deixaremos de enfrentar a necessidade, ou que os termos não serão estabelecidos — não apenas pela natureza, como também socialmente —, mas que os seres humanos, individual e sobretudo coletivamente, serão capazes de confrontar e abordar a transformação desta necessidade sem o entrave das divisões de classe e outras relações sociais de opressão e das correspondentes ideias, incluindo as maneiras em que uma compreensão da realidade é distorcida através do prisma destas relações sociais e de classe antagónicas, e das ideias e perspetivas que lhes correspondem.

Para concluir este ponto, o comunismo não concebe nem engloba simplesmente, ou mais essencialmente, a “liberdade negativa” — ou seja, as formas como as pessoas, na sociedade socialista, bem como na sociedade comunista, conseguirão prosseguir as suas inclinações individuais específicas sem a interferência das instituições da sociedade, enquanto isso não cause danos a outros, ou à sociedade em geral, de uma maneira que tenha sido socialmente decidido ser inaceitável —, mas, para além disso, o comunismo concebe e encarnará toda uma nova dimensão da liberdade positiva: com as pessoas a proceder a, e a efetivar, individualmente, mas sobretudo em conjunto e através da interação mútua delas, incluindo através de uma luta não antagónica, a transformação contínua da sociedade e da natureza (e da relação entre as duas) para reforçar continuamente a vida material e a vida intelectual e cultural da sociedade no seu conjunto, bem como dos indivíduos que constituem a sociedade.45 [Negrito e itálico no original]


A estratégia... para uma revolução concreta

O objetivo do comunismo, o processo necessário que conduz a isso — a revolução e a transformação profunda da sociedade e, por fim, do mundo no seu conjunto, para se concretizar as “4 Todas” — e a possibilidade (não a inevitabilidade, mas a possibilidade) desta revolução: tudo isto é estabelecido não através de algum tipo de fantasia subjetiva, e utópica, mas numa base científica, através da análise das contradições fundamentais do sistema existente do capitalismo-imperialismo, vendo isto no contexto do desenvolvimento mais geral da sociedade humana e das forças motriz desse desenvolvimento, e examinando o seu lugar dentro desse contexto, e desta maneira reconhecendo a base e as potenciais forças para dar um salto radical para além deste e de todos os anteriores sistemas e relações de exploração e opressão. Aqui, como é indicado na observação que contrasta a possibilidade com a inevitabilidade, entram uma distinção crucial e um profundo questionamento da metodologia. Na história do movimento comunista, desde o momento da sua fundação, tem havido uma tendência para o “inevitabilismo” — a crença errónea em que o desenvolvimento histórico irá conduzir inevitavelmente ao triunfo do comunismo —, que tem sido mais ou menos pronunciada, em várias ocasiões e sob várias expressões, mas que em qualquer das expressões dela tem ido em sentido contrário ao método e abordagem fundamentalmente científicos do comunismo, desde a sua fundação no trabalho de Marx (e Engels). A este respeito, bem como noutras dimensões chave, o novo comunismo “representa e encarna uma resolução qualitativa de uma contradição crítica que tem existido no comunismo e no seu desenvolvimento até este momento, entre o seu método e abordagem fundamentalmente científicos e os aspectos do comunismo que têm ido em sentido contrário a isto.46 [Negrito e itálico no original]

A abordagem científica do novo comunismo enfatiza que a base para esta revolução reside não na maneira de pensar das massas populares em qualquer momento dado, mas nas contradições definidoras deste sistema que causam uma permanente miséria para as massas da humanidade, enquanto, ao mesmo tempo, estas contradições estão embutidas nas próprias estruturas e dinâmica deste sistema e não é possível resolvê-las nem eliminá-las dentro dos limites dele.

Isto tem uma expressão concentrada nos “5 ACABAR”:

ACABAR com a perseguição genocida, o encarceramento em massa, a brutalidade e os assassinatos policiais de negros, latino-americanos e pessoas de outras etnias!

ACABAR com a degradação, a desumanização e a subjugação patriarcais de todas as mulheres em todo o lado e de toda a opressão baseada no género ou na orientação sexual!

ACABAR com as guerras do império, os exércitos de ocupação e os crimes contra a humanidade!

ACABAR com a demonização, a criminalização e a deportação dos imigrantes e com a militarização da fronteira!

ACABAR com a destruição do nosso planeta pelo capitalismo-imperialismo!

Pode ver-se o quão relevantes e imediatamente urgentes são estes “5 ACABAR” e as contradições a que eles se referem.

Então, e quanto à questão de uma revolução concreta num país como os Estados Unidos, e a como ela se baseia, uma vez mais, nestas contradições definidoras mas irresolúveis e embutidas neste sistema e nas estruturas, funcionamento e dinâmica fundamentais dele?

Em “Sobre a possibilidade da revolução” e em “COMO PODEMOS VENCER, como podemos realmente fazer a revolução47 (um outro documento muito importante do Partido Comunista Revolucionário, EUA), fala-se não só sobre a necessidade desta revolução, como também sobre a estratégia para realmente se construir um movimento em direção ao derrube deste sistema, e depois para a sua concretização, quando estiverem criadas as condições para isso. Aqui não vou falar disto extensivamente e em profundidade — já o fiz em Porque Precisamos de Uma Verdadeira Revolução, e como Concretamente Podemos Fazer a Revolução48, em particular na 2ª Parte, que aborda a estratégia para a revolução — que elabora o que é formulado, de uma maneira concentrada, em “COMO PODEMOS VENCER” —, falando sobre o que temos de fazer agora para acelerar enquanto se espera pelo surgimento de uma situação revolucionária e de um povo revolucionário que conte com milhões de pessoas, para preparar o terreno, preparar as pessoas e preparar a vanguarda para essa situação [os “três preparar” — NT], quando isso for possível, e necessário, para lutar de uma maneira total para vencer — para derrubar este sistema opressor, desmantelar as suas forças de repressão violenta e as outras instituições do seu regime e estabelecer um sistema económico e político radicalmente diferente, que vise a abolição total e definitiva de todas as relações de exploração e de opressão. Mas de facto quero enfatizar intensamente a importância de efetivamente tornar real o que é apresentado, de uma maneira concentrada, em “COMO PODEMOS VENCER”, e elaborado de uma maneira mais completa em Porque Precisamos de Uma Verdadeira Revolução, e como Concretamente Podemos Fazer a Revolução (e, ligado a isto, o livro Os Pássaros não Podem Dar à Luz Crocodilos, mas a Humanidade Pode Voar para além do Horizonte, e em particular a 2ª Parte, também é muito relevante, incluindo a discussão aí feita sobre as maneiras em que os princípios discutidos em “Sobre a possibilidade da revolução” podem ter uma aplicação mais geral no processo revolucionário em diferentes tipos de países).

Em vez de elaborar extensivamente sobre os vários aspectos da estratégia revolucionária que foram desenvolvidos com o novo comunismo, incluindo as maneiras significativas em que ele representa uma rutura com o que tem sido o “senso comum” no movimento comunista, quero fornecer, uma vez mais, um resumo básico de alguns aspectos-chave disto.

Em primeiro lugar, está a questão decisiva do internacionalismo. Além de remeter as pessoas para a polémica “Comunismo ou nacionalismo?”49, da Organização Comunista Revolucionária, México (OCR,M), na revista Demarcations nº 4, inverno de 2015, e para a discussão do internacionalismo na 2ª Parte de O NOVO COMUNISMO, quero aqui abordar brevemente a base material e filosófica do internacionalismo comunista e o desenvolvimento da síntese disto no novo comunismo.

A base material reside no desenvolvimento do capitalismo, de uma maneira mais plena, num sistema internacional de imperialismo capitalista e nas várias características disso, incluindo o seu investimento e exploração muito mais generalizados à escala internacional (em vez do que aconteceu nas etapas anteriores do capitalismo, em que a produção ocorria principalmente nos países de base do capitalismo e era feita uma procura de mercados para esses produtos a nível internacional). O processo de produção foi muito mais plenamente internacionalizado, e cada vez mais nas últimas décadas. Este é um único sistema global com muitas diferentes partes componentes e dinâmicas para cada uma dessas partes componentes dentro deste sistema global. A dinâmica deste sistema no seu conjunto a nível mundial — não unicamente, mas principalmente e em relação dialética com a situação em regiões específicas do mundo e em países específicos — é o principal fator no estabelecimento do cenário objetivo para a luta revolucionária em países específicos. E quando, através deste processo dialético, as contradições assumem uma forma particularmente aguda em países específicos, isso pode levar ao surgimento de uma situação revolucionária aí. Portanto, há uma dinâmica em países específicos, mas não é só disso, nem sequer essencialmente disso, que surgem as condições materiais que influenciam o desenvolvimento da luta revolucionária e que, em última instância, podem levar ao surgimento de uma situação revolucionária nesses países específicos.

A compreensão disso também se interpenetra com a compreensão filosófica que é necessária para uma abordagem e uma aplicação corretas do internacionalismo. Como também é discutido na polémica “Comunismo ou nacionalismo?” da OCR,M, isto tem a ver com os diferentes níveis de organização da matéria em movimento. Há níveis relativamente discretos em todos os diferentes tipos de matéria (em movimento): há diferentes órgãos no corpo humano, e depois há o corpo humano como um todo, que engloba todos esses órgãos, e há a dinâmica interna deles e entre eles; há regiões específicas dentro de um país, há países específicos, e depois há o mundo como um todo. E assim sucessivamente. Cada um desses diferentes e relativamente discretos — realço o relativamente — níveis de matéria em movimento tem a sua própria dinâmica, as suas próprias contradições internas; mas, por sua vez, eles fazem parte de um sistema mais vasto, tal como os órgãos de um corpo fazem parte desse corpo mais vasto, e é esse mesmo corpo mais vasto e, por sua vez, a interação dele com o ambiente mais geral que, em última instância e fundamentalmente, estabelecem os termos para o que acontece nesse corpo, incluindo nos diferentes órgãos dele — embora, por vezes, o que acontece num órgão específico possa influenciar, ou mesmo determinar, o que acontece com o corpo no seu conjunto, o que é óbvio quando se tem um ataque cardíaco, por exemplo. Portanto, é esse o materialismo e a dialética de tudo isto.

E o mesmo se aplica à relação entre os países e o mundo e o sistema mundial no seu conjunto. Há níveis discretos de matéria em movimento que constituem os países, tal como há níveis discretos de matéria em movimento que constituem as diferentes regiões de um país. Mas, por sua vez, esses países, mesmo com a sua relativa identidade e o seu caráter discreto e com as contradições que são específicas dentro disso, existem dentro de uma dinâmica mais vasta que (como assinalei antes) é diferente de algo como a relação entre a Terra e todas as galáxias do universo. Por outras palavras, sim, a Terra faz parte de um sistema solar, o qual faz parte de uma galáxia, a qual faz parte de milhares de milhões de galáxias, e assim sucessivamente; mas essa relação não tem o mesmo significado operativo, em termos de transformação social, que tem, nesta era, a relação entre os países e a dinâmica do sistema imperialista, enquanto sistema mundial.

É a dinâmica fundamental deste sistema mundial no seu conjunto que, para citar um fenómeno profundo, foi responsável por duas guerras mundiais. Como foi referido nessa polémica da OCR,M, a Primeira Guerra Mundial não foi causada simplesmente, ou essencialmente, pelas dinâmicas internas de cada país, as quais depois, de alguma maneira, transbordaram para outros países. Obviamente, as dinâmicas internas dos diferentes países desempenharam um papel nisso, mas foi o cenário mundial mais vasto e as contradições a esse nível que conduziram a essa guerra. E é por isso que, por exemplo, numa das mais acertadas declarações dele, Estaline disse que a razão pela qual eles conseguiram triunfar na revolução na Rússia — ou a razão pela qual as condições para a revolução aí eram mais favoráveis que noutros lugares — foi que as contradições do sistema imperialista mundial em grande medida se tornaram concentradas e centradas na Rússia nesse momento. Portanto, este é outro exemplo da correta compreensão da relação entre os países e a situação mundial no seu conjunto.

Se não se compreende corretamente essa relação, se se inverte essa relação — como fazem algumas pessoas que se proclamam comunistas, mas que de facto defendem o nacionalismo em nome do comunismo e se convertem, no melhor dos casos, em nacionalistas radicais, o que em última instância converte isso em nacionalismo burguês —, está-se simplesmente a agir com base na dinâmica interna do país e vê-se isso como a arena mais importante em que operar. E isso pode levar a que se posicionem contra um outro país com a sua própria dinâmica interna. O internacionalismo dessas pessoas converte-se numa forma de “interseccionalidade” internacional, para usar a linguagem destes tempos, a qual pode ser facilmente transformada em antagonismos entre diferentes “setores” que se “intersetam”.

Em Mao havia tendências para proceder “da nação para fora”, mesmo quando ele estava a defender e a praticar o internacionalismo — tendências para combinar ecleticamente o nacionalismo com o internacionalismo — ainda que isso fosse definitivamente secundário na orientação fundamentalmente internacionalista de Mao. Mas estas tendências secundárias de Mao foram transformadas num princípio por alguns “maoistas” (entre os quais alguém como Ajith) e, ao fazê-lo, de facto substituíram o internacionalismo pelo nacionalismo.

Por isso, é de uma importância fundamental compreender a base material e filosófica para uma correta abordagem do internacionalismo: ver a arena mundial como sendo fundamentalmente decisiva, ao mesmo tempo que se compreende e se lida corretamente com as relações em movimento entre as contradições e a dinâmica dentro de um determinado país e noutros países — e tudo isto em relação com o sistema capitalista-imperialista como sistema mundial.

Há algumas claras implicações práticas disto, como referi em O NOVO COMUNISMO, incluindo a de que quaisquer que sejam os países socialistas que existam em qualquer momento dado, eles têm de ser tratados, acima de tudo — não apenas, mas acima de tudo —, como bases de apoio para fazer avançar a revolução mundial, ou então estarão, em última instância, posicionados contra o avanço da revolução comunista no mundo no seu conjunto; e, de facto, isso irá reforçar a base para o derrube e a inversão da revolução num país socialista específico. Não se trata de proclamar um princípio glorioso — “O internacionalismo significa, acima de tudo, ser uma base de apoio à revolução mundial” — num sentido abstrato ou quase religioso. Isto envolve muita complexidade porque, mais do que foi anteriormente reconhecido na história do movimento comunista, pode haver contradições muito agudas que têm o potencial para se transformarem em antagonismos, entre um país socialista que existe e as massas revolucionárias e as lutas revolucionárias noutros países. Há muitas maneiras em que os estados e as forças imperialistas e reacionários no mundo tentarão impor a um país socialista a necessidade de adotar políticas e ações, num esforço para se autopreservar, que vão contra o interesse fundamental de fazer avançar a revolução para o comunismo à escala mundial. E se a revolução de facto não continuar a avançar para o comunismo num sentido geral, irá recuar globalmente, incluindo onde tenham sido inicialmente criados países socialistas.

Portanto, trata-se de contradições muito complexas, e por vezes muito agudas. E, sem a correta abordagem de se compreender a base material e a base filosófica para o internacionalismo comunista, não haverá sequer uma hipótese de se abordar corretamente, e muito menos de se lidar com elas no mundo real, estas contradições muito profundas, e por vezes muito agudas, de uma maneira que realmente faça avançar a revolução mundial em geral. Alguém disse uma vez, levianamente, sobre a perda do socialismo na China: “Bem, facilmente vem, facilmente vai”. Milhões de pessoas sofreram e morreram para fazer nascer o socialismo na China, e milhões de pessoas em todo o mundo apoiaram isso e, em muito grande medida, e em grande parte numa base legítima, tiveram as esperanças delas assentes no socialismo nesse país. Foi um terrível revés quando aí o socialismo foi derrubado e o capitalismo foi restaurado. É muito importante preservar, e de facto fazer avançar, o socialismo onde quer que o poder seja arrancado das mãos dos imperialistas. Ao mesmo tempo, no entanto, se a preservação e o avanço de um estado socialista em qualquer país específico não forem corretamente tratados em relação com o desenvolvimento da revolução mundial no seu conjunto — e especialmente se isso de facto minar esse desenvolvimento de qualquer maneira essencial —, então eles também estarão em vias de ser invertidos.

Há toda a questão de o comunismo realmente ser o comunismo, e isto foi ainda mais enfatizado com o novo comunismo — de o comunismo realmente ser o comunismo e, portanto, ser realmente internacionalista da maneira que tenho vindo a falar, em oposição ao nacionalismo em nome do comunismo, ou em combinação eclética com ele.

Agora quero falar sobre a abordagem de base para a construção do movimento para a revolução, que está sintetizada na formulação “que fazerismo enriquecido”. Aqui vale a pena assinalar e abordar, mesmo que brevemente, o facto de que Estaline, enquanto liderava globalmente a recém-nascida União Soviética na via do socialismo e contribuía de algumas maneiras importantes para o desenvolvimento do movimento comunista internacional, ao mesmo tempo “inverteu” de facto o leninismo em várias questões importantes. Em relação ao internacionalismo, por exemplo — e isto foi feito marcadamente durante o período imediatamente anterior à Segunda Guerra Mundial e durante a mesma, quando os interesses da União Soviética enquanto estado foram, numa base muito abertamente nacionalista, colocados à frente do avanço geral da revolução mundial, no que foram circunstâncias muito agudas e intensamente contraditórias, só para que fique claro. Lenine tinha salientado que o proletariado nos diferentes países, em particular nos países imperialistas, não tinha uma “pátria” a defender (e mesmo que o capitalismo ainda não se tivesse desenvolvido para imperialismo capitalista como aconteceu na época de Lenine, esta posição de base remonta a Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista50, onde eles disseram que os proletários do mundo não têm pátria e apelaram aos proletários de todo o mundo para se unirem, o que foi uma posição e uma declaração internacionalistas muito importantes perante o mundo). Mas, sob a liderança de Estaline na União Soviética nas décadas de 1930 e 1940, quando eles pressentiram que a guerra estava iminente — e depois, como parte fundamental dessa guerra, em que houve um ataque massivo à União Soviética por parte da Alemanha, que se tinha tornado na Alemanha nazi — houve explicitamente uma revisão da noção de que os proletários não têm pátria e não têm nem base nem interesse em apoiar a “pátria” imperialista. De facto, os comunistas disseram coisas como: “Isso era verdade quando os proletários não tinham nada, mas agora têm sindicatos, lugares no parlamento, e por aí adiante, pelo que agora têm algo a preservar na pátria.”

Isto foi uma inversão bastante grotesca da posição correta pela qual Lenine tinha lutado de uma maneira muito enérgica e intensa, especialmente no contexto da Primeira Guerra Mundial, em oposição aos chamados “socialistas” que se começaram a mobilizar no apoio às suas várias “pátrias” assim que irrompeu a Primeira Guerra Mundial. Portanto, com o aproximar da Segunda Guerra Mundial e posteriormente durante essa guerra, com Estaline houve uma inversão direta, feita de uma maneira explícita e muito rudimentar, de um princípio e uma aplicação básicos do internacionalismo. Eles enfrentavam circunstâncias muito agudas, mas não de pode deitar fora um princípio apenas porque há circunstâncias agudas. Isto está relacionado de várias maneiras importantes com a afirmação de que tudo o que é realmente verdade é bom para o proletariado.

Na importante obra dele Que Fazer?51, Lenine deu grande ênfase a que não se seguisse na cauda da espontaneidade das massas, a que não se adorasse o traseiro das massas, mas que, em vez disso, se lhes levasse a consciência comunista a partir de “fora” das próprias experiências e lutas diárias delas. Lenine salientou que a classe operária e as massas populares não podem desenvolver espontaneamente uma consciência comunista — que talvez possam gravitar em direção a ela, mas que há forças mais poderosas na sociedade que as puxam de volta para (como ele disse) um empenho para se acolherem debaixo da asa da burguesia.

Mas Estaline, logo na década de 1920, também inverteu parte disto. Lembro-me de, há muito tempo, alguém ter levado um ensaio de Estaline a uma das nossas reuniões da União Revolucionária, ainda antes de ter sido formado o Partido Comunista Revolucionário, EUA. Isto foi numa época em que estávamos a tentar definir a nossa orientação para irmos ter com a classe operária — para levar a revolução à classe operária — e alguém trouxe esse ensaio em que Estaline dizia: devemos ir para o meio dos operários e ser os melhores combatentes pelos interesses imediatos deles, e depois eles vão ver que somos boas pessoa e vão querer ouvir-nos falar sobre as nossas convicções socialistas e comunistas.

Isto era extremamente rudimentar e foi definitivamente uma receita para o economicismo contra o qual Lenine tinha polemizado — toda a noção de reduzir a luta pelo socialismo a algo que supostamente evolui a partir das lutas diárias dos operários em torno das condições económicas deles — e estava mais geralmente de acordo com a orientação revisionista de que “O movimento é tudo, o objetivo final não é nada”.

Portanto, houve uma inversão de alguns princípios cruciais pelos quais Lenine lutou em Que Fazer? e noutras obras. Um comentário irónico sobre o quão importante é o Que Fazer? de Lenine foi feito por Donald Rumsfeld no decurso da guerra do Iraque de 2003, quando ele fez uma analogia, uma analogia muito perversa — ele estava a falar sobre as forças fundamentalistas islâmicas reacionárias e sobre como “nós” (os imperialistas) os deveríamos ter espezinhado imediatamente, e fez a seguinte analogia: Na época em que Lenine publicou aquele pequeno panfleto, Que Fazer?, se então tivéssemos sabido ao que isso iria conduzir, deveríamos tê-lo espezinhado logo ali. Assim, de uma maneira perversa, isso mostra-nos a importância “daquele pequeno panfleto” de Lenine e o quão sério foi o facto de, em grande medida, ele ter sido fragilizado após a morte de Lenine, incluindo em coisas que Estaline fez e liderou diretamente.

Uma das coisas chave de Que Fazer? e uma das coisas chave pelas quais Lenine estava a lutar em geral — uma das linhas chave em torno das quais ele foi repetidamente atacado — é o conceito de que, em vez de apenas reagirmos passivamente às condições objetivas, devemos estar ativamente a “empurrá-las”, a tentar ativamente transformá-las (“empurrá-las” é uma expressão minha, não de Lenine, mas corresponde de facto ao que ele salientou intensamente). Faz-se a acusação de que todos os tipos de horrores começaram com Lenine porque, em vez de simplesmente deixar que as condições materiais amadurecessem mais ou menos por si mesmas e de permitir que as pessoas chegassem espontaneamente ao que deviam fazer em relação a essas condições, Lenine insistiu em que é necessário uma vanguarda para liderar as massas, e em que uma vanguarda precisa de levar às massas as ideias comunistas a partir de “fora” da experiência e do pensamento espontâneo delas — que não se pode simplesmente esperar que as massas por si mesmas venham a ter uma consciência comunista, com a ideia de que talvez o socialismo possa ser alcançado de uma maneira pacífica porque com o tempo acabaria por haver tantas pessoas a favor dele que a burguesia se iria simplesmente afastar com base na vontade popular. Isto é um intenso ataque a Lenine, e em particular ao Que Fazer? de Lenine, que é feito por todos os tipos de pseudo- e autoproclamados “socialistas”, bem como pelas forças burguesas comuns. Mas Lenine estava absolutamente correto: é necessário “empurrar” as condições objetivas para fazer avançar as coisas até ao ponto em que se torne possível uma revolução comunista concreta, que derrube a ditadura da burguesia; é verdadeiramente necessário organizar uma força de vanguarda que leve às massas populares a compreensão da necessidade de fazer isso e que lute com elas para que elas assumam essa compreensão.

E, num sentido real, no novo comunismo, o “que fazerismo” foi “resgatado” e “enriquecido”. Aqui está novamente a questão, a que já me referi antes, de acelerar enquanto se espera pelo surgimento de uma situação revolucionária. Em relação a isto, quero fazer referência aos primeiros seis parágrafos da 2ª Parte de Fazer a Revolução e Emancipar a Humanidade52, onde são discutidos os aspectos importantes de acelerar enquanto se espera, incluindo uma importante discussão sobre a relação, a relação dialética, entre o fator objetivo e o fator subjetivo — sendo o fator objetivo quaisquer que sejam as condições objetivas num qualquer momento dado, incluindo o caráter mutável delas, e o fator subjetivo referindo-se, não às pessoas que são subjetivas, no sentido de serem emocionais ou insensatas ou algo assim, mas no sentido de sujeitos conscientes, as forças conscientes, a atuar sobre as condições objetivas. Aí, nos primeiros seis parágrafos da 2ª Parte de Fazer a Revolução e Emancipar a Humanidade, há uma importante discussão, não só da relação dialética entre os fatores objetivos e subjetivos num sentido geral, mas também, mais particularmente, da maneira como eles podem ser transformados uns nos outros.

Que significa isso? Significa que o que existe lá fora no mundo, especialmente quando está corretamente refletido nas mentes das pessoas, pode tornar-se parte da consciência do fator subjetivo, as forças conscientes, as quais podem então atuar com base nessa consciência para fazerem avançar a revolução. Nesse sentido, o objetivo transforma-se no subjetivo. E o subjetivo pode ser transformado no objetivo no sentido em que, com base numa imagem essencialmente correta da realidade, é possível avançar para mudar as condições objetivas e, desta maneira, o que era subjetivo (o que fazia parte da consciência) interage e transforma as condições objetivas, e nesse sentido torna-se parte delas. Portanto, em vez de se dizer “Há condições objetivas em presença e tudo o que podemos fazer é responder-lhes passivamente”, é uma questão de se avançar conscientemente para transformar continuamente as condições objetivas na direção da revolução, com base num método e abordagem científicos.

Uma outra questão importante a mencionar brevemente aqui, nesses primeiros seis parágrafos da 2ª Parte de Fazer a Revolução e Emancipar a Humanidade, é o facto de que as forças conscientes — o fator subjetivo nesse sentido — não reagem simplesmente à situação objetiva num sentido abstrato e imutável, e como que metafísico. Há fatores objetivos que estão constantemente a mudar no mundo natural — veja-se, por exemplo, algo como Porto Rico e o que aí aconteceu com o furacão e na sequência dele (há condições objetivas que estão constantemente a mudar nesse sentido) —, e depois, como se salienta nesses seis parágrafos, há a constante interação de outras forças sociais com a situação objetiva, as quais, em última instância, representam diferentes interesses de classe, e todas elas tentam atuar sobre a situação objetiva, e transformá-la, de acordo com a maneira como elas percebem os interesses que representam. E pode haver “consequências imprevistas” no que fazem as outras forças de classe que podem de facto fazer com que as coisas se tornem mais favoráveis para a revolução SE as forças comunistas responderem corretamente a isso. Portanto, não é apenas uma questão de “Bem, temos as condições objetivas em algum sentido estático imutável, e podemos ignorar todas as outras forças sociais em presença que estão a atuar sobre essas condições e sobre a maneira como isso está a influenciar as coisas”. Assinala-se, em oposição a isso, que tudo o que está a acontecer com todas essas diferentes forças — não só “as forças da natureza” estão a transformar a situação objetiva, o que de facto fazem de maneiras importantes que interagem com as forças sociais, como também há todas estas diferentes forças na sociedade que representam diferentes interesses de classe, em última instância e fundamentalmente, e que atuam sobre a situação objetiva —, a certo ponto, tudo isto pode levar a uma situação que talvez não pudesse ter sido antecipada dois meses antes (ou talvez mesmo duas semanas antes), que começa a avançar em direção a uma crise revolucionária — SE, uma vez mais, os revolucionários, as forças comunistas conscientes, numa base constante e de uma maneira consistentemente científica, tiverem vindo a transformar a situação objetiva no máximo grau possível, de acordo com o rumo que as coisas precisam de tomar para que se torne possível o derrube deste sistema.

Isto não é algo sem rumo, ou algo em si e por si. É preciso manter todo um processo de transformar continuamente a situação objetiva em direção ao objetivo da revolução, e de acumular mais forças revolucionárias em cada momento desse processo, de maneira a que se esteja a acelerar enquanto se espera, o que significa que se está de facto a transformar as condições objetivas. Crucial em tudo isto, está-se a mudar a maneira de pensar das pessoas, em resposta a essas mudanças e num sentido geral: está-se a lutar com elas — não apenas uma a uma e duas a duas, aqui ou ali, mas com massas de pessoas — para transformar a maneira de pensar delas. Está aqui a importância do slogan: Combater o poder, e transformar as pessoas, para a revolução. Neste processo, transformar a maneira de pensar das pessoas é crucial e o elo chave em geral. Portanto, mesmo quando nos estamos a unir às pessoas para lutar contra os ultrajes e abusos deste sistema, numa situação em que muitas pessoas ainda não veem a necessidade da revolução, estamos a lutar para transformar a maneira de pensar delas em consonância com a necessidade objetiva de uma revolução. E, uma vez mais, este processo não é algo sem rumo (de acordo com a noção revisionista de que “O movimento é tudo, o objetivo final não é nada”). Não, é um processo que visa, e que se prepara em direção a, algo muito específico: a revolução. Isto deve ser divulgado e popularizado em cada momento deste processo.

E depois, como parte importante do “que fazerismo enriquecido”, há o princípio de colocar às massas os problemas da revolução, enquanto, ao mesmo tempo, se luta com elas para que assumam a perspetiva, os métodos, os princípios e o programa desta revolução. Porque é que isto é importante? Não se deve a que, de acordo com uma orientação seguidista, pensemos que as massas irão ter espontaneamente a resposta para estes problemas. Se já a tivessem, então teríamos uma situação muito mais fácil, nem sequer precisaríamos de uma vanguarda, as massas poderiam simplesmente fazer a revolução. Então o que é que está em causa aqui? Trata-se de motivar as massas, com liderança e com luta, para o processo de identificação e resolução dos problemas da revolução, em vez de um tipo de abordagem oportunista de tentar ocultar das massas os problemas da revolução ou, com a “verdade política”, de as tentar convencer: “Tudo está a correr muito bem; tudo o que precisam fazer é participar” — caso em que elas provavelmente diriam: “Bem, se tudo está a correr muito bem, porque é que eu devo participar? Isso exige muita luta e sacrifício. Está tudo a correr muito bem, sigam em frente, avisem-me quando tiverem tudo pronto e, então, talvez eu participe.” Que a revolução é feita pelas massas é um princípio muito importante, num sentido fundamental e decisivo, quando corretamente compreendido e aplicado. Mas isso não é, nem deve ser assumido como sendo, uma receita para se seguir na cauda das massas e da espontaneidade delas. Mas, de facto, são elas que têm de fazer esta revolução e elas precisam de estar envolvidas, em cada etapa, em lidar com, e em contribuir para, o processo de determinar os meios para a luta e de transformar as contradições que se enfrenta, os problemas da revolução, para se dar passos em frente e avançar. Este é um princípio muito importante e é algo que não deve ser identificado com seguir na cauda das massas e com pensar que, num sentido reificado, toda a sabedoria reside nas massas e que tudo o que temos de fazer é dizer-lhes qual é o problema e elas irão aparecer de imediato com a solução. É uma questão de as envolver, em números cada vez maiores, sobre uma base liderada cientificamente, no processo de luta para enfrentar e transformar as contradições que têm de ser resolvidas através da luta na via para a concretização da revolução.

Em relação a tudo isto, quero falar sucintamente sobre a separação entre o movimento comunista e o movimento laboral. Referi a luta de Lenine com os economicistas do tempo dele e a ênfase, feita em Que Fazer?, em que o socialismo não seria criado como extensão da luta económica dos trabalhadores e em que reduzir a isso a luta pelo socialismo e o comunismo levaria à continuação da situação em que as massas estão acorrentadas no sistema atual — a compreensão, salientada por Lenine, de que as massas populares, os proletários e as outras pessoas oprimidas, nunca iriam obter uma consciência comunista apenas a partir da luta imediata com os seus patrões e da luta global pelas suas necessidades imediatas, por mais importante que essas lutas sejam. E, retomando o que eu disse anteriormente sobre o desenvolvimento do capitalismo para imperialismo capitalista, e a mudança da configuração das classes nos países imperialistas, Lenine fez a importante análise53 de que, com o desenvolvimento do capitalismo para imperialismo capitalista, ocorreu aquilo a que ele chamou uma cisão na classe operária, entre alguns setores que se tinham aburguesado mais — subornados, como ele disse, com os despojos do imperialismo e da depredação colonial no que agora chamamos o terceiro mundo — e aqueles a que ele se referiu como os setores numa posição mais em baixo e mais no fundo do proletariado que continuaram a ser intensamente explorados e a ser a base para um verdadeiro movimento revolucionário. Isto representou uma rutura inicial do movimento comunista com o movimento laboral — a luta de Lenine contra o economicismo e o reconhecimento por parte dele de uma cisão na classe operária nos países imperialistas.

E depois, à medida que a luta comunista se foi deslocando cada vez mais para o terceiro mundo durante um certo período de tempo, particularmente após a Primeira Guerra Mundial, Mao desenvolveu na China um modelo de uma guerra popular baseada no campesinato, que obviamente não se baseava no movimento laboral. Nas primeiras lutas na China, na década de 1920, eles tentaram basear o movimento comunista nas lutas laborais nas cidades — e foram destroçados e massacrados pelas forças governamentais e pela sua viciosa repressão. Então, obviamente, com a guerra popular baseada no campesinato, houve uma maior separação entre o movimento comunista e o movimento laboral.

Para continuar isto, em termos de como foi desenvolvido com o novo comunismo, quero repetir uma formulação que uma vez usei para pôr em evidência esta questão da separação entre o movimento comunista e o movimento laboral. Eu disse que estamos a tentar fazer “uma revolução proletária com um proletariado que não existe!” Ora, eu estava a ser deliberadamente provocador para pôr em evidência uma questão essencial: não que, de facto, não haja um proletariado, mas isto foi uma maneira provocadora de dizer que este movimento não será uma extensão do movimento laboral, não será feito com a visão economicista da classe operária a lutar contra os seus patrões como principal meio de avançar para o socialismo, e além disso não será sequer feito simplesmente indo ter com os setores mais em baixo e mais no fundo do proletariado num país como os Estados Unidos e tentando basear aí esmagadoramente o movimento revolucionário, ainda que as massas populares que estão nessa posição na sociedade têm, obviamente, de participar e de desempenhar um papel importante nesta revolução.

Claramente, há de facto um proletariado, incluindo em países como os Estados Unidos — há massas de trabalhadores assalariados duramente explorados, nos próprios Estados Unidos e a uma escala ainda maior a nível internacional. Mas a questão, e o que eu estava a tentar explicar com esta afirmação deliberadamente provocadora, é a seguinte: a revolução proletária não se vai, nem se pode, realizar como extensão da luta entre os trabalhadores assalariados e os patrões deles; a abolição do domínio do capitalismo não se irá realizar através de alguma espécie de greve geral dos trabalhadores; nem é necessário, nem sequer provável, que as principais forças de combate na batalha para derrubar a força repressiva armada do estado capitalista (a ditadura burguesa) venham principalmente dos trabalhadores assalariados com emprego, e certamente não virão de entre os estratos mais bem pagos e mais aburguesados da classe operária.

Então, qual é a coluna vertebral, ou a potencial coluna vertebral, das forças para a revolução, particularmente num país como os Estados Unidos? Bem, são as massas empobrecidas e duramente oprimidas e reprimidas que existem às dezenas de milhões nos Estados Unidos; e isto interpenetra-se em grande medida com as pessoas das nacionalidades oprimidas, ainda que não se limite a isso. Ao mesmo tempo, temos de facto de reconhecer que entre muitas destas massas se manifesta o fenómeno do que se poderia chamar “desproletarização” — as pessoas que anteriormente eram elas mesmas exploradas como trabalhadores assalariados (ou as gerações anteriores delas que foram exploradas desta maneira), mas que agora nem sequer se encontram nessa situação (não conseguem encontrar emprego, para dizer isto de uma maneira simples). Isto tem sido acompanhado por muito do se que poderia chamar “pequeno-aburguesamento”, bem como do “lumpen-aburguesamento”, entre vários setores das massas oprimidas — as pessoas que se envolvem em atividades de pequena escala, que são essencialmente atividades pequeno-burguesas no sentido de que isso envolve a propriedade e o comércio de pequena escala e coisas assim, e pessoas que estão na vida do crime, incluindo aquelas que se elevaram para posições de um razoável poder e riqueza dentro disso, ainda que a situação delas seja frequente e geralmente muito precária.

Há estes fenómenos, e há o fenómeno de que na esfera da cultura, por exemplo, um certo setor de pessoas, relativamente pequeno mas influente, conseguiu ascender entre estas massas para uma posição basicamente burguesa. A razão pela qual referi o “lumpen-aburguesamento” é que ele inclui pessoas que não só utilizaram a esfera da cultura, como também, em alguns casos, o campo do crime para se colocarem numa posição em que têm bastante dinheiro, e depois investem em linhas de cosméticos, roupas e coisas assim — tornam-se verdadeiros burgueses, ainda que ao mesmo tempo muitos deles façam parte de uma nação ou povo oprimido. E, em muito grande medida, eles defendem a correspondente perspetiva. Neste momento não vou sequer falar em Kanye West! Mas, mais geralmente, há o fenómeno em que testemunhamos um profundo silêncio por parte de muitas dessas figuras culturais e de outras pessoas sobre alguns dos problemas candentes para as massas hoje. Algumas delas talvez escrevam no Twitter sobre várias coisas, mas não se erguem e tomam uma posição firme de resposta — como fenómeno, muitas delas não se erguem e tomam uma posição firme em relação aos flagrantes atos de opressão e injustiça contra as massas populares. E isso é assim porque a posição delas mudou. Não só há um “pequeno-aburguesamento” bastante significativo entre as massas oprimidas, como também há o “lumpen-aburguesamento” a que fiz referência — e há uma cultura que espelha o caráter extremamente individualista e aquisitivo da cultura dominante no seu conjunto.

Há o fenómeno do que se poderia chamar “reaganismo entre as massas populares”, todo o etos que surgiu com [o ex-presidente norte-americano Ronald] Reagan na década de 1980, esse individualismo extremo — e não apenas o individualismo em abstrato, mas um individualismo que se exprime em termos de antagonismo em relação a todos os outros: “Não podes confiar em mais ninguém; ninguém se preocupa contigo; tens de superar as outras pessoas antes que elas te superem”. Em grande medida, isto converteu-se num modelo para as massas, embora (uma vez mais, regressando à afirmação de Marx nos Grundrisse) a grande maioria delas seja totalmente incapaz de seguir este caminho, apenas algumas delas o conseguem fazer. De facto, há milhões de pessoas talentosas nos desportos, nas artes e por aí adiante, mas apenas um minúsculo número delas pode alguma vez chegar a ter uma posição de riqueza e proeminência. Contudo, isto é promovido como modelo. Não só isto é promovido como saída para as pessoas, de uma maneira mais geral é promovido como modelo a seguir pelas pessoas e como a maneira que as pessoas devem pensar e comportar. Isto de facto representa um problema real — e, mais do que isso, é uma expressão aguda de um problema muito mais vasto em termos da cultura predominante contra a qual é preciso lutar. A maneira de pensar das pessoas nesta matéria tem de ser radicalmente transformada.

Ao mesmo tempo, com tudo isto, há a pobreza e a miséria, e a implacável injustiça e opressão, a que as massas populares são continuamente submetidas e das quais, para regressar novamente a Marx nos Grundrisse, elas não têm nenhuma saída a não ser através do derrube do sistema. Mesmo sem a revolução, tudo isto a que elas são continuamente submetidas faz com que as pessoas se levantem contra o sistema e os seus ultrajes, e proporciona uma poderosa parte da base objetiva para que as massas, particularmente (embora não exclusivamente) aquelas que vivem o pior dos infernos sob este sistema, possam ser ganhas para a revolução que é necessária para satisfazer o que são, de facto, as necessidades e os interesses fundamentais delas, e para que desempenhem um papel decisivo nessa revolução. Mas isto irá requerer uma tremenda luta ideológica, transformar a maneira de pensar das massas populares e, ao mesmo tempo, unirmo-nos a elas na luta contra as autoridades opressoras, ganhá-las para se tornarem, não pessoas à procura de vingança e a tratar de si mesmas, mas emancipadores da humanidade, e assim atuarem como coluna vertebral das forças para a revolução comunista proletária.

Como indiquei, isto está intimamente entrelaçado com a luta para abolir a opressão dos negros e de outras nacionalidades oprimidas nos Estados Unidos e com toda a questão da relação entre a libertação nacional e a revolução proletária, particularmente num país como os Estados Unidos, a qual é discutida em O NOVO COMUNISMO e tratada, concretamente e num sentido estratégico geral, na Constituição para a Nova República Socialista na América do Norte54.

Ao mesmo tempo que há estas forças de base para a revolução, as quais sofrem desta maneira e têm de ser ganhas para esta revolução através de uma imensa luta em que é crucial transformar a maneira de pensar delas, há a necessidade de uma frente unida mais ampla, sob a liderança do proletariado — não no sentido reificado de alguns proletários individuais a representar a essência desta liderança, mas no sentido do que são os interesses fundamentais do proletariado como classe e, regressando a Marx, o facto de que o proletariado só se pode emancipar a si mesmo emancipando toda a humanidade, eliminando a opressão e a exploração em todo o mundo com a concretização do comunismo. Tomar por base essa compreensão, e proceder dessa maneira, é o que se entende por liderança do proletariado. E o que corresponde aos interesses fundamentais do proletariado, e o que é requerido para que a revolução concretize esses interesses fundamentais, é trazer para o processo revolucionário tantas forças quanto possível, vindas dos mais vastos setores da sociedade, e lutar continuamente para ganhar as pessoas para a posição comunista revolucionária. Trata-se de atrair e integrar aqueles que vivem o pior dos infernos neste sistema, mas também — e fundamentalmente através de os atrair e integrar — de trabalhar ao mesmo tempo para atrair e integrar todos os diferentes estratos do povo, incluindo em particular os jovens e os estudantes, os quais constituem uma força crucial que tem um importante papel neste processo revolucionário.

Isto requer uma abordagem científica, materialista dialética, à situação e aos sentimentos e inclinações espontâneos, não só das massas de base que podem e devem ser atraídas e integradas como coluna vertebral e força motriz deste processo revolucionário, mas também da classe média dos Estados Unidos, e dos diferentes estratos dentro desta classe média, cuja situação é significativamente diferente da que era há 50 anos, ou mesmo há 20 anos. Isto requer uma compreensão dinâmica e constantemente aprofundada da posição material e das perspetivas — as condições de vida e a maneira de pensar espontânea — destes diferentes setores do povo e de como levar a cabo a luta necessária para gerar uma profunda mudança nas perspetivas e nos valores de um grande e crescente número deles, ganhando-os para uma participação ativa e cada vez mais consciente no processo revolucionário, cujo objetivo final é a abolição de todas as relações de exploração e opressão, de todas as relações antagónicas entre os seres humanos em todo o lado, e de toda a agonia e angústia que acompanha essas relações.

Tudo isto — todo o conjunto do “que fazerismo enriquecido” — envolve uma rutura fundamental com o economicismo em todas as diferentes dimensões em que abordei isto. E uma das maneiras em que isto se exprime crucialmente é em relação à opressão das mulheres e à luta pela emancipação das mulheres. Tem havido uma tendência no movimento comunista para reduzir isto, uma vez mais, a uma mera questão económica — em que a luta contra a opressão das mulheres é reduzida a simplesmente mudar o sistema económico. E isto também tem sido expresso de uma maneira que o coloca em relação antagónica com a luta contra a opressão nacional. Por exemplo, na década de 1960 havia uma linha muito influente, num sentido negativo, que insistia em que, no que diz respeito aos negros, não se podia invocar a opressão das mulheres, por os homens negros terem sido tão brutalmente oprimidos, algo que evidentemente é verdade. Mas, em primeiro lugar, que dizer em relação às mulheres negras e a todas as horrendas formas como têm sido oprimidas ao longo da história dos Estados Unidos até ao presente? E de uma maneira ainda mais fundamental, que dizer da emancipação da humanidade no seu conjunto? E que dizer em relação à transformação de todas aquelas “4 Todas”, incluindo a profunda relação social que foi incrustada na sociedade de classes, que tem estado interligada à opressão de classe desde o próprio início da divisão da sociedade em opressores e oprimidos, nomeadamente o estatuto oprimido das mulheres?

Tem havido tendências economicistas e nacionalistas, por vezes mesmo em nome do comunismo, que têm minimizado a importância da luta pela emancipação das mulheres. E com o novo comunismo, um dos seus pilares chave é reconhecer o papel crucial e essencial da luta para emancipar as mulheres e a interconexão e papel decisivo dela no processo global de abolir toda a opressão e exploração. Estreitamente interligado a isto está a rutura radical que o novo comunismo fez com a história anterior do movimento comunista no que diz respeito à orientação sexual e às relações de género tradicionais. Enquanto, por um lado, e principalmente, historicamente o movimento comunista fez avanços cruciais ao analisar cientificamente as origens da opressão das mulheres, a base para a sua abolição definitiva, e a relação disto com o desenvolvimento global da sociedade humana e a luta para abolir todas as relações de exploração e opressão — notavelmente na obra seminal de Engels, A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado55 —, ao mesmo tempo, tem havido no comunismo uma influência secundária, mas significativa, do patriarcado que, entre outras coisas, se tem manifestado numa orientação negativa em relação à orientação sexual e às relações de género que estão em conflito com as relações tradicionais de género — algo que aqueles de nós que se tornaram comunistas revolucionários com a agitação revolucionária da década de 1960 “herdámos” do movimento e das tradições comunistas então existentes e que continuaram connosco durante algum tempo — um tempo demasiado longo — e com os quais finalmente se rompeu como importante dimensão do desenvolvimento do novo comunismo. Ao romper com isto, a abordagem do novo comunismo não foi a de seguir na cauda da política de identidade, de métodos e abordagens relativistas associados a ela e de outros métodos e abordagens não-científicos, entre os quais a epistemologia populista, mas a de aplicar um método e uma abordagem científicos ao estudo da sexualidade humana e das relações de género ao longo da história, bem como na sociedade contemporânea, incluindo através de aprender com e retirar lições do trabalho de outros cuja perspetiva e abordagem não são comunistas, mas que, ainda assim, fizeram um importante trabalho em relação a estas questões cruciais e cuja posição sobre isto tem estado mais de acordo com a realidade do que o que tem sido a posição tradicional do movimento comunista. O resultado de tudo isto é uma síntese científica que é apresentada de uma maneira concentrada na Constituição para a Nova República Socialista na América do Norte, a qual salienta que o objetivo não é apenas a igualdade entre os homens e as mulheres, mas:

eliminar todos os “grilhões da tradição” encarnados nos papéis e divisões tradicionais de género, e em todas as correspondentes relações de opressão, em todas as esferas da sociedade, e capacitar as mulheres, tão plenamente quanto os homens, a participarem e contribuírem em todos os aspectos da luta para transformar a sociedade, e o mundo, a fim de extirpar e abolir todas as relações de opressão e exploração e emancipar toda a humanidade.56

Isto precisa de ser compreendido em relação à emancipação das mulheres e à eliminação de toda a opressão ligada às relações tradicionais de género, bem como num sentido global, que só se estivermos a proceder do ponto de vista comunista, com o reconhecimento cientificamente estabelecido da necessidade de se concretizar as “4 Todas” — só então conseguiremos eliminar as divisões e os potenciais antagonismos nos diferentes setores do povo e entre eles, e só então conseguiremos trazer para a frente todos os vários elementos da necessária luta para a revolução, tal como em grande medida estão representados naqueles “5 ACABAR”. Nada menos que isso irá possibilitar a total eliminação das divisões que existem espontaneamente e que são constantemente fomentadas de uma maneira objetiva pelo funcionamento do sistema e pelas ações conscientes dos seus vários tipos de representantes. A classe dominante procura repetidamente atirar diferentes setores do povo uns contra os outros e, ao contrário das ilusões da “interseccionalidade”, a classe dominante tem muitas maneiras poderosas de o fazer se não procedermos do ponto de vista da emancipação da humanidade no seu conjunto.

Há toda uma história de diferentes setores do povo a serem atirados uns contra os outros. Há o atroz exemplo dos Soldados Buffalo depois da Guerra Civil norte-americana — os soldados negros que lutaram para reprimir e exterminar os nativos americanos e roubar as terras deles —, ao mesmo tempo que nessa Guerra Civil, entre os diferentes povos indígenas, houve alguns deles que se aliaram à União do Norte, enquanto outros se aliaram à Confederação do Sul, com base na sua estreita perceção dos seus interesses imediatos. Só procedendo com o ponto de vista do comunismo se poderá unificar as massas populares para eliminar todas as manifestações de opressão e concretizar as “4 Todas”. Isto é crucial num sentido geral e torna-se particularmente agudo em torno da questão da mulher, porque continua a haver uma tendência, incluindo no movimento comunista, a subordinar isto, ou a não dar plena expressão a isto, em nome dos interesses percebidos nesse momento, e com uma perspetiva estreita e economicista do que deveria constituir o movimento da classe operária ou o movimento comunista. Portanto, uma muito importante parte componente do novo comunismo é o reconhecimento da necessidade de dar a mais plena expressão à luta pela emancipação das mulheres e ao seu papel crítico e crucial em relação com a luta global pelas “4 Todas”.

Desenvolvendo o que discuti antes em relação à democracia, e ao caráter e papel dela em diferentes sistemas e com a ditadura de diferentes classes, há (como exprimi no título de um livro) a necessidade de “conseguir fazer melhor” que a democracia. Isto é um dos elementos-chave e também um dos elementos mais controversos e muitas vezes atacado do novo comunismo, por razões que bem se pode imaginar. Uma vez mais, há a importante ênfase de Mao em que a democracia faz parte da superstrutura. Com o novo comunismo, isto foi ainda mais desenvolvido para sistematizar a compreensão de que ir além das divisões de classe e do domínio de classe (a ditadura de classe) também envolve ir além da “democracia”. (Falarei mais sobre isto um pouco mais adiante, particularmente no contexto da discussão da questão da liderança, e do desenvolvimento da compreensão comunista do caráter e do papel do partido de vanguarda, tanto antes como depois da tomada do poder e do estabelecimento da ditadura revolucionária do proletariado.)


A liderança

Isto traz-me à questão da liderança — e, em particular, o papel contraditório de uma vanguarda comunista, antes e depois da tomada do poder.

Aqui entra o papel dos intelectuais — as contradições ligadas a isto, e como isto se aplica na revolução comunista, ao contrário da revolução burguesa (isto é discutido em O NOVO COMUNISMO, e é importante regressar aqui a isto para falar sobre o caráter e os objetivos da ditadura do proletariado e o papel de uma vanguarda comunista em relação a isso). Em O NOVO COMUNISMO afirma-se, em termos bastante provocadores, que na revolução burguesa as massas populares lutam e morrem, mas uma classe que se opõe aos interesses delas, a burguesia, põe-se à frente e toma o poder e depois governa de acordo com os interesses da classe burguesa e do sistema capitalista do qual é uma expressão concentrada. Por outras palavras, as massas lutam e morrem e uma outra classe, alheia e oposta, colhe os benefícios, para dizer isto em termos concisos e contundentes. E em O NOVO COMUNISMO eu fiz a afirmação deliberadamente provocadora de que na revolução burguesa isso não é importante, mas que de facto isso é importante na revolução proletária. Depois, imediatamente a seguir eu disse que, claro, isso de facto é muitíssimo importante. A razão de dizer provocadoramente que não é importante é que isto corresponde à natureza da revolução burguesa. Mas na revolução proletária tem de acontecer algo radicalmente diferente: os interesses das massas populares, no sentido mais fundamental — não num sentido reificado, mas num sentido fundamental — têm de estar no primeiro plano como aquilo se está a defender e pelo qual se está a lutar no combate para transformar a sociedade. Mas isto não é uma coisa automática ou fácil. E é profundamente importante que isto aconteça de facto na revolução proletária — ou então a revolução proletária converte-se, de facto, numa revolução burguesa.

Isto não tem a ver com a famosa (ou, diria eu, infame) declaração do lorde britânico Acton de que o poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente. Tem a ver com o facto de continuarem a existir objetivamente contradições quando a revolução conseguir derrubar a ditadura da burguesa e estabelecer o domínio, a ditadura, do proletariado, e enveredar pela via socialista. Isto retoma a analogia com a evolução no mundo natural. A revolução não se faz evocando ideias de como gostaríamos que fosse a sociedade e depois magicamente impondo isso ao mundo real, e não se faz com uma tábua rasa. Faz-se, para parafrasear Lenine, com as condições e as pessoas tal como as herdamos da velha sociedade, ainda que no decurso dessa revolução as massas populares tenham passado por uma significativa transformação, embora apenas inicial, da sua maneira de pensar — das suas perspetivas, valores, etc. E depois, uma vez enveredados pela via socialista, ainda precisamos de lidar com todas as condições e contradições que, num sentido real, herdámos da velha sociedade, em relação às quais temos de desencadear a transformação, ao mesmo tempo que está a ser desenvolvido o estado socialista, fundamentalmente e acima de tudo, como base de apoio para o avanço da revolução comunista no mundo no seu conjunto.

Então, porquê falar sobre isto em termos do papel dos intelectuais? Porque, como assinalei antes, em O NOVO COMUNISMO e noutras obras, para fazermos o tipo de revolução de que estamos a falar, uma revolução que visa a emancipação da humanidade, temos de trabalhar sistematicamente com as ideias, com ideias relacionadas com uma realidade complexa. Temos de lidar — e, de uma maneira concentrada, a liderança dessa revolução tem de lidar — com as contradições do mundo real que se colocam repetidamente, com toda a complexidade de realmente se fazer uma revolução, uma complexidade que envolve, em primeiro lugar, realmente chegar ao momento e conseguir derrubar o velho sistema, e depois a complexidade que se apresenta imediatamente após a tomada do poder e a criação de um novo sistema de governo político e o enveredar pela via socialista. Não é possível lidar com toda essa complexidade de uma maneira que realmente faça avançar em direção às “4 Todas” e à emancipação da humanidade sem trabalhar no campo das ideias de uma maneira desenvolvida, de uma maneira que aplique a ciência para empenhar, para interagir e transformar, o mundo objetivo tal como ele realmente existe, e tal como ele é cheio de contradições, de movimento e de mudança. Sem se fazer isso, nunca se vai sequer reconhecer plenamente quais são as contradições com que nos confrontamos, e como elas têm de ser transformadas, como tem de ser levada a cabo a luta para se fazer isso e como evitar que se desvie do objetivo fundamental e final, enquanto ao mesmo tempo se está a lidar com contradições imediatas.

Em qualquer revolução que tenha alguma hipótese de sucesso, e certamente numa que consiga de facto dar o primeiro grande salto de derrubar o velho sistema opressor do capitalismo, as pessoas que a lideram têm de ser intelectuais no sentido de ser pessoas que conseguem trabalhar com ideias de uma maneira mais ou menos abrangente. Claro, todas as pessoas trabalham com ideias a um certo nível, mas o que é requerido é fazer isso a um nível muito elevado e de uma maneira abrangente e científica. Portanto, o núcleo da liderança será constituído por intelectuais. Estes intelectuais podem ter-se desenvolvido de diferentes maneiras e ser provenientes de diferentes setores da sociedade — incluindo não apenas pessoas com origens mais privilegiadas e uma extensa educação formal, mas também, por exemplo, pessoas vindas de entre os presos e outros elementos das massas de base que superaram grandes obstáculos para se desenvolverem como intelectuais — mas o que têm em comum é uma capacidade desenvolvida de trabalhar com ideias de uma maneira abrangente e sistemática.

E depois há a afirmação que Marx fez de que, numa sociedade dividida em classes, os intelectuais são os representantes políticos e literários de uma classe (mesmo que não estejam plenamente conscientes disso, e certamente se o estiverem). As ideias e maneiras de pensar deles refletem objetivamente os interesses e as perspetivas de uma ou de outra classe. E, devido à particularidade do que significa ser um intelectual e trabalhar com ideias, há um certo tipo de mobilidade social, no sentido de que os intelectuais podem “ligar-se” a uma classe ou a outra, e podem desligar-se de uma classe e ligar-se a outra classe, numa direção positiva ou negativa do ponto de vista da revolução comunista e dos interesses objetivos da humanidade.

Tudo isto é um reflexo da situação em que estamos, e de onde ainda não chegámos, no processo de transformação da sociedade e, em última instância, do mundo em direção à eliminação de toda a exploração e opressão e de tudo o que está ligado a isso, incluindo todas as ideias. Portanto, não se trata de que “o poder corrompe, o poder absoluto corrompe absolutamente”. Trata-se de lidar com contradições complexas do mundo real, e é necessário um grupo de intelectuais para liderar isto; está-se a lidar com todas estas contradições que são herdadas, por assim dizer, da velha sociedade e que não podem ser afastadas com uma varinha mágica, nem podem ser transformadas, mesmo numa base correta, todas de uma vez ou num curto período de tempo. Diferentes pessoas podem desenvolver diferentes abordagens e diferentes programas para lidar com estas contradições do mundo real. E, porque ainda estamos num mundo em grande parte caracterizado, e durante um certo período de tempo dominado, pelas relações e ideias de um sistema de exploração, a espontaneidade irá sempre — ou pelo menos durante um longo período de tempo — na direção de alinhar com essas relações de exploração e opressão, ou de procurar atalhos que objetivamente levam por esse caminho.

É aqui que a fricção se torna muito aguda, por assim dizer — em que durante muito tempo haverá a necessidade de um grupo dirigente central, que objetivamente ocupe uma posição diferente daquela em que estão as massas que ele está a liderar. A questão decisiva é: Que métodos, fluindo de que tipo de perspetiva, que tipo de abordagem científica ou anticientífica, se aplicam para lidar com estas contradições? E para dizê-lo em certos termos: a que é que “recorrem” as pessoas que constituem este núcleo dirigente quando esbarram em contradições muito agudas? Será que reconhecem a necessidade, e agem de acordo com a necessidade, de levar a cabo uma luta feroz contra a espontaneidade ao lidarem com as contradições do mundo real que se podem manifestar de uma maneira muito aguda, incluindo ao extremo de colocarem a questão da continuação da existência, ou não, do que foi alcançado até então, que, uma vez mais, não é “facilmente vem, facilmente vai”?

É com isto que se está a lidar na transição da velha sociedade para um mundo comunista, que em grande parte se inicia com as condições e as pessoas tal como elas são “legadas” à nova sociedade, por assim dizer. E isto tem tudo a ver com as contradições de um partido de vanguarda. Em O NOVO COMUNISMO, isto foi colocado da seguinte maneira, e é importante centrarmo-nos nisto: As próprias contradições que tornam necessária uma vanguarda são também as contradições que podem levar essa vanguarda de regresso à via do capitalismo.

Novamente, isto coloca-se de uma maneira muito concentrada em termos do papel dos intelectuais. Muitos de nós que temos estado envolvidos nisto há algum tempo vivemos o fenómeno muito positivo de todo um setor dos intelectuais ter, num certo sentido, “desertado” da classe deles e vindo para o lado das massas dos oprimidos do mundo. Mas não poucos deles recuaram dessa posição — isso é a outra coisa que pode acontecer, a maneira negativa como esta contradição pode ser resolvida. Isto assume uma dimensão muito mais plena, e por vezes muito mais aguda, numa situação em que já tenha sido estabelecida a ditadura proletária e se tenha enveredado pela via socialista. E isto tem a ver com toda a questão do caráter e papel da própria ditadura do proletariado, cuja compreensão foi ainda mais desenvolvida com o novo comunismo.

Coloquemos a questão de base: Porque há necessidade dessa ditadura? Lembro-me de, já há alguns anos, ter havido um debate com um desses social-democratas, em que ele disse: “Porque é que querem começar por falar numa ditadura, estão apenas a colocar-se nesse caminho de haver uma ditadura. Porque é que não falam noutra coisa, em alguma outra maneira de fazer o que é necessário fazer?” Isto faz-nos regressar uma vez mais à analogia com a evolução no mundo natural, e à profunda afirmação de Marx de que as pessoas fazem a história, mas não o fazem de nenhuma das maneiras que desejariam; fazem-no tendo em conta as condições materiais que lhes são “legadas” pela velha sociedade — condições que foram transformadas, em grande medida, mas ainda apenas de uma maneira inicial, através do processo de derrube da velha ordem. Então, isto é uma espécie de noção idealista: “Porque é que simplesmente não apresentam uma maneira de o fazer sem que haja uma ditadura?” Ora bem, não. A ditadura do proletariado é necessária porque o ponto de partida é tudo o que está concentrado naquelas “4 Todas”, que ainda não foram transformadas, está-se a lidar com uma situação em que, em grande medida, as condições materiais, não só nessa nova sociedade socialista mas no mundo no seu conjunto, estão a trabalhar contra essa transformação. Nesta nova sociedade, e especialmente nos momentos em que as contradições se colocam agudamente, a espontaneidade — não apenas por parte de um grupo de “usurpadores do poder” no topo, mas por parte de significativos setores das massas populares, incluindo entre aquelas que sofreram o pior na velha sociedade — vai ser no sentido de regressar à velha sociedade. Então, tem de haver um sistema de governo que mantenha as coisas na via socialista ao longo de todas as voltas e reviravoltas e das contradições que se manifestem aguda e repetidamente.

Isto está obviamente em conflito fundamental com a ideia da democracia como meta mais elevada — a democracia como a mais elevada expressão política da interação humana e das relações sociais. Aqui é muito relevante citar três frases que dão uma expressão concentrada a uma dimensão muito importante do novo comunismo, e que se referem diretamente a esta idealização da democracia:

Num mundo marcado por profundas divisões de classe e desigualdade social, falar em “democracia” sem falar na natureza de classe dessa democracia e que classe que ela serve, não faz sentido, ou pior que isso. Enquanto a sociedade estiver dividida em classes não pode haver “democracia para todos”: uma classe ou outra irá dominar, e defender e promover o tipo de democracia que sirva os interesses e os objetivos dela. A questão é: que classe irá dominar e se o governo dela, e o sistema de democracia dela, irão servir para a continuação das divisões de classe e das correspondentes relações de exploração, opressão e desigualdade, ou se levarão à abolição delas.57

Reparem no que se diz aqui. Não se diz simplesmente “que classe irá dominar e se o governo e sistema de democracia dela irão servir para a continuação, ou a abolição, das divisões de classe” e por aí adiante. Diz-se: “irão servir para a continuação (...) ou levarão à abolição”. Logo aí há um reconhecimento de que é necessário todo um processo para se conseguir aquelas “4 Todas”. Ao incluir a palavra “levarão” está-se a salientar que isto é todo um processo; e isto traz-nos de volta à questão — uma questão crucial desenvolvida por Mao — de que, ao longo de todo este processo, há a base para que isto seja invertido, para que o socialismo seja derrubado e o capitalismo restaurado.

E, como foi salientado antes, com a abolição das divisões de classe e das correspondentes relações de exploração, opressão e desigualdade, com a realização do comunismo em todo o mundo, virá a abolição da democracia — a sociedade humana avançará para além das condições em que a democracia tem sentido, propósito ou necessidade. Ora, porque é que é assim? Será que isso significa que um benévolo grupo de ditadores irá acumular cada vez mais poder para si e assim levar ao comunismo e, quase como os reis-filósofos de Platão, irá servir de uma maneira perfeita, ou servir da melhor maneira possível, os interesses das massas populares? Não, significa que as instituições e construções sociais, se se quiser, que são representativas da democracia e necessárias para proteger os interesses de uma parte da sociedade contra outra, deixarão de ser necessárias porque se terá eliminado a base material para a exploração e a opressão e se terá transformado a maneira de pensar em que uma parte da sociedade consideraria que o que serviria os seus interesses seria oprimir e explorar as outras partes da sociedade, e portanto se empenharia nisso. Definitivamente não significa que as pessoas não terão nenhum papel no governo da sociedade, ou que de alguma maneira a sociedade não precisa de ser governada. Mas significa que as instituições, os processos e as construções formais da democracia, como expressão da superstrutura de uma sociedade dividida em classes, deixarão de ser necessários. Continuará a haver necessidade de um governo. Continuará a haver instituições. Mas a institucionalização dos meios para proteger uma parte da sociedade contra outra — e para assegurar que a vontade do povo é realizada (por assim dizer) — deixará de ser necessária, e a democracia, nesse sentido, irá definhar. Isto é muito importante em termos do desenvolvimento da compreensão do que está envolvido em realmente se chegar ao comunismo e do que está envolvido quando isso for conseguido.

Em “Uma abordagem científica do maoismo, uma abordagem científica da ciência”58 (que está incluído em Observações sobre Arte e Cultura, Ciência e Filosofia) fiz o comentário de que, provavelmente, depois de algum tempo na sociedade comunista, as pessoas irão deixar de falar no comunismo. Isso está relacionado com a questão do definhar da democracia. Fiz uma analogia com a situação em que uma pessoa está doente e, por fim, fica bem: habitualmente não repara no momento em que fica bem. Passado algum tempo, dá-se conta: “Ah, já não me sinto doente.” A analogia é que, assim que entrarmos no comunismo e for isso que vigorar, e quando depois estivermos a lidar com as contradições que irão surgir quando se realizarem as “4 Todas”, a ideia do comunismo estará então de tal maneira assumida que deixará de ser algo de que as pessoas falarão muito. Isto é uma outra maneira de abordar a questão do definhar da democracia. Portanto, há aqui algo mais em que pensar.

Foi Mao que sistematizou a compreensão da necessidade da continuação da revolução sob a ditadura do proletariado. Isto baseou-se na análise e síntese dele daquilo de que tenho vindo a falar aqui sobre as contradições remanescentes que existem na sociedade socialista — e, num sentido mais geral, num mundo que durante muito tempo continuará a ser dominado por imperialistas e outras classes exploradoras, e em que as relações de exploração e opressão continuarão a ser as relações dominantes. A formulação de Mao da necessidade de continuação da revolução sob a ditadura do proletariado inclui o reconhecimento de que, nas condições do socialismo, especialmente depois de se ter passado as primeiras etapas, o perigo e as forças para a restauração capitalista já não residem principalmente na classe burguesa derrubada e nos representantes abertos dela, mas nos elementos burgueses recém-emergidos, e de uma maneira concentrada no interior do próprio partido comunista, especialmente nas suas mais altas fileiras. São estas pessoas que têm um papel desproporcionado na determinação do rumo da sociedade. O maior e mais concentrado perigo de restauração capitalista reside entre as pessoas que estão no topo desta sociedade, por assim dizer — e, sim, continuará a haver um topo da sociedade, continuará a ser uma sociedade marcada por divisões sociais e de classe, ainda não terão sido realizadas as “4 Todas”, estará de facto em marcha todo um longo processo de transformação para as realizar, não apenas dentro desse país específico, mas à escala mundial. Mao fez a seguinte afirmação: Está-se a fazer a revolução e não se sabe onde está a burguesia. Ela está exatamente dentro do partido comunista, salientou ele, sobretudo entre os seus altos dirigentes.

Um dos importantes discernimentos em relação a isto foi o reconhecimento de que diferentes forças políticas, incluindo no partido comunista, são representativas de diferentes relações de produção na sociedade. Não é que os revisionistas — as pessoas que se autodenominam “comunistas” mas que de facto estão na via capitalista — sejam capitalistas no sentido comum, ou imediatamente operativo, de estarem a gerir uma fábrica segundo princípios capitalistas (embora isso possa estar a acontecer). Mas a essência disto é que a perspetiva, o método e a abordagem de uma pessoa, e as políticas que fluem disso, representam — pelo menos objetivamente — um tipo ou outro de relações de produção. E durante a transição socialista, é possível ir-se por uma via ou por outra. É possível adotar um conjunto de relações de produção ou outro; e, uma vez mais, a espontaneidade exerce uma forte pressão para o regresso às velhas relações, às relações de exploração e opressão.

Tudo isto foi um muito importante avanço histórico que Mao fez e, com o novo comunismo, isto foi retomado e ainda mais sistematizado e desenvolvido com base nele. Como está formulado na Constituição para a Nova República Socialista na América do Norte, a ditadura do proletariado não significa a ditadura de proletários individuais nem de pessoas que falam em nome do proletariado, antes é essencialmente definida pelo seu conteúdo e papel. A seguinte declaração do Preâmbulo dessa Constituição afirma isto muito claramente:

a ditadura do proletariado, (…) no seu caráter essencial e nos seus princípios, estruturas, instituições e processos políticos básicos, deve dar expressão e servir os interesses fundamentais do proletariado, uma classe cuja exploração é o motor da acumulação da riqueza capitalista e do funcionamento da sociedade capitalista e cuja emancipação da sua condição explorada só pode ser conseguida através da revolução comunista, com o seu objetivo de abolir todas as relações de exploração e opressão e de alcançar a emancipação de toda a humanidade. Em conformidade com isto, os órgãos e processos de governação deste estado socialista, a todos os níveis, devem ser veículos do avanço da revolução comunista; e, como dimensão-chave disto, devem fornecer os meios para que aqueles que foram explorados e oprimidos na velha sociedade — e que estiveram efetivamente excluídos do exercício do poder político e da governação da sociedade, bem como das esferas da atividade intelectual e do trabalho com as ideias em geral — participem cada vez mais nessas esferas, com o objetivo de transformar continuamente a sociedade em direção ao comunismo.59

Ora, aqui um anarquista diria que damos e tiramos — damos com uma mão e tiramos com a outra — porque isto não diz simplesmente que aqueles que foram explorados e oprimidos na velha sociedade devem ter o direito democrático a governar a nova sociedade. Diz que eles têm de ter direito a fazer isso — e, para o fazerem, a participar cada vez mais naquelas esferas de que antes estiveram excluídos —, mas depois há um “remate”, o qual de facto é de máxima importância: “com o objetivo de transformar continuamente a sociedade em direção ao comunismo”. Por outras palavras, isto tem um propósito e uma direção. Não é uma pretensa democracia pura sem conteúdo social — não pode existir nada como isso. Em vez disso, dá-se dentro de um certo quadro e com uma direção e um propósito definidos.

Isto está relacionado com algo muito importante que é salientado em O NOVO COMUNISMO: “Uma das coisas que devem ser realmente compreendidas sobre esta Constituição para a Nova República Socialista, nos termos mais fundamentais, é que esta Constituição lida com uma contradição muito profunda e muito difícil.” Reparem: “uma contradição muito profunda e muito difícil” — a contradição “em que, por um lado, a humanidade realmente precisa da revolução e do comunismo; mas, por outro lado, nem toda a humanidade quer isso durante o tempo todo, incluindo na sociedade socialista”60. E depois passa a ampliar isto, discutindo a profunda importância de que não se pode chegar ao comunismo apontando armas às massas populares e dizendo: “Isto serve os vossos interesses, pelo que têm de ir por este caminho”, e então, com base nisso, obrigando-as a fazer marchas forçadas. Por outro lado, de cada vez que há um ímpeto espontâneo para regressar à velha sociedade, não se pode simplesmente dizer: “Muito bem, é isso que as pessoas querem, então vamos lá, e depois talvez vamos ver se podemos, de alguma maneira, derrubar o sistema que acabámos de deixar que se restaurasse e que, para começar, demorámos 50 anos a derrubar.” Não, não podemos fazer isso. Portanto, há aqui estes dois polos do que não podemos fazer, por assim dizer.

O que esta Constituição faz é fornecer os meios institucionais para se lidar com esta profunda contradição, ao longo de toda a complexidade e da repetida acuidade disto, ao possibilitar muita dissidência, fermento e por aí adiante, mas também tornando muito difícil que o velho sistema seja restaurado: permitindo essa possibilidade se, na sua esmagadora maioria, as massas já não quiserem o sistema socialista — mas, por outro lado, fazendo com que isso só possa ser efetuado em circunstâncias raras.

Uma vez mais, os anarquistas, e diversos sociais-democratas e outros, podem gritar que aqui estamos a trapacear — estamos a fingir ser democratas, mas na realidade estamos a ser ditatoriais, estamos novamente a dar com uma mão e a tirar com a outra. Mas, uma vez mais, a questão é que não existe essa coisa da democracia pura para todos, sem conteúdo social e de classe. E, sim, nós temos a ousadia, e indo mais diretamente ao assunto a ciência, para dizer que podemos determinar objetivamente quais são os interesses fundamentais das massas populares, e que vamos liderar a sociedade nessa direção sem, no entanto, o fazermos de maneira a que todos façam marchas forçadas nessa direção, antes proporcionando bastante fermento e dissidência e, como diz a Constituição, com as pessoas a irem em diferentes direções e depois a trabalhar — e é aqui que entra aquilo a que me tenho referido como “ficarmos à beira de ser esticados e esquartejados” — a trabalhar para “pôr os nossos braços à volta de tudo isso”, para liderar tudo isso, num caminho alargado, através de muitos trilhos divergentes, em direção ao objetivo do comunismo, mas não pondo os nossos braços à volta disso e apertando e tirando-lhe a vida. Isto leva-nos diretamente à questão levantada por Ardea Skybreak em Ciência e Revolução61 sobre a analogia com montar um cavalo e, por um lado, não segurar as rédeas com demasiada força e, por outro lado, não deixar as rédeas tão soltas que as coisas vão para todos os lados possíveis e, em última instância (ou talvez não em tão última instância), regressam ao velho caminho.

Isto é um método chave que integra e perpassa toda a Constituição para a Nova República Socialista na América do Norte: como lidar com esta contradição entre o que se pode determinar cientificamente — sim, cientificamente — que corresponde aos interesses fundamentais das vastas massas populares (as pessoas antes oprimidas, mas também, em última instância, toda a humanidade) e, por outro lado, trabalhar através das contradições sem segurar as rédeas com demasiada força nem simplesmente largá-las e deixar que as coisas vão para onde a espontaneidade as levar, que será imediatamente de regresso ao capitalismo.

Em termos do papel do partido no estado socialista, como é deixado claro na Constituição para a Nova República Socialista na América do Norte, nesta visão e modelo para uma sociedade radicalmente nova, o estado não é uma extensão direta do partido e de facto idêntica a ele — não é o “paradigma do partido-estado” tal como é descrito em várias teses anticomunistas. O papel dirigente do partido em relação a este estado, e à sociedade em geral, não é redutível, nem se exprime principalmente em termos de o partido a exercer um predomínio organizativo nas várias instituições do estado. Em vez disso, ainda que haja relações definidas e mecanismos organizativos que dão expressão ao papel dirigente do partido, particularmente em relação a certas instituições-chave, como as forças armadas, este papel dirigente é expresso mais essencialmente e acima de tudo em termos de uma influência ideológica e política e de levar a cabo a luta para continuamente ganhar as massas populares para os objetivos da revolução comunista. Além disso, como é discutido no Preâmbulo desta Constituição:

Como demonstrou a experiência histórica, a sociedade socialista — durante um considerável período de tempo — contém, e de facto regenera, elementos de exploração, desigualdade social e opressão que foram inevitavelmente herdados da velha sociedade e que não podem ser extirpados e abolidos todos de uma só vez, nem logo após o estabelecimento do estado socialista. Além disso, é provável que haja um período prolongado em que surjam novos estados socialistas numa situação em que estarão cercados, num grau ou noutro, por estados imperialistas e reacionários, os quais continuarão a exercer uma significativa influência e força, e mesmo que possam ocupar uma posição dominante no mundo durante algum tempo. Estes fatores irão, durante um longo período, repetidamente dar origem a forças dentro da própria sociedade socialista, bem como nas partes do mundo ainda dominadas pelo imperialismo e pela reação, que irão tentar derrubar qualquer estado socialista que exista e restaurar aí o capitalismo. E a experiência histórica também demonstrou que, como resultado dessas contradições, irão emergir forças dentro do próprio partido de vanguarda, incluindo nos seus níveis mais elevados, que irão lutar por linhas e políticas que de facto conduzem a minar o socialismo e à restauração do capitalismo. Tudo isto sublinha a importância de continuar a revolução na sociedade socialista, e de o fazer no quadro global da luta revolucionária em todo o mundo e com a orientação internacionalista de dar prioridade fundamental ao avanço desta luta mundial em direção à realização do comunismo, o que só é possível à escala mundial — e a importância da luta no interior do próprio partido, bem como na sociedade no seu conjunto, a fim de manter e reforçar o caráter e o papel revolucionários do partido, em conformidade com as suas responsabilidades de atuar como liderança da continuação da revolução em direção ao objetivo final do comunismo, e de derrotar as tentativas de transformar o partido no seu oposto, num veículo para a restauração da velha sociedade exploradora e opressora.62

Antes de concluir, quero falar sobre o partido antes da tomada do poder — os problemas de manter, nestas condições, o caráter e o papel dele como verdadeira vanguarda da revolução, de levar a cabo os preparativos necessários e, a seguir, com o desenvolvimento das condições necessárias, de levar a cabo o derrube da ditadura da classe (ou classes) exploradora, com o fim de estabelecer a ditadura do proletariado e levar adiante a transformação da sociedade rumo ao objetivo final de alcançar as “4 Todas” à escala mundial.

Além do que mostrou a experiência da sociedade socialista, a experiência também mostrou que, sob o domínio das classes exploradoras — em termos essenciais, a ditadura da burguesia — e particularmente quando, como tem sido geralmente o caso, mesmo depois de a vanguarda comunista revolucionária ter sido formada, há um período prolongado em que a burguesa continua no poder, a influência do sistema existente sobre essas condições, não apenas dentro do país mas no mundo inteiro, pode ter um significativo efeito de deterioração do partido que está a fazer esforços em direção ao derrube deste sistema. Isto tem tudo a ver com a razão porque muitíssimos partidos acabam por sair da via revolucionária e ou por se dissolver no nada ou ainda por se transformar em miseráveis seitas reformistas.

Portanto, este é outro problema histórico com que se tem de lidar. Na história recente dos Estados Unidos, tem havido aquilo a que me tenho referido como “estas décadas terríveis”, em que não só a burguesia se tem mantido no poder, como a agitação revolucionária da década de 1960 e início da década de 1970 foi suprimida, dissipada e invertida num grau significativo. Não se trata apenas de que a burguesia “se tenha vingado”, para usar esta expressão, dos países socialistas onde eles existiram e que tenha aproveitado a restauração do capitalismo, num país como a China, para empilhar calúnias contra o comunismo. Mas também, num sentido mais vasto, tentou vingar-se de todas as revoltas radicais positivas ocorridas nos Estados Unidos, e no mundo em geral, ao longo desse período da década de 1960 e início da década de 1970. E, com a mudança de relações não só nos Estados Unidos, mas também a nível internacional, e com o recuo da agitação revolucionária e dos sentimentos revolucionários que caracterizaram esse período, como fenómeno de massas, temos vindo a pagar desde então, em termos das massas populares e daquilo a que elas foram submetidas, aqui e em todo o mundo, pagando num sentido real por não termos conseguido manter as coisas até uma verdadeira tentativa de revolução para derrubar o sistema existente e fazer nascer um sistema radicalmente diferente e melhor. Temos vindo a pagar por isso desde então, tanto as massas populares como as forças de vanguarda da revolução que é necessária.

Quando digo “não termos conseguido”, não o digo para nos autoflagelarmos. O movimento que emergiu nessa época foi um fenómeno muito positivo: houve nele correntes revolucionárias muito vigorosas que se refletiram na maneira de pensar e nos sentimentos de milhões de pessoas nos Estados Unidos no auge dessa agitação revolucionária; houve forças organizadas positivas, sobretudo aquelas que levaram à formação do Partido Comunista Revolucionário, EUA. Mas, nessa época, a organização, e até a compreensão, também eram muito primitivas. E no momento em que provavelmente se poderia ter desenvolvido uma situação revolucionária — se uma verdadeira vanguarda tivesse emergido e trabalhado as condições em direção a esse fim —, não houve o confluir de uma força de vanguarda que tivesse uma base, em termos de uma abordagem científica e das correspondentes linha e programa, e do desenvolvimento de laços entre as massas populares, que pudesse ter liderado uma verdadeira tentativa de fazer a revolução.

Não quero adotar uma posição determinista de dizer: “O que foi feito nessa época foi tudo o que se poderia ter feito, e o que aconteceu estava destinado a acontecer — as coisas eram muito primitivas, por isso não poderia ter havido uma revolução.” A questão é: temos de aprender com essa experiência e de trabalhar ativamente para acelerar enquanto se espera e não ficar numa situação em que desperdiçamos uma oportunidade se e quando essa oportunidade for criada. É isto que significa dizer-se que estamos a pagar por esta inversão. Não é para batermos nas nossas cabeças, mas para reconhecermos os fatores que colocaram obstáculos reais à revolução quando ela foi seriamente tentada, e as consequências de isso não ter acontecido. E, desde esse tempo, o funcionamento e influências do sistema opressor e da classe dominante e os seus pontos de vista têm vindo a influenciar as pessoas que antes se empenhavam por um mundo radicalmente diferente, incluindo entre as fileiras daqueles que ainda reivindicam a bandeira da revolução e do comunismo.

Foi por isso que houve uma necessidade profunda e premente de uma Revolução Cultural no interior do Partido Comunista Revolucionário, EUA, e foi por isso que apelei a que houvesse e que me tenho esforçado por a liderar. Esta é uma luta que está em curso, e há uma necessidade urgente de atrair e incorporar muitas forças novas para forjar ainda mais a força de vanguarda para a revolução que é necessária, com base no novo comunismo, para que de facto se leve a cabo a estratégia para a revolução de que aqui tenho vindo a falar.

Há lições que precisam de ser mais plenamente retiradas sobre um partido de vanguarda e o perigo de esse partido ser afastado da via revolucionária, não apenas quando ele já está no poder, mas também antes de as coisas chegarem ao ponto de realmente se avançar para a tomada do poder, de tal maneira que quando chegar o momento em que se possa trabalhar sobre as contradições objetivas para realmente se fazer avançar as coisas para uma situação revolucionária, já nem sequer se terá a força de vanguarda para se fazer isso. Isto é um problema objetivo. Não creio que ele resida no caráter do próprio partido de vanguarda. Antes, são as contradições da sociedade e do mundo em geral que se infiltram de uma maneira muito significativa nas fileiras desse partido; e tem de haver um reconhecimento, talvez maior do que tem havido, pelo menos até recentemente, das maneiras como isso opera, numa direção negativa, sobre o caráter desse partido, exercendo uma forte pressão para que ele saia da via revolucionária. De uma maneira mais essencial, isto não é um problema “institucional” em que, quase inevitavelmente, a existência e a dinâmica de uma instituição organizada se tornam “numa coisa em si e para si”; mas pode ocorrer o fenómeno de que, tomando por base que o objetivo da revolução foi efetivamente abandonado, em vez de o partido ser um instrumento para fazer a revolução, a existência e a dinâmica de manter um partido se tornam antes num substituto do processo de o fazer. E aqui, novamente, coloca-se agudamente a questão decisiva: A que “recorre” um partido quando é confrontado com as dificuldades da situação objetiva? — uma questão que se coloca de uma maneira concentrada em relação ao núcleo dirigente desse partido. Por todas estas razões, é necessário que haja uma maior ênfase em continuamente reabastecer e em continuamente ampliar e fortalecer ainda mais as fileiras da vanguarda revolucionária, através da contínua incorporação de novas pessoas, uma vez mais com base no novo comunismo, bem como continuar, de uma maneira ou de outra, as revoluções culturais no interior desse partido a fim de o manter na via revolucionária, de o manter a trabalhar para acelerar enquanto se espera, levando a cabo aqueles “três preparar”, trabalhando consistentemente para que surja, juntamente com o desenvolvimento do fator objetivo, o amadurecimento de uma situação revolucionária, e então aproveitando-a, e fazendo algo de bom com ela.


Uma sociedade radicalmente nova
na via para a verdadeira emancipação

Tenho-me referido muitas vezes à Constituição para a Nova República Socialista na América do Norte, e há uma série de importantes princípios e métodos que estão incorporados e são aplicados nessa Constituição, bem como nas observações sobre ela em O NOVO COMUNISMO. Há a questão de, por um lado, manter firmemente a ditadura do proletariado da maneira que a tenho vindo a discutir, enquanto, ao mesmo tempo, se aplica, nas condições do socialismo e da ditadura do proletariado, uma continuação da frente unida e, como princípio chave da implementação disso, se aplica corretamente a abordagem metodológica de base do “núcleo sólido com muita elasticidade baseada no núcleo sólido”. Juntamente com isso está aquilo que tem sido chamado o “conceito do paraquedas”: o reconhecimento de que, mesmo que as massas populares assumam a posição revolucionária num momento de aguda crise revolucionária, isso não significa que todas elas estarão com a revolução em cada momento do prolongado processo de transformação da sociedade em direção ao objetivo do comunismo, em última instância à escala mundial.

No passado, no movimento comunista, houve uma espécie de assumpção (declarada ou não) de que, porque as pessoas estão com a revolução num momento de aguda crise revolucionária na velha sociedade, então, quando tiverem tido a oportunidade de se libertar do capitalismo, nunca irão querer regressar a ele — estarão sempre com a revolução, aconteça o que acontecer. Mas é muito importante reconhecer — e este reconhecimento está incorporado e institucionalizado na Constituição para a Nova República Socialista na América do Norte — que isto não será sempre verdade. Isto deve-se a todas as contradições remanescentes que são transportadas para a sociedade socialista e que irão exercer pressões sobre as pessoas para que se regresse à velha sociedade, bem como a influência do mundo mais vasto que pode, durante algum tempo, continuar a ser dominado pelas forças imperialistas e outras forças reacionárias. Assim, a analogia do paraquedas — o “conceito do paraquedas” por analogia — é que, no momento de uma revolução total, as coisas tendem a se “fechar”, que as pessoas tendem a se unir em torno de uma vanguarda se esta tiver um programa que de facto possa lidar com o que as massas populares sentem agudamente ser necessário lidar nesse momento; mas isso não significa que todas elas estarão com a revolução numa marcha em linha reta ao longo de todo o caminho até ao comunismo, após a tomada do poder. Isto leva-nos de volta ao que foi destacado anteriormente em termos da profunda contradição com que a Constituição para a Nova República Socialista está a lidar — a contradição entre o facto de que o avanço para o comunismo corresponde aos interesses objetivos das massas da humanidade mas, mesmo na sociedade socialista, nem todas as massas querem isso, durante todo o tempo.

Esta é uma questão que é extremamente importante compreender, no caso das pessoas envolvidas numa revolução e particularmente das pessoas que lideram essa revolução. Para regressar à analogia com montar um cavalo, não reconhecer que as pessoas não irão todas simplesmente marchar juntamente com a revolução numa linha reta em direção ao comunismo levará a uma ou outra abordagem errada, seja a de segurar as rédeas com demasiada força, seja a de deixar que as rédeas estejam demasiado soltas — ou a saltar de uma abordagem para a outra.

E há um outro aspecto importante do “conceito do paraquedas”: Lenine fez a análise (e isso é abordado em “Sobre a possibilidade da revolução”) de que uma das características necessárias de uma situação revolucionária — particularmente num país imperialista como os Estados Unidos — é que aqueles a que ele se referiu como os “amigos fracos, hesitantes e indecisos da revolução”63 se revelam de pouca confiança, que os programas dos reformistas mostram ser incapazes de lidar não apenas com o que um não pequeno número de pessoas, mas as massas populares, aos milhões e milhões de pessoas, sentem urgentemente ser os problemas que precisam de ser imediatamente resolvidos. É, em grande parte, por isto que, nessa situação, “o paraquedas se fecha” e as pessoas se unem em torno do polo, a vanguarda organizada, da revolução. Mas depois, mesmo assumindo que a revolução realmente triunfe, desenvolve-se todo um novo conjunto de contradições, bem como a reafirmação — por vezes sob formas antigas, outras vezes sob formas novas — de contradições anteriormente importantes. E então “o paraquedas abre-se de novo”. E novamente aqui o princípio do “núcleo sólido com muita elasticidade baseada no núcleo sólido” torna-se crucialmente importante.

Também quero abordar sucintamente a questão da abundância e da revolução. Na história do movimento comunista tem havido uma aguda luta sobre o que se tem chamado a “teoria das forças produtivas”, por outras palavras, a ideia de que para haver socialismo tem de haver forças produtivas altamente desenvolvidas, em particular uma tecnologia altamente desenvolvida, e que assim que se tenha tomado o poder, a tarefa chave é, por isso, desenvolver a economia para reforçar a base para o socialismo. Isto foi o que prevaleceu na China após a morte de Mao. Uma (tristemente) célebre frase de Deng Xiaoping dizia que não importa se um gato é branco ou negro, desde que apanhe ratos — querendo dizer que não importa quais são os métodos que usamos desde que desenvolvamos a economia, podemos usar métodos capitalistas porque se desenvolvermos a economia isso irá fornecer a base material para o socialismo (esta é talvez a “melhor interpretação” do que Deng Xiaoping estava a advogar).

Lenine, quando liderava a Revolução Soviética, foi rotundamente atacado — uma vez mais, por “empurrar” as coisas — por ter tomado o poder “prematuramente” numa situação em que ainda não tinham surgido as condições para se construir o socialismo, segundo os críticos dele. Ele foi acusado em termos políticos de ter feito um putsch em vez de uma verdadeira revolução. E, juntamente com isso, muitos social-democratas e outros criticaram-no porque insistiam em que não existiam as condições para a construção do socialismo na União Soviética, que era um país tecnológica e economicamente atrasado. Lembro-me de alguém — um desses veteranos do movimento comunista desses tempos (pode ter sido Leibel Bergman, que menciono na minha autobiografia De Ike a Mao e para além disso64) — ter contado uma história sobre uma delegação da Alemanha que foi à União Soviética na década de 1930 para ver o que era o socialismo. Ora bem, eles estavam a passar por zonas rurais onde ainda havia latrinas exteriores, e uma das pessoas na delegação alemã (supostamente um socialista ou um comunista) foi ouvida a dizer: “O socialismo é um desperdício com estas pessoas. Nós temos uma economia muito mais avançada.” Portanto, havia este tipo de “críticas”, e Lenine respondeu a esta linha de críticas dizendo (isto foi algo que assinalei em Conquistar o Mundo?): Vocês dizem que nós precisamos de um certo nível de tecnologia para o socialismo; ora bem, porque é que não podemos tomar o poder primeiro e depois desenvolver a tecnologia? “Uau, isso é terrível, é um golpe de estado putschista, vai conduzir a horrores” e por aí adiante — foi dessa maneira que os social-democratas e os abertamente democratas burgueses se apressaram a atacar Lenine.

Mas, não obstante os oportunistas social-democratas, os chamados comunistas alemães, etc., há aqui uma verdadeira contradição. É necessário desenvolver as forças produtivas. Há uma relação dialética entre isso e transformar as relações de produção. Não se pode simplesmente “comunizar a pobreza”, como tem sido frequentemente colocada essa acusação. Fazendo isso não se irá emancipar as pessoas. Não se pode transformar aquelas “4 Todas” se não se levar a cabo o desenvolvimento da economia com uma crescente abundância. Se se permanecer no ponto em que as massas populares têm de gastar a maior parte das suas horas do dia a trabalhar muito intensamente num trabalho físico para desenvolverem a economia, de maneira nenhuma se irá acabar com o antagonismo entre o trabalho intelectual e o trabalho manual. Qualquer pessoa que trabalhe em qualquer tipo de função, e especialmente numa função que envolva um intenso trabalho físico, sabe que ao fim do dia está esgotada, se for isso o que está a fazer o dia todo. E, enquanto houver uma grande parte da sociedade que tem de exercer esse tipo de trabalho, isso tenderá a reproduzir a divisão, com o seu caráter potencialmente antagónico, entre aqueles que realizam este trabalho físico e aqueles que trabalham na esfera intelectual. Portanto, esta é uma questão crítica: como lidar corretamente com a relação dialética entre transformar as relações de produção e desenvolver as forças produtivas de maneira a que haja uma maior base material para superar as “4 Todas”, incluindo a divisão desigual — e pelo menos potencialmente opressora — do trabalho na sociedade, particularmente entre o trabalho intelectual e o trabalho físico.

Há uma importante discussão disto em O NOVO COMUNISMO, bem como em Pássaros e Crocodilos: como lidar corretamente com isto para que a revolução avance através de etapas, no próprio país socialista e no contexto da situação mundial mais vasta — e para que, ao longo de cada etapa deste processo, de facto eleve o nível das forças produtivas e da abundância relativa, enquanto ao mesmo tempo estreita as diferenças entre as pessoas no maior grau possível, sem ultrapassar o que é possível dada a base material que existe nesse momento. Esta é outra aguda contradição que tem de ser compreendida e, antes de tudo, tem de ser reconhecida, e depois tem de se ir trabalhar nela com uma abordagem científica, materialista dialética, incluindo o reconhecimento de que se está a fazer isto num contexto em que esse país socialista não existe como ilha isolada, mas num mundo mais vasto com o qual tem de interagir, incluindo a nível económico. Não pode ser absolutamente autossuficiente a nível económico, ainda que, como país socialista, tenha de ser estrategicamente autossuficiente a nível económico. Portanto, esta é outra questão importante que é abordada no livro O NOVO COMUNISMO e mais amplamente no desenvolvimento da nova síntese do comunismo.

Finalmente, há toda a questão de realmente se estar na via para a verdadeira emancipação. Tenho falado muito sobre a emancipação da humanidade, e também aqui há um avanço adicional na compreensão e na orientação comunistas. Uma vez mais, regressando à polémica com Ajith, aí sublinha-se:

Por baixo da aparente simplicidade das repetidas palavras de ordem de Avakian para sermos “emancipadores da humanidade” está uma compreensão complexa, abrangente, científica e profunda da sociedade humana contemporânea e do seu desenvolvimento histórico, da existência de antagonismos de classe e da base material e dos reflexos ideológicos e políticos deles, e da possibilidade e necessidade de transcender as divisões de classe através da revolução comunista.65

Por outras palavras, algumas pessoas podem dizer: “Emancipadores da humanidade, qual é a novidade? Marx já falava nisso. Com isso não há nenhuma nova síntese do comunismo.” Bem, o que é abordado de uma maneira concentrada nesta passagem da polémica com Ajith (que é da Parte III. “Posição de classe e consciência comunista”, onde se salienta que as duas não são idênticas) é uma polémica contra a reificação, entre outras coisas. Está a salientar-se que a posição de classe do proletariado (ou, mais amplamente, a posição social das massas oprimidas) não conduz automática e espontaneamente à consciência comunista. Tudo isto está estreitamente relacionado com o que se diz no Esboço sobre a nova síntese:

Epistemologia e parcialidade. Na relação entre ser-se científico e ser-se parcial, o principal é ser-se consistentemente científico, e é a base para se ser, correta e plenamente, parcial para com a revolução proletária e o seu objetivo do comunismo.66

Isto está relacionado com tudo o que eu discuti antes em relação à questão fundamental e à linha divisória entre se estar a proceder cientificamente e a lidar com a realidade tal como ela realmente é, e com o potencial dentro dela para a transformação em direção ao comunismo, ou ter-se uma noção idealista que se está a tentar impor à realidade, o que irá levar a erros graves e, em muitos casos, a desastres e até a horrores.

Compreender porque é que ser-se consistentemente científico é a base para se ser correta e plenamente parcial para com a revolução proletária e o seu objetivo do comunismo tem tudo a ver com compreender o pleno significado dessa afirmação da polémica com Ajith — de que há muita análise científica complexa e abrangente concentrada no apelo a que as pessoas sejam “emancipadores da humanidade”. E, por sua vez, isto tem tudo a ver com o que está concentrado na afirmação de que “Tudo o que é realmente verdade é bom para o proletariado, todas as verdades podem ajudar-nos a chegar ao comunismo.”

O objetivo desta revolução não é a vingança e inverter as posições dos oprimidos e dos opressores (“os últimos serão os primeiros, e os primeiros serão os últimos”). Aqui é muito relevante referir uma afirmação de Lenine, que disse que todos aqueles que abordam a revolução com a orientação de que “Eles tiveram a oportunidade deles, agora é a minha vez” — todos os que abordam a revolução dessa maneira fazem-no do ponto de vista da pequena burguesia. E não é preciso dizer que a abordagem da pequena burguesia não vai levar à realização das “4 Todas” nem à emancipação da humanidade. Ainda que por vezes o Lenine prático/político tenha atrapalhado o caminho do Lenine filosófico, no sentido discutido anteriormente, isto é uma afirmação muito importante de Lenine, porque aquilo a que ele se refere como o ponto de vista da pequena burguesia é uma poderosa influência espontânea, mesmo sobre as pessoas que não estão na pequena burguesia. Vemos isto repetidas vezes — o objetivo torna-se a vingança, torna-se algo afastado da transformação de toda a sociedade. Torna-se em “ter a minha oportunidade se puder ou, se não puder, pelo menos posso destruir uma outra pessoa”. Isso é muito pronunciado nesta sociedade, em particular neste momento, e mesmo as lutas que estão a lidar com contradições e relações de opressão muito reais e profundas podem ser desviadas para esse tipo de perspetiva e abordagem pela poderosa influência da espontaneidade e das relações prevalecentes nesta sociedade.

Isto leva-nos de volta à questão de que mesmo os movimentos que começam por visar ultrajes e injustiças muito importantes, e que levam a cabo uma luta contra eles, só podem continuar a ir para a direção em que precisam de ir, em última instância — e todas estas diferentes forças na sociedade que se estão a opor a várias formas de opressão só podem ser unidas de uma maneira duradoura e de progresso — com base numa abordagem comunista científica e no que esta revele ser a solução para os profundos problemas que a sociedade atual encarna e impõe. Com a perspetiva da pequena burguesia, nunca será possível lá chegar. O que é necessário é — num sentido não reificado, no sentido comunista — a perspetiva do proletariado, a perspetiva e a abordagem que correspondem aos interesses fundamentais do proletariado, o que envolve o reconhecimento de que só através da emancipação de toda a humanidade é possível emancipar cada setor específico dos explorados e oprimidos.

Em contraste com as motivações e aspirações estreitas e mesquinhas para fazer coisas como a vingança e “é a minha vez de ter uma oportunidade”, o objetivo da revolução comunista é, como se salienta em O NOVO COMUNISMO, “chegar a um mundo diferente, em que todos estes horrores para as massas populares já não existam67. O objetivo é a emancipação da humanidade — a abolição de toda a exploração e opressão, e dos correspondentes antagonismos entre seres humanos, e extirpar o terreno de que eles emergem, com a concretização do comunismo, em todo o mundo.

Compreender, sobre a base científica do comunismo — a começar com o avanço histórico realizado por Marx, e com o novo avanço histórico encarnado na nova síntese do comunismo —, a necessidade e a possibilidade da mais radical revolução da história humana: isto deveria levar a um compromisso apaixonado de trabalhar ativa e incansavelmente para tornar isto uma realidade. Como salientei em O NOVO COMUNISMO: “Esta é a nossa responsabilidade para com as massas populares do mundo que estão a sofrer de uma maneira tão terrível — e, o que torna tudo muito pior, a sofrer tão desnecessariamente”68.



Notas

1  Bob Avakian, THE NEW COMMUNISM: The science, the strategy, the leadership for an actual revolution, and a radically new society on the road to real emancipation [O NOVO COMUNISMO: A ciência, a estratégia, a liderança para uma verdadeira revolução e uma sociedade radicalmente nova na via para a verdadeira emancipação], p. 91 (Chicago, Insight Press, 2016) [Nota da Página Vermelha (NPV)]. Disponível em várias lojas online como ebook em inglês. Também disponível em:

2  Ibid., p. 390, op. cit. [NPV]

3  Bob Avakian, The New Synthesis of Communism: Fundamental Orientation, Method and Approach, and Core Elements—An Outline [A Nova Síntese do Comunismo: Orientação, Método e Abordagem Fundamentais, e Elementos Centrais — Um Esboço], verão de 2015. Disponível em:

4  Bob Avakian, O NOVO COMUNISMO: A ciência, a estratégia, a liderança para uma verdadeira revolução e uma sociedade radicalmente nova na via para a verdadeira emancipação.

5  Bob Avakian, BAsics, from the talks and writings of Bob Avakian [O BÁsico, das palestras e textos de Bob Avakian] (Chicago, RCP Publications, 2011). Disponível em:

6  Karl Marx, Teorias da Mais-Valia (Brasil, Difel, 1980), Cap. XXI, 2. Disponível em inglês em marxists.org/archive/marx/works/1863/theories-surplus-value/.

7  Ibid.

8  Bob Avakian, Making Revolution and Emancipating Humanity [Fazer a Revolução e Emancipar a Humanidade]

1ª Parte: “Beyond the Narrow Horizon of Bourgeois Right” [“Para além do horizonte estreito do direito burguês”]

2ª Parte: “Everything We’re Doing Is About Revolution” [“Tudo o que estamos a fazer tem a ver com a revolução”]

Uma palestra de Bob Avakian, publicada como série de artigos no jornal Revolution/Revolución nas edições n.os 105 a 120, com início a 21 de outubro de 2007. Também incluída em Revolution and Communism: A Foundation and Strategic Orientation [Revolução e Comunismo: Um Fundamento e Uma Orientação Estratégica], um panfleto do jornal Revolution/Revolución, 1º de Maio de 2008. Disponível em:

9  V. I. Lenine, O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo, Junho 1916, Cap. VIII, em Obras Escolhidas em Seis Tomos (Lisboa-Moscovo, Editorial “Avante!”-Edições Progresso, 1984). Disponível em marxists.org/portugues/lenin/1916/imperialismo/. [NPV]

10  David Brooks, “A Renaissance on the Right” [“Um renascimento na direita”], New York Times, 13 de abril de 2018. Disponível em nytimes.com/2018/04/12/opinion/renaissance-right-gop.html.

11  Bob Avakian, Democracy: Can’t We Do Better Than That? [Democracia: Será o Melhor Que Conseguimos?] (Chicago, Banner Press, 1986), p. 29.

12  Ibid.

13  Adam Goodheart, 1861: The Civil War Awakening [1861: O Despertar da Guerra Civil] (Alfred A. Knopf, 2011).

14  BA Speaks: REVOLUTION—NOTHING LESS! Bob Avakian Live [Fala BA: REVOLUÇÃO — E NADA MENOS! Bob Avakian ao vivo]. Filme de uma palestra proferida em 2012. Visualização, mais informações e pedidos de compra do conjunto de DVDs em revcom.us/en/ba-speaks-revolution-nothing-less e revcom.us/films/ (em inglês). Texto de apresentação em castelhano em revcom.us/a/512/habla-ba-revolucion-y-nada-menos-ahora-en-linea-es.html.

15  Edward E. Baptist, The Half Has Never Been Told: Slavery and the Making of American Capitalism [A Metade Que nunca Foi Dita: A Escravatura e a Construção do Capitalismo Norte-Americano] (Nova Iorque, Basic Books, 2014).

16  Bob Avakian, THE TRUMP/PENCE REGIME MUST GO! In the Name of Humanity, We REFUSE To Accept a Fascist America, A Better World IS Possible, A Talk by Bob Avakian [O REGIME DE TRUMP E PENCE TEM DE SE IR EMBORA! Em Nome da Humanidade, RECUSAMO-NOS a Aceitar Uns Estados Unidos Fascistas, Um Mundo Melhor É Possível, Uma Palestra de Bob Avakian]. Filme de uma palestra proferida em 2017. Disponível em inglês em revcom.us/a/512/see-and-share-this-talk-en.html e thebobavakianinstitute.org/film-talk-bob-avakian/. O texto em castelhano está disponível em revcom.us/avakian/film-trump-pence-regime-must-go/Bob-Avakian-el-regimen-de-trump-y-pence-tiene-que-marcharse-es.html.

17  Robert E. Rubin, “Philosophy Pays Off” [“A filosofia produz resultados”], New York Times, 1º de maio de 2018.

18  Robert E. Rubin, “‘America’s Bank’ by Roger Lowenstein,” [“‘O Banco dos Estados Unidos’ de Roger Lowenstein”], New York Times Book Review, 25 de outubro de 2015. Disponível em nytimes.com/2015/10/25/books/review/americas-bank-by-roger-lowenstein.html.

19  Bob Avakian, “On ‘Principled Compromises,’ and Other Crimes Against Humanity” [“Sobre os ‘acordos de princípios’ e outros crimes contra a humanidade”], jornal Revolution/Revolución n.º 419, 12 de novembro de 2015. Disponível em:

20  Karl Marx, O 18 de Brumário de Louis Bonaparte, Cap. III (Lisboa-Moscovo, Editorial Avante!-Edições Progresso, 1984, 2ª Edição). Disponível em marxists.org/portugues/marx/1852/brumario/. [NPV]

21  Bob Avakian, O NOVO COMUNISMO, p. 77, op. cit.

22  Karl Marx, Teorias da Mais-Valia, Cap. XXI, 2, op. cit.

23  Ibid.

24  Partido Comunista Revolucionário, EUA, “On the Possibility of Revolution” [“Sobre a possibilidade da revolução”], jornal Revolution/Revolución n.º 102, 23 de setembro de 2007. Também incluído em Revolution and Communism: A Foundation and Strategic Orientation [Revolução e Comunismo: Um Fundamento e Uma Orientação Estratégica], um panfleto do jornal Revolution/Revolución, 1º de Maio de 2008. Disponível em revcom.us/a/102/possibility-en.html (em inglês) e revcom.us/a/102/possibility-es.html (em castelhano).

25  Friedrich Engels, Anti-Dühring (Lisboa, Editorial Minerva, 1976). Disponível em marxists.org/portugues/marx/1877/antiduhring/. [NPV]

26  Karl Marx, O Capital, Livro Primeiro, 23º Cap., 4. (Moscovo-Lisboa, Edições Progresso-Editorial Avante!, 1990). Disponível em marxists.org/portugues/marx/1867/capital/.

27  Karl Marx, “K. Marx a Joseph Weydemeyer” (5 de março de 1852), em Marx, Engels e Lenine, Sobre a Ditadura do Proletariado, p. 9 (Lisboa, Publicações Nova Aurora, 1975). [NPV]

28  Ishak Baran e K.J.A., “Ajith — Um retrato do resíduo do passado”, revista Demarcations: A Journal of Communist Theory and Polemic [Demarcações: Uma revista de teoria e polémica comunistas] n.º 4, inverno de 2015, p. 49. Disponível em:

29  Bob Avakian, Birds Cannot Give Birth to Crocodiles, But Humanity Can Soar Beyond the Horizon [Os Pássaros não Podem Dar à Luz Crocodilos, mas a Humanidade Pode Voar para além do Horizonte, também referido no texto como Pássaros e Crocodilos] (Chicago, Insight Press, 2014). De uma palestra proferida em 2010. Disponível como ebook em inglês em insight-press.com/site/epage/152002_664.htm. Também disponível em revcom.us/avakian/birds/birds01-en.html (em inglês) e revcom.us/avakian/birds/birds01_toc-es.html (em castelhano).

30  Bob Avakian, “‘Preliminary Transformation into Capital’... And Putting an End to Capitalism” [“‘Serem previamente transformados em capital’... e pôr fim ao capitalismo”], jornal Revolution/Revolución n.º 265, 8 de abril 2012 [NPV]. Disponível em:

31  Karl Marx, As Lutas de Classes em França, 1848-50, reproduzido em Marx, Engels e Lenine — Sobre a Ditadura do Proletariado (Lisboa, Publicações Nova Aurora, 1975). Disponível numa tradução diferente em marxists.org/portugues/marx/1850/11/lutas_class/. [NPV]

32  The Bob Avakian Institute, Bob Avakian (BA)–Official Biography [Bob Avakian (BA) — Biografia Oficial], 2017. Disponível em:

33  Partido Comunista Revolucionário, EUA, “Six Resolutions of the Central Committee of the Revolutionary Communist Party, USA–January 1, 2016” [“Seis resoluções do Comité Central do Partido Comunista Revolucionário, EUA — 1 de janeiro de 2016”]. Disponível em:

34  Bob Avakian, Conquer the World? The International Proletariat Must and Will [Conquistar o Mundo? Dever e Destino do Proletariado Internacional], revista Revolution/Revolución n.º 50, dezembro de 1981/janeiro de 1982. Disponível em:

35  Bob Avakian, “Uma conversa de Bob Avakian com alguns camaradas sobre epistemologia: Sobre conhecer e transformar o mundo”, jornal Revolutionary Worker/Obrero Revolucionario (agora Revolution/Revolución) n.º 1262, 19 de dezembro de 2004. Incluído em Observations on Art and Culture, Science and Philosophy [Observações sobre Arte e Cultura, Ciência e Filosofia] (Chicago, Insight Press, 2005), p. 43-64. Disponível em:

36  Mao Tsétung, “Contra o estilo de clichê do partido”, 8 de fevereiro de 1942, Obras Escolhidas de Mao Tsétung, Tomo III, 2ª Edição, p. 67-93 (Pequim, Edições em Línguas Estrangeiras, 1975). Disponível em marxists.org/portugues/mao/1942/02/08.htm. [NPV]

37  Bob Avakian, “Uma conversa de Bob Avakian com alguns camaradas sobre epistemologia: Sobre conhecer e transformar o mundo”, em Observações sobre Arte e Cultura, Ciência e Filosofia, p. 55-56, op. cit.

38  Bob Avakian, "Fundamental and Principal Contradictions on a World Scale" [“Contradições fundamental e principal à escala mundial”], Revolutionary Worker/Obrero Revolucionario (agora Revolution/Revolución) n.º 132, 27 de novembro de 1981, republicado no n.º 172, 17 de setembro de 1982. Citado em Raymond Lotta, “Sobre a ‘força motriz da anarquia’ e a dinâmica da mudança — Um debate agudo e uma polémica urgente: A luta por um mundo radicalmente diferente e a luta por uma abordagem científica da realidade”, Demarcations: A Journal of Communist Theory and Polemic n.º 3, inverno de 2014. Disponível em:

39  Ibid.

40  Jonathan Swift, As Viagens de Gulliver (Lisboa, Relógio de Água, 2010). [NPV]

41  Bob Avakian, The Problem, the Solution, and the Challenges Before Us [O Problema, a Solução e os Desafios Que Enfrentamos], uma palestra de Bob Avakian, jornal Revolution/Revolución n.º 6, 31 de Agosto de 2017. Disponível em:

42  Mao Tsétung, “Palestra sobre Questões de Filosofia”, 18 de agosto de 1964, em Stuart Schram, Mao Tsé Tung sem Artifícios, p. 159 (Alfragide-Damaia, Edições Acrópole, 1976). Disponível em inglês em marxists.org/reference/archive/mao/selected-works/volume-9/mswv9_27.htm. [NPV]

43  Ardea Skybreak, Of Primeval Steps and Future Leaps: An Essay on the Emergence of Human Beings, the Source of Women’s Oppression, and the Road to Emancipation [Sobre os Passos Primevos e os Saltos Futuros; Um Ensaio sobre o Surgimento dos Seres Humanos, a Fonte da Opressão da Mulher e o Caminho para a Emancipação] (Chicago, Banner Press, 1984).

44  Bob Avakian, Communism and Jeffersonian Democracy [O Comunismo e a Democracia Jeffersoniana] (Chicago, RCP Publications, 2008), p. 59-62. Disponível como panfleto (encomendas através da editora RCP Publications em revcom.us/en/bob_avakian/collected-works). Também disponível em:

45  Ibid.

46  Partido Comunista Revolucionário, EUA, “Seis resoluções do Comité Central do Partido Comunista Revolucionário, EUA — 1 de janeiro de 2016”, op. cit.

47  Comité Central do Partido Comunista Revolucionário, EUA, “HOW WE CAN WIN, How We Can Really Make Revolution” [“COMO PODEMOS VENCER, Como podemos realmente fazer uma revolução”], jornal Revolution/Revolución n.º 457, 19 de setembro de 2016, atualizado a 24 de setembro de 2017. Disponível em:

48  Bob Avakian, Why We Need An Actual Revolution, And How We Can Really Make Revolution [Porque Precisamos de Uma Verdadeira Revolução, e como Concretamente Podemos Fazer a Revolução], vídeo de uma palestra proferida em 2018. Disponível em:

49  Organização Comunista Revolucionária, México (OCR,M), “¿Comunismo o nacionalismo?”, Demarcations: A Journal of Communist Theory and Polemic, n.º 4, inverno de 2015. Disponível em:

50  Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto do Partido Comunista, 1848 (Lisboa, Publicações Nova Aurora, 1976). Disponível numa tradução diferente em marxists.org/portugues/marx/1848/ManifestoDoPartidoComunista/. [NPV]

51  V. I. Lenine, Que Fazer?, 1902 (Lisboa, Editorial Estampa, 1973, 2ª ed.). Disponível numa tradução diferente em marxists.org/portugues/lenin/1902/quefazer/. [NPV]

52  Bob Avakian, Fazer a Revolução e Emancipar a Humanidade, 2ª Parte: “Tudo o que estamos a fazer tem a ver com a revolução”, op. cit. Esta 2ª Parte começa com os seguintes seis parágrafos:

O “que fazerismo enriquecido”

Acelerar enquanto se espera — não nos vergando à necessidade

Agora quero falar sobre o “que fazerismo enriquecido” e o papel dele na construção de um movimento revolucionário e comunista. Quero começar por rever alguns pontos importantes relativos a toda a orientação e abordagem estratégica de “acelerar enquanto se espera” pelo desenvolvimento de uma situação revolucionária num país como os Estados Unidos.

Falei anteriormente sobre a perspetiva e a abordagem do “realismo determinista”*** revisionista que, entre outras coisas, envolve uma abordagem passiva à realidade objetiva (ou à necessidade objetiva), que vê o fator objetivo como puramente objetivo — e puramente “externo”, se quiserem — e não capta a relação dialética viva entre os fatores objetivo e subjetivo e a capacidade deste último (o fator subjetivo — as ações conscientes das pessoas) de reagir de volta e transformar o primeiro (o fator objetivo — as condições objetivas). Por outras palavras, este “realismo determinista” não capta a orientação essencial, e a possibilidade, de transformar a necessidade em liberdade. Não capta realmente, ou plenamente, o caráter contraditório de toda a realidade, incluindo a necessidade com que somos confrontados em todos os momentos. Portanto, uma das características essenciais do “realismo determinista” é que ele rejeita como “voluntarismo” qualquer compreensão dialética da relação entre os fatores subjetivo e objetivo, e vê as coisas de maneiras muito lineares e indiferenciadas, como sendo essencialmente uniformes e sem contradição, em vez de as ver de uma maneira viva e dinâmica e em movimento e mudança.

Claro, é necessário não se cair no voluntarismo. Há muitas maneiras diferentes através das quais esse voluntarismo se pode expressar, conduzindo a vários tipos de, se quiserem, erros e desvios (normalmente “ultra-esquerdistas”) — incluindo sob a forma de cedência a impulsos infantilistas ou aventureiristas —, todos eles também extremamente nefastos. Mas — particularmente numa situação alargada ou prolongada em que ainda não emergiram as condições objetivas para a revolução (ou seja, para a luta total para a tomada do poder) — de longe o maior perigo, e um perigo reforçado por esta situação objetiva, é este tipo de realismo determinista que não compreende corretamente a relação dialética entre os fatores objetivo e subjetivo, e vê-os em termos estáticos, não-dialéticos e inalteráveis.

É verdade que não podemos, meramente através da nossa vontade, ou mesmo meramente através das nossas ações em si mesmas, transformar num sentido qualitativo as condições objetivas — para uma situação revolucionária. Isto não pode ser feito meramente agindo, ou reagindo, sobre as condições objetivas através da nossa iniciativa consciente. Por outro lado, uma vez mais uma frase de Lenine tem aqui uma importante aplicação. Em relação à aristocracia operária — os setores da classe operária nos países imperialistas que são, em não pequeno grau, subornados com os despojos da exploração e da pilhagem imperialistas em todo o mundo, e particularmente nas colónias —, Lenine salientou que ninguém pode dizer com certeza com que posição se irão alinhar esses setores mais “aburguesados” da classe operária no evento de uma revolução — quais deles irão estar com a revolução quando chegar o verdadeiro confronto, e quais irão alinhar com a contrarrevolução —, ninguém pode dizer exatamente como isso se irá desenvolver, insistiu Lenine. E aplicando este mesmo princípio, podemos dizer que ninguém pode dizer exatamente o que a iniciativa consciente dos revolucionários pode ser capaz de produzir, ao reagirem sobre a situação objetiva em qualquer momento dado — em parte porque ninguém pode prever todas as outras coisas que irão fazer todas as diferentes forças no mundo. Nenhuma compreensão de ninguém pode abranger tudo isso num dado momento. Podemos identificar tendências e padrões, mas há o papel do acidente, bem como o papel da causalidade. E há o facto de que, embora as mudanças no que é objetivo para nós não se irão concretizar inteiramente, ou talvez nem sequer principalmente, se “trabalharmos” sobre as condições objetivas (num sentidos direto, de um para um), ainda assim, o facto de as “trabalharmos” pode gerar certas mudanças dentro de um determinado quadro de condições objetivas e — em conjunto com, e como parte de, uma “mistura”, juntamente com muitos outros elementos, incluindo as outras forças a agirem sobre a situação objetiva segundo os próprios pontos de vista delas — isto pode, em determinadas circunstâncias, fazer parte da combinação de fatores que de facto resulta numa mudança qualitativa. E, repito, é importante salientar que ninguém pode saber exatamente como tudo isso se irá desenvolver.

A revolução não é feita através de “fórmulas”, nem de agir de acordo com noções e preconceitos estereotipados — é um processo muito mais vivo, rico e complexo que isso. Mas uma característica essencial do revisionismo (o falso comunismo que substitui uma orientação revolucionária por uma orientação gradualista e, em última instância, reformista) é decidir e declarar que, até que intervenha algum deus ex machina — um FATOR EXTERNO semelhante a um deus —, não pode haver nenhuma mudança essencial nas condições objetivas e o máximo que podemos fazer, em cada momento, é aceitar o quadro existente e trabalhar dentro dele, em vez de (como muito corretamente temos formulado), nos esforçarmos constantemente contra os limites do quadro objetivo e procurarmos transformar as condições objetivas no máximo grau possível, em cada momento, estando sempre atentos à possibilidade de que se conjuguem diferentes coisas que produzam (ou tornem possível a produção) uma verdadeira rutura qualitativa e um salto na situação objetiva.

Portanto, este é um ponto básico de orientação em termos da aplicação do materialismo, e da dialética, ao processo de acelerar enquanto se espera pelo surgimento de uma situação revolucionária. Não se trata apenas de que, num sentido moral abstrato, seja melhor acelerar do que apenas esperar — embora, claro, seja —, mas isto tem a ver com uma compreensão dinâmica do movimento e do desenvolvimento da realidade material e da interpenetração de diferentes contradições, e com a verdade de que, como salientou Lenine, todos os limites na natureza e na sociedade, ainda que reais, são condicionais e relativos, e não absolutos. (Mao também salientou este mesmo princípio fundamental ao assinalar que, dado que a variedade das coisas é vasta e que as coisas estão interconectadas, o que é universal num contexto é particular noutro.) A aplicação deste princípio ao que está aqui a ser discutido sublinha que é apenas relativamente, e não absolutamente, que as condições objetivas são “objetivas” para nós — são-no, mas não em termos absolutos. E, juntamente com isto, o que é externo numa determinada situação pode tornar-se interno, como resultado do movimento — e das mudanças causadas pelo movimento — das contradições. Portanto, se uma pessoa vê as coisas apenas de uma maneira linear, então só vê as possibilidades que lhe estão imediatamente à frente — é como se estivesse a usar uma espécie de palas nos olhos. Por outro lado, se tem uma correta abordagem materialista dialética, irá reconhecer que podem acontecer muitas coisas inesperadas, e tem de estar constantemente atenta a essa possibilidade, ao mesmo tempo que trabalha consistentemente para transformar a necessidade em liberdade. Portanto, repito, este é um ponto básico de orientação.

*** O tema do “realismo determinista” é abordado na 1ª Parte: “Para além do horizonte estreito do direito burguês” e, na publicação serializada da 1ª Parte, encontra-se em “O marxismo como ciência — em oposição ao materialismo mecânico, ao idealismo e à religiosidade”, no jornal Revolution/Revolución n.º 109, 18 de novembro de 2007. Disponível em revcom.us/a/109/makingrevolution05-en.html (em inglês) e revcom.us/a/109/makingrevolution05-es.html (em castelhano).

53  V. I. Lenine, O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo, op. cit. [NPV]

54  Constitution for the New Socialist Republic in North America (Draft Proposal) [Constituição para a Nova República Socialista na América do Norte (Projeto de Texto)]. Escrita por Bob Avakian e adotada pelo Comité Central do Partido Comunista Revolucionário, EUA, 2010 (Chicago, RCP Publications, 2010). Disponível em:

55  Friedrich Engels, A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado (Rio de Janeiro, Editorial Vitória, 1964). Disponível em marxists.org/portugues/marx/1884/origem/. [NPV]

56  Constituição para a Nova República Socialista na América do Norte (Projeto de Texto), p. 6, op. cit.

57  Bob Avakian, O BÁsico 1:22, op. cit.

58  Bob Avakian, “A Scientific Approach to Maoism, A Scientific Approach to Science” [“Uma abordagem científica do maoismo, uma abordagem científica da ciência”], em Observações sobre Arte e Cultura, Ciência e Filosofia, op. cit.

59  Constituição para a Nova República Socialista na América do Norte (Projeto de Texto), p. 3-4, op. cit.

60  Bob Avakian, O NOVO COMUNISMO, p. 178, op. cit.

61  Ardea Skybreak, SCIENCE AND REVOLUTION: On the Importance of Science and the Application of Science to Society, the New Synthesis of Communism and the Leadership of Bob Avakian, an Interview with Ardea Skybreak [CIÊNCIA E REVOLUÇÃO: Sobre a Importância da Ciência e da Aplicação da Ciência à Sociedade, a Nova Síntese do Comunismo e a Liderança de Bob Avakian. Uma Entrevista a Ardea Skybreak] (Chicago, Insight Press, 2015). Também disponível em:

62  Constituição para a Nova República Socialista na América do Norte (Projeto de Texto), p. 6-7, op. cit.

63  V. I. Lenine, “O Marxismo e a Insurreição, Carta ao Comité Central do POSDR(b)”, 26-27 de setembro de 1917, em Obras Escolhidas em Três Tomos, Tomo 2 (Lisboa-Moscovo, Edições Avante!-Edições Progresso, 1978). [NPV]

64  Bob Avakian, From Ike to Mao and Beyond: My Journey from Mainstream America to Revolutionary Communist, A Memoir by Bob Avakian [De Ike a Mao e para além disso: A Minha Jornada da América Convencional a Comunista Revolucionário, Uma Autobiografia de Bob Avakian] (Chicago, Insight Press, 2005).

65  Ishak Baran e K.J.A., “Ajith — Um retrato do resíduo do passado”, p. 19, op. cit.

66  Bob Avakian, A Nova Síntese do Comunismo: Orientação, Método e Abordagem Fundamentais, e Elementos Centrais — Um Esboço, op. cit.

67  Bob Avakian, O NOVO COMUNISMO, p. 6, op. cit.

68  Ibid.

 

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