Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 27 de Setembro de 2010, aworldtowinns.co.uk
Publicamos a seguir excertos editados de um artigo de Azar Drakhshan, uma activista que trabalha com a Organização 8 de Março de Mulheres do Irão e do Afeganistão. O artigo original em farsi está disponível em www.8mars.com. Uma outra versão resumida também surgiu na edição de Setembro da Haghighat, a publicação do Partido Comunista do Irão (Marxista-Leninista-Maoista).
Sobre a execução de Sakineh Mohammadi Ashtiani:
Uma mulher no centro das políticas nacionais e internacionais do sistema antimulher da República Islâmica do Irão
Por Azar Drakhshan
Sakineh Mohammadi Ashtiani foi condenada a um Qesas (castigo de vingança) pela morte do seu marido. Mas ela foi perdoada pela família do marido [e portanto, segundo a lei islâmica, considerada inocente]. Ela também foi condenada a 99 chicotadas e 10 anos de prisão por “relações ilícitas” com dois homens depois da morte do marido. Um dos homens foi condenado a 20 chicotadas e o outro a 40. Porém, alguns meses depois, o departamento de justiça iniciou um novo processo, acusando-a de ter cometido “adultério” quando o marido ainda estava vivo e condenando-a à morte por apedrejamento. Neste processo não houve nenhum homem acusado de adultério. Após um grande protesto internacional, as autoridades judiciais anularam a pena de apedrejamento e substituíram-na por execução [por enforcamento]. A partir do momento em que os advogados de Sakineh começaram a divulgar as notícias sobre a sua condenação, o destino dela ficou ligado à política internacional.
Muitos chefes de estado e altos responsáveis ocidentais, entre os quais a Secretária de Estado norte-americana Hillary Clinton e a Chanceler alemã Angela Merkel, protestaram contra esta condenação à morte por apedrejamento e declararam-na um indício do abuso de direitos humanos no Irão. A resposta do regime iraniano tornou claro que para eles a questão essencial já não é o que irá acontecer a Sakineh, mas sim que ela se tornou num símbolo no conflito mais vasto entre o Irão e o Ocidente. Ao mesmo tempo, o regime islâmico também mantém Sakineh como refém para se vingar de todas as mulheres e jovens que têm estado na vanguarda das recentes lutas e ousado pôr em questão os velhos e podres valores do sistema antimulher da República Islâmica.
A 11 de Agosto, a televisão da República Islâmica mostrou o que alegou ser uma gravação da confissão de Sakineh. Isto foi de facto uma confissão pelo regime islâmico de que queria transformar a vida e o destino de Sakineh num meio de reafirmar a sua autoridade dentro do país e também de levar a cabo a sua contenda política com as potências ocidentais. Para compreendermos os objectivos desta divulgação e mais essencialmente da abertura de um processo contra uma mulher oprimida e impotente como Sakineh, devemos revelar o que de facto está a ocorrer por trás dos bastidores.
Um dos mais importantes pilares das relações prevalecentes na sociedade de classes é a relação de poder entre homens e mulheres. Desde a fundação da República Islâmica do Irão e da declaração oficial de que as mulheres são inferiores e objecto de desdém e da negação dos seus direitos, conjugadas com um aumento dos direitos dos homens sobre as mulheres, o estatuto das mulheres tem tido um importante impacto noutras relações sociais do país. O decreto que torna obrigatório o uso do hijab (véu), a aprovação e implementação de leis medievais que estabelecem o pagamento de Dieh (dinheiro de sangue), o Qesas (castigo de vingança) e a morte por apedrejamento, tudo isto tem o objectivo de aplicar e impor essa inferioridade e torná-lo parte da ordem social global.
Embora seja verdade que o hijab obrigatório diga respeito à maioria das mulheres e que o apedrejamento e o Qesas afectem um número muito pequeno de mulheres, essa não é a questão principal. Todas estas medidas fazem parte de um todo. Elas são mutuamente complementares enquanto manifestações nas esferas legal, cultural, económica e ideológica do estatuto inferior das mulheres e da negação dos seus direitos. O enfraquecimento de qualquer um dos elos desta cadeia debilitará o seu todo. É por isso que, apesar dos protestos internacionais generalizados há mais de três décadas, os responsáveis do regime islâmico não estão preparados para abolir essas leis medievais.
Por outro lado, a repressão das mulheres tem a ver com mais que apenas a consolidação das actuais relações de poder e a protecção do sistema islâmico do Irão. Desde o início que o regime nunca fez segredo da sua ambição de criar um Islam Omats (Povo Islâmico) e exportar a revolução islâmica. A influência da República Islâmica noutros movimentos fundamentalistas no Médio Oriente não tem só um significado político, financeiro e militar, também tem um significado ideológico. Para esses movimentos, o Irão é um modelo do domínio islâmico. A sua bandeira própria é o hijab das mulheres.
Por isso, a repressão das mulheres não é apenas para consumo interno. Também representa um importante papel nas relações da República Islâmica com outros fundamentalistas islâmicos da região. O apoio desses grupos é uma importante vantagem para o regime islâmico nas suas negociações com as potências ocidentais cuja agressão e intervenção se centram actualmente no Médio Oriente. Como podemos ver, os corpos das mulheres estão desde o início no centro da batalha do clero para estabelecer e consolidar o seu poder no Irão e também um meio através do qual os fundamentalistas podem ajustar as suas relações com o sistema capitalista-imperialista dominante a nível global.
A crise nas relações entre o regime islâmico e as potências ocidentais está novamente a intensificar-se agora que o Irão se recusou a parar o seu enriquecimento de urânio. As potências ocidentais decidiram alargar as sanções económicas e políticas e tendem a apoiar o movimento da oposição verde no Irão. O regime iraniano fez reféns três cidadãos norte-americanos [os jovens “viajantes” que entraram no Irão]. Tudo isto tem tornado a crise ainda mais complicada. As potências ocidentais, dos EUA aos países europeus, querem no Irão um regime que seja aceitável para elas, porque a sua agressão e intervenção (e os planos concretos que querem implementar) na região não são possíveis sem a total cooperação do Irão. Aparentemente, esses estados decidiram agora substituir no Médio Oriente o Islão radical, como eles lhe chamam, por um Islão “moderado”.
Por seu lado, a reaccionária República Islâmica sabe muito bem que a verdadeira preocupação das potências ocidentais não é a vida de Sakineh, mas outras questões. Ainda há poucos meses, o regime iraniano executou cinco conhecidos presos políticos e os responsáveis ocidentais mantiveram-se calados.
A emancipação das mulheres é um critério pelo qual a liberdade de uma sociedade pode ser aferida, e claro que a sinceridade dos que alegam ser combatentes da liberdade se revela pela forma como abordam as formas de opressão das mulheres e a negação dos seus direitos. A condenação de Sakineh à morte por apedrejamento provocou protestos de pessoas conscientes, amantes da liberdade, progressistas, forças de esquerda e comunistas e também de activistas e organizações de mulheres. Todos eles estão a trabalhar arduamente, não só para impedirem o apedrejamento de Sakineh, como também para a libertarem da prisão de mulheres de Tabriz (noroeste do Irão) o mais cedo possível. A comunicação social, quer a que depende de alguma das grandes potências como a que tem os seus próprios objectivos políticos, noticiam regularmente a situação de Sakineh.
As perspectivas dos intelectuais religiosos e “reformistas verdes” sobre o apedrejamento
Uma semana antes da pretensa confissão de Sakineh ter sido mostrada na televisão, o movimento verde realizou uma conferência de “convergência do movimento verde das mulheres” em que figurava proeminentemente Zahra Rahnavard [esposa do líder verde e ex-primeiro-ministro Mir Hussein Mousavi]. Elas exprimiram a sua preocupação com os homens presos políticos em greve de fome e enviaram-lhes uma mensagem de solidariedade. Mas não disseram uma palavra sobre Sakineh e o seu apedrejamento. Zahra Rahnavard gosta de falar de uma “interpretação democrática das leis islâmicas”, mas ainda não falou da prática de sujeitar as mulheres a acusações judiciais de adultério e de as condenar à morte por apedrejamento, duas das questões mais amplamente discutidas no país e mais incandescentes a nível internacional.
Em geral, o movimento verde está a tentar colocar a questão do apedrejamento no quadro do que eles chamam novas interpretações dos decretos de Deus e das tradições iranianas. Por exemplo, o erudito islâmico Jila Shariat Panahi tem tentado usar citações de versículos do Alcorão para provar que o castigo islâmico adequado ao adultério (Zena) não é o apedrejamento mas sim no máximo cem lategadas com chicote.
O ponto de vista destes reformistas islâmicos é que eles não têm problema nenhum em criminalizar o adultério, eles pura e simplesmente têm diferenças quanto ao tipo de castigo que isso merece. A maioria deles parece pensar que cem chicotadas são uma substituição satisfatória do apedrejamento, dada à actual situação.
Alguns dos Grandes Aiatolas para cujas fátuas [pronunciamentos religiosos] algumas activistas do movimento das mulheres (como a “campanha para um milhão de assinaturas” e a actual “convergência verde”) olham à procura de legitimidade opõem-se ao apedrejamento de mulheres por razões muito próprias. Os Aiatolas Montazeri, Saneai e outros consideram o adultério imoral, vergonhoso e uma desgraça que merece castigo. Mas, devido ao conflito entre a lei islâmica e a tradição do país [o Zena é um conceito islâmico mas não um conceito iraniano tradicional], eles acham que a realização das execuções por apedrejamento deve ser temporariamente suspensa até [um evento messiânico chamado] “a chegada do 12º Imã”, ou até ser possível convencer as pessoas em relação a essa questão, ou ainda até que se encontre um castigo apropriado e mais actualizado.
Aparentemente, as mulheres intelectuais islâmicas e as suas autoridades religiosas são prisioneiras do fundamentalismo religioso. O chamado “Islão radical” que eles começaram por proclamar nos anos 80 não pode sequer abandonar esse princípio islâmico. Mas todo o conceito de adultério ou de considerar que uma relação é errada porque vai contra as leis religiosas é uma ideia retrógrada e obsoleta que não tem lugar no mundo de hoje. Não há nenhuma forma de “actualizar” nem de “reler” nem de, de alguma forma, tentar tornar moderno o Zena porque todo o conceito de adultério deve ser atirado para o caixote do lixo da história.
Não podemos concordar que haja algum progresso em substituir o apedrejamento por cem chicotadas, como defendem essas mulheres que nos anos 80 eram irmãs no Hezbullah [no Irão, “Partido de Deus”, a milícia do regime islâmico] e que, mais tarde, nos anos 90, tentaram provar que o Islão é uma religião libertadora para as mulheres. A sua compreensão mais elevada da igualdade de género foi pedir a igualdade no apedrejamento (quando os homens são apedrejados têm os pés presos numa cova escavada no chão para não poderem fugir, enquanto as mulheres são enterradas até aos ombros para nem sequer poderem mexer as mãos). Isto devia ser uma lição para as mulheres académicas das universidades ocidentais que foram tão vergonhosamente entusiásticas em relação ao que chamaram de “feminismo islâmico” na sua ânsia de encontrarem soluções locais (nativas) para os direitos e a igualdade das mulheres (segundo a sua “cultura” local).
Os iranianos dentro e fora do país e muita da opinião pública mundial opõem-se ao apedrejamento de Sakineh. Claro que têm razão em se oporem a esse acto brutal, mas isso não é o fim da questão. Há uma diferença entre oporem-se ao apedrejamento e oporem-se a todo o conceito retrógrado e obsoleto de se considerar que as mulheres devem sequer ser acusadas de adultério.
Os advogados de Sakineh estão correctamente a tentar que seja retirada a acusação específica de Zena mohsene [sexo “ilícito” durante o casamento, em contraste com a subcategoria do Zena de sexo “ilícito” antes ou depois do casamento] e a salientar que, no caso dela, essa acusação não pode ser provada. Porém, há uma diferença entre as actividades dos advogados dentro do quadro das leis de um país e os protestos gerais contra essa acusação e punição.
Temos que continuar o nosso esforço para salvar a vida de Sakineh e lançar vastas campanhas contra o sistema de “justiça” do regime islâmico e a pena de apedrejamento. Mas as lutas contra qualquer tipo de manifestação particular da opressão das mulheres podem e devem ser um terreno de luta pela abolição dessas leis e do sistema que essas leis reflectem e implementam. Elas podem e devem ser um terreno para elevar a consciência das mulheres e de toda a população. Elas podem e devem ser uma oportunidade para desafiar os valores e convicções retrógradas que são comuns entre as pessoas que muitas vezes partilham os valores e a ideologia da República Islâmica.
As nossas lutas contra a negação de direitos e a injustiça podem abrir caminho à criação de uma sociedade que a maioria das mulheres oprimidas quisesse. A luta e o sacrifício de cada mulher devem contribuir para a construção de uma sociedade onde nenhuma mulher seja forçada a um casamento não desejado e onde nenhuma mulher seja forçada a aguentar o inferno de um casamento desastroso sem direito a se divorciar nem à custódia dos seus filhos após o divórcio. Uma sociedade onde os casamentos não sejam um contrato em que uma mulher vende o corpo e a alma e onde nenhuma mulher seja punida por anular esse contrato. As mulheres têm que ter o tipo de segurança económica, política, cultural e social que lhes permita escolher voluntariamente o seu companheiro de vida e que, no caso de um casamento falhado, o possam anular livremente, em igualdade e sem qualquer dificuldade.
Ao mesmo tempo que lutamos pela vida de Sakineh, devemos pensar nas milhões de Sakinehs em todo o mundo. Uma delas é Ayesha (uma jovem afegã cujas orelhas e nariz foram cortados porque deixou o seu marido abusivo e regressou à casa dos pais). Outra é Atefa (uma adolescente do norte do Irão que foi abusada por um adulto que era um ex-Pasdar [os Guardas Revolucionários do regime] – depois de ter sido presa por isso, ou seja por ter tido uma relação antes do casamento, o juiz e a sua equipa violaram-na em grupo e depois forjaram uma certidão de nascimento falsa para provarem que ela era maior de 18 anos e a poderem enforcar rapidamente). E há tantas outras... Nós devíamos gritar: Não mais, já chega! O mundo já não pode tolerar mais estas brutalidades.
Este futuro pode ser criado porque as pessoas já tiveram a experiencia deste tipo de relações durante as revoluções socialistas do Século XX. Durante mais de três décadas, quando a União Soviética ainda era um estado socialista, as mulheres viveram aí a experiência de leis muito mais avançadas que na maioria dos países ocidentais dessa altura. Na China, onde antes da revolução socialista muitas mulheres eram literalmente escravas, com os seus pés amarrados no início da sua infância, o que muitas vezes as incapacitava permanentemente, para que os seus corpos se movimentassem de uma forma que os homens achavam graciosa e atraente, elas ousaram quebrar as cadeias da opressão e em pouco tempo conseguiram legalmente direitos iguais. Durante quase três décadas, até a revolução ter sido derrotada em 1976, elas viveram a experiencia de relações sociais avançadas que permanecem um exemplo de verdadeira emancipação e igualdade entre mulheres e homens. Nestes casos ainda havia um longo caminho a percorrer antes da completa libertação das mulheres e, enquanto primeiras experiências com um estado socialista, elas claro que sofreram de debilidades e limitações, mas o caminho para a libertação das mulheres só pode ser aberto com base nas lições dessas experiências.
Nós, mulheres, podemos e devemos ser a vanguarda da construção do socialismo, uma sociedade que se define não só pela abolição da opressão de género mas, ainda mais, uma sociedade a mover-se em direcção a acabar com todas as distinções sociais e de classe e com as ideias e tradições que a elas estão ligadas e que têm estado na base de milhares de anos de opressão e exploração em todo o mundo.