Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 6 de Junho de 2011, aworldtowinns.co.uk

O texto que se segue é o terceiro capítulo, e final, de um relato escrito por Samuel Albert para o SNUMAG. O primeiro capítulo, partes I e II, descrevia o que a revolta na Tunísia obteve e como ela aconteceu. O segundo capítulo discutia os factores subjacentes e activadores por trás dessa revolta.

Relato da Tunísia, IV e V: A actual situação e o que dela pode surgir

Por Samuel Albert

IV. A actual situação

As pessoas estão preocupadas — e “o povo” já não está unido

Mapa da Tunísia
(Clicar no mapa para ver o tamanho original)

Não é todos os dias que existe essa coisa do “povo”. Durante a revolta, houve um “povo” que deu a conhecer a sua vontade, não no sentido de todos os dez milhões de tunisinos nem sequer dos milhões que saíram às ruas, mas no sentido de que pessoas de classes sociais e tendências políticas e ideológicas conflituantes estavam unidas na sua determinação de se verem livres de Ben Ali, por um lado, e de que, por outro, os que apoiavam o regime ou não tinham a certeza já não estavam dispostos a tomar a palavra.

Agora, “o povo” começou a dividir-se de acordo com os interesses de classe das várias forças envolvidas, mesmo que o pensamento de quase toda a gente continue a ser contraditório. Milhões de pessoas continuam insatisfeitas, sobretudo entre as classes mais baixas e entre os operários. Isso é muito favorável a uma mudança social radical. Mas entre os factores que se atravessam no caminho dessa mudança estão não só a força persistente do sistema económico mundial e das suas classes dominantes locais, mas também alguns elementos do pensamento das pessoas e sobretudo a ausência de uma compreensão mais clara dos problemas fundamentais que as afectam. Algumas destas ideias contraditórias podem ser encontradas no que as pessoas têm dito em entrevistas.

— Spetla, uma cidade muito pequena no centro do país, entre Kasserine e Sidi Bouzid. O dono de uma banca de jornais e refrescos:
Não há mesmo nenhum emprego nesta cidade. Quem não cultiva a terra, a única forma que tem de ganhar a vida é o comércio. As pessoas daqui descem até à fronteira com a Líbia, compram alguns coisas feitas na China ou na Europa e regressam aqui para as venderem. Antes, não conseguíamos ganhar a vida porque as pessoas regressavam com apenas uma mochila de bens contrabandeados, enquanto Trabelsi, a mulher de Ben Ali, tinha contentores inteiros cheios de mercadorias trazidas para o país sem pagar taxas alfandegárias. Os contrabandistas locais não conseguiam competir com isso. Mas aqui nunca houve nenhuma manifestação.

Agora, Ben Ali e os Trabelsis foram-se embora, mas há uma guerra na Líbia e a fronteira está fechada. Por isso, as pessoas daqui estão a procurar trabalho no estrangeiro. Quando se ouve falar de todos esses tunisinos que “saltam o mar” e morrem para chegarem a Itália em pequenos barcos, somos nós. Agora temos liberdade mas não temos nenhuma forma de ganhar a vida.

— Um homem desempregado mais velho, na Avenida Bourguiba:
Estou desempregado há dez anos. Nem lhe consigo dizer como tenho conseguido alimentar a minha família. Tenho mulher e dois filhos; um trabalha na rua e outro tem sete anos e no próximo ano vai estudar. Não sei como sobrevivemos. Estudei em França e regressei para um bom lugar no departamento de saúde pública. O meu cunhado apoiava os islâmicos e eu fui despedido por causa disso. Desde então não tenho conseguido encontrar trabalho. Estou muito contente porque agora temos liberdade, mas a minha vida continua horrível.

— Um trabalhador grisalho mais velho e outros grevistas numa fábrica de tubos de betão reforçado, em Ben Arous:
Somos pobres. Isto quer dizer que não temos dinheiro. Sim, contribuímos para o movimento que derrubou Ben Ali. Quando ele viu a multidão a 14 de Janeiro, teve medo que atacássemos violentamente o palácio dele, pelo que ele e a família meteram-se num avião e fugiram. Ele era apoiado essencialmente pela França e pelos EUA. A França interveio militarmente na Líbia e na Costa do Marfim, mas nunca disse a Ben Ali que saísse.

Na nossa fábrica, tratavam-nos como escravos. Pagavam-nos menos que o salário mínimo. Agora temos liberdade, pelo que é natural que criemos um sindicato e tentemos obter a protecção da lei. Mas o governo ainda é uma máfia, paga pelos EUA e pela França.

O que esperamos da revolução? Esperamos o melhor. Até agora, não vimos nada, zero por cento de mudanças. Na realidade, as coisas estão pior do ponto de vista económico, e não melhor. Os patrões continuam a ser horríveis e teimosos. Todos nós queremos liberdade — liberdade de falar, liberdade de imprensa, liberdade de tudo. Será que a democracia significa que os empregadores têm todos os direitos? O novo governo é igual ao anterior. Ben Ali era um grande ladrão, mas nós vivemos sob o mesmo sistema durante 56 anos (desde a independência de França). A democracia não mudou tanto até agora, mas nós queremos que mude.

— Um estudante de 23 anos, numa concentração na Avenida Bourguiba:
É muito importante para mim o facto de agora termos liberdade. Foi para isso que fizemos a revolução. Mas quando é que os atiradores furtivos que dispararam sobre nós vão ser levados à justiça? Quem os está a proteger? Porque é que o governo nega que eles sequer existam? E porque é que a polícia tem direito a parar-me na rua e exigir saber porque é que eu estou a tirar fotos com o meu telemóvel? E a minha grande pergunta é: Porque é que as más pessoas acabam sempre por cima?

— Uma professora de química do ensino secundário, de meia-idade, num café de um centro comercial:
Decidi usar o hijab [neste caso, um lenço “moderno” para a cabeça] há cinco anos atrás. A minha mãe usou um daqueles lenços brancos antiquados mas a minha família não era cumpridora. Foi quando envelheci que me virei para o Islão. Eu ensino e o meu marido é professor e nós partilhamos todas as tarefas domésticas. Não sou uma pessoa que ache que as mulheres devem ficar em casa ou receber menos.

Os manifestantes enfrentam a polícia em Tunes a 14 de Janeiro 2011
Os manifestantes enfrentam a polícia em Tunes a 14 de Janeiro (Foto: Christophe Ena/AP)

Porque é que as pessoas como eu se estão a virar para a religião? Quando alguém está frustrado e não tem liberdade, procura refúgio na religião, na bebida ou na droga. Odeio ver todas essas crianças que não fazem nada das vidas delas a não ser arrastarem-se pelos cafés e beberem cerveja. Não quero ver tantos licenciados universitários sem emprego. A minha filha, que é engenheira química, não conseguiu encontrar trabalho aqui e teve de ir para França para ensinar. Se os extremistas chegarem ao poder, não vão deixar que ela trabalhe cá, nem sequer que vá para o estrangeiro. Mas no tempo de Ben Ali, não me deixavam cobrir a minha cabeça na escola.

Fui eu que decidi cobrir a minha cabeça e serei eu a decidir quando deixarei de o fazer. Acredito num Islão indulgente, que acredita no perdão. Eu defino o extremismo religioso como não querendo admitir a discussão. O que eu quero é um país democrático, equilibrado, onde as pessoas tenham valores.

— O dono de um restaurante frequentado por comerciantes na Medina, os mercados dos bairros antigos de Tunes. Emprega seis pessoas:
Sou islâmico. Mas sou contra o extremismo. O Islão quer dizer moderação em tudo. Do que precisamos agora é de segurança. As leis deviam ser mudadas para que se pudesse cortar as mãos aos ladrões.

Foi uma coisa boa o exército não ter disparado sobre o povo, mas esta revolução não está a resultar. As coisas saíram fora de controlo e não deviam ter deixado que isso acontecesse. As pessoas não vão trabalhar e há ladroes por todo o lado. Os trabalhadores do lixo estão em greve e o lixo está a empilhar-se. Toda a gente devia estar a trabalhar com afinco agora, mas eles não estão.

Eu quero três coisas; segurança, ordem, toda a gente a trabalhar. As pessoas do antigo regime continuam a mandar no governo, no comércio e na indústria.

Deus protege o nosso país, mas podia ser melhor. Não é verdadeiramente o nosso país. A economia é muito incerta — temos indústria, mesmo hi-tech, minas de fosfatos e agricultura, mas as coisas podiam estar melhor. Um novo presidente não quer dizer nada. A Bélgica está sem governo há um ano e ninguém se preocupa. Mas nós precisamos de polícia e de segurança.

Quando eu estou a trabalhar, devia poder concentrar-me no negócio sem me preocupar com a minha mulher em casa ou os meus filhos na rua. O que eu quero ver é um país sem barras de ferro. No dia em que eu já não vir barras de ferro em todas as portas e janelas, esse será o dia em que teremos lei.

Nós, os pais, precisamos de mais apoio como chefes de família. Precisamos que nos paguem abonos de família para podermos ter mais filhos. E quero pagar menos impostos e taxas de serviços. Em França, quem ganhar o salário mínimo e o gastar todo em carne, consegue comprar 100 quilos. Aqui seriam só 15 quilos. E em termos relativos, nós pagamos muito mais em cuidados de saúde que em França. Porque é que é assim?

— Uma jovem activista, em Ben Arous:
Quando fizemos a manifestação do Dia Internacional da Mulher a 8 de Março na Avenida Bourguiba, os islâmicos fizeram uma contra-manifestação. Não nos atacaram fisicamente, como fazem às vezes nos cafés contra as mulheres “imodestas”, mas foram muito agressivos. Gritaram: “Mulheres vão para casa!” É essa a solução deles para o desemprego: fazer com que todas as mulheres deixem os seus empregos e passem as vidas delas a cuidar das suas famílias.

Sempre houve islâmicos entre os operários e os membros dos sindicatos, mas agora que os pregadores podem actuar abertamente, os operários mais novos estão a juntar-se a esse movimento, tal como milhares e milhares se estão a filiar nos sindicatos e nos partidos políticos. É esse o significado da liberdade. Tenho medo que o antigo regime regresse e tenho medo dos islâmicos.

— Um dirigente do sindicato dos professores, em Ben Arous:
Primeiro, combatemos a ditadura, agora estamos a combater os fundamentalistas. Desde a revolução que tem havido muita agitação islâmica, sobretudo entre os jovens. Eles não levantaram um dedo durante a revolução, mas na reunião da última noite exigiram a maioria dos lugares no nosso Comité de Defesa da Revolução. Mas eu sei que o governo não deixará que eles tomem o comando.

Em que ponto estão agora as coisas

A caminho do exílio a 14 de Janeiro, Ben Ali nomeou para novo chefe de estado o seu primeiro-ministro, Mohammed Ghannouchi,. Isso foi visto como um acto final de tirania da parte dele, uma vez que ia contra o que estava estabelecido na constituição.

Os activistas novos e veteranos organizaram o Comité de Defesa da Revolução em reuniões abertas de massas nas cidades e vilas de todo o país. Aos estudantes, aos jovens e a outras pessoas de Tunes juntaram-se jovens vindos das cidades provinciais num gigantesco protesto frente ao complexo de gabinetes governamentais chamado Kasbah, do outro lado da Medina da Avenida Bourguiba, para exigirem a demissão de um governo constituído por “mortos-vivos”, os antigos ministros de Ben Ali e alguns notáveis.

Para apaziguar as pessoas e mostrar que a Tunísia passaria agora a ser um estado de direito, o líder da Assembleia Nacional, Fouad Mebazzaa, tornou-se presidente, tal como prescreve a constituição. Mebazzaa deu a volta e nomeou Ghannouchi como seu primeiro-ministro.

Protestos numa rua de Regueb, a 9 de Janeiro de 2011
Protestos numa rua de Regueb a 9 de Janeiro de 2011 (Foto: Abu Omar/AP)

Então, a 25 de Fevereiro, ocorreu uma nova ocupação que durou até Ghannouchi ter sido substituído como primeiro-ministro por Beji Caid Essebsi, um homem de 84 anos que tinha sido primeiro-ministro no tempo de Bourguiba, mas que não estava associado a Ben Ali. Por fim, os jovens das províncias regressaram a casa e o segundo protesto na Kasbah diminuiu e chegou ao fim. Em Março, uma tentativa de organizar uma “Kasbah III” para depor Essebsi fracassou.

O novo governo ignorou com êxito as tentativas dos Comités de Defesa da Revolução de exercerem uma espécie de poder dual. Em vez disso, propôs aquilo que Essebsi descreveu como uma “síntese” entre os que defendem a continuidade e os que lutam por uma ruptura clara com o antigo regime: uma Alta Autoridade para a Concretização dos Objectivos da Revolução, a Reforma Política e a Transição para a Democracia, cujos 155 membros são nomeados de baixo e aprovados pelo estado (daí a declaração do dirigente sindical de que o governo não deixará os islâmicos assumirem o controlo). Esse organismo irá preparar as eleições para a Assembleia Constitucional, a qual, por sua vez, escreverá uma nova constituição e organizará novas eleições parlamentares e presidenciais. Originalmente marcadas para 24 de Julho, parece que agora essas eleições podem ser adiadas até Novembro.

Esse organismo foi apoiado pela maioria das organizações (mas não todas) que participaram no derrube de Ben Ali e por algumas que não o fizeram, como o Ennahda (Renascimento), um partido islâmico recém-reavivado que diz que o seu objectivo não é um regime islâmico mas aquilo a que algumas pessoas chamam de “Islão suave”, segundo o modelo do AKP, o partido que governa a Turquia. O Ennahda defende o facto de não ter participado na revolta como tendo sido uma táctica para evitar que Ben Ali desacreditasse o movimento contra ele, mas muita gente pensa que estava à espera de um arranjo com o regime. Considerado agora o maior partido, está entre os mais leais apoiantes do actual governo e louva constantemente as forças armadas.

Estas medidas tomadas em nome da democracia reduziram significativamente a participação das vastas massas no processo político. Muitas pessoas sentem que as coisas estão a ser decididas atrás de portas fechadas, em negociações cínicas entre representantes daquilo que vêem como “interesses” difíceis de definir que não se preocupam com o que as pessoas comuns pensam ou querem ou precisam. Porém, ao mesmo tempo, ainda há uma guerra latente entre os esforços do regime para estabilizar a situação e a persistência do descontentamento.

Um dos mais importantes desses testes de força aconteceu em Maio, quando um recém-despedido Ministro do Interior disse numa entrevista televisiva que tinha sido impedido de afastar figuras do anterior regime dos serviços de segurança. Também disse que o presidente e o chefe das forças armadas tinham falado em desencadearem um golpe militar se não lhes agradassem os resultados das eleições para a Assembleia Constituinte. Isto fez aumentar as fileiras da marcha da sexta-feira, 6 de Maio, frente ao Ministério do Interior. Os manifestantes gritaram: “O povo quer uma nova revolução!” A polícia não só os atacou com uma particular selvajaria, como também investiu violentamente em todo o centro da cidade e nos bairros das classes mais baixas na vizinhança. Também andou à caça e espancou jornalistas, perseguindo alguns deles até aos escritórios de um jornal porta-voz do regime.

Há greves constantes (daí as reclamações do dono do restaurante) e mini-movimentos “Limpeza!” que visam afastar das escolas, escritórios, hospitais e todo o tipo de instituições os pequenos tiranetes ligados ao antigo regime. Mas alguns activistas sentem agora uma desencorajadora sensação de deriva, um sentimento de que não sabem para onde as coisas vão nem exactamente o que fazer em relação a isso. Também percebem que a “estabilização” não significa necessariamente que as coisas irão ficar tal como estão agora. O Facebook, o Twitter e os telemóveis ajudaram a tornar a revolta possível, mas os seus registos electrónicos também significam que se as forças de repressão recuperarem a iniciativa, saberão quem ir buscar e punir.

Quem define “os objectivos da revolução”?

Apesar do seu nome, a maior parte daquilo que é suposto a Alta Autoridade decidir não está relacionado com “Os Objectivos da Revolução”, no sentido dos anseios que levaram as pessoas a avançar. É verdade que o código eleitoral favorecia grosseiramente o partido governamental (o qual, porém, nunca falhou uma eleição), e que a formulação de um novo código e as questões relacionadas terão consequências. Mas é como se fosse uma interminável disputa sobre as regras de uma discussão para se evitar que se discutam as questões fundamentais e se esconder o facto de elas já estarem a ser decididas.

Quer na Alta Autoridade, quer noutros locais, há pouco debate sobre as grandes questões que o país enfrenta, temas que se têm feito sentir, embora não sejam claramente compreendidos: Como é que a Tunísia vai recuperar a sua dignidade nacional e tornar-se no país verdadeiramente independente que mais de meio século de independência política de França ainda não produziu? Como é que vai superar as evidentes disparidades regionais? Como é que terá um tipo de desenvolvimento que possa não só fornecer trabalho como a dignidade de uma vida satisfatória a toda a gente? Como é que os trabalhadores irão alguma vez ser outra coisa que não escravos? Como é que as pessoas das zonas rurais irão ser resgatadas das suas sepulturas vivas e libertadas para se tornarem numa força de longo prazo pela transformação social? Será que as aspirações das mulheres à igualdade as irão trazer mais integralmente para o movimento pela mudança social, ou será que essas aspirações se irão tornar num alvo? Como é que a educação de tantos jovens se pode tornar numa força por esse tipo de transformação e não numa cruel piada sobre eles e os seus pais? Que tipo de valores sociais e morais e de perspectiva do mundo irá prevalecer?

Uma vez mais, a questão de se saber “quem irá liderar” não é apenas uma abstracção. Há duas perspectivas que estão a competir pela lealdade das pessoas, e nenhuma delas é boa.

Qual querem: o modelo francês ou o iraniano?

Jovens tunisinos enfrentam as forças de segurança em Regueb a 9 de Janeiro de 2011
Jovens tunisinos enfrentam as forças de segurança em Regueb a 9 de Janeiro de 2011 (Foto: Abu Omar/AP)

Muita gente, incluindo pessoas religiosas, está aterrorizada com a perspectiva de uma subida dos fundamentalistas ao poder. Esse perigo está longe de ser uma fantasia. Em Abril, um homem que gritava “Allahu Akbar” atingiu com uma barra de ferro a cabeça de um dos realizadores de cinema mais conhecidos da Tunísia, Nouri Bouzid, quando ele conversava com um estudante numa universidade. O seu filme de 1992 Bezness (um título que combina uma gíria francesa para sexo e a palavra inglesa para “negócio”), sobre um prostituto que se vende aos turistas mas que em nome da “honra” insiste no domínio masculino na família, divulgou um lado da sociedade tunisina que muita gente preferia não ver. Outros artistas e intelectuais tunisinos tomaram isso como mais um aviso do que como um incidente isolado. Em Maio, Nadia El-Fani foi ameaçada de morte por causa do novo filme dela, Nem Amo Nem Alá.

Nos anos 90, o movimento islâmico tunisino, liderado pelo Ennahda e pelo homem que ainda hoje o dirige, Rachid Ghannouchi (sem nenhuma relação com o primeiro-ministro Ghannouchi), aliou-se aos fundamentalistas da vizinha Argélia, numa tentativa de fomentar e de, de facto, levar a cabo uma ascensão armada ao poder na Tunísia.

Seria difícil exagerar quão traumático foi esse período para a Argélia, a Tunísia e outros pontos dos países árabes. O exército argelino cancelou as eleições depois de um partido islâmico ter ganho a primeira volta. Centenas de milhares de pessoas foram mortas numa tortuosa guerra civil entre o exército e duas tendências islâmicas rivais. Tornou-se difícil determinar quem estava a matar quem e, em última análise, deixou de ser a questão mais importante. Todos os lados massacraram aldeias e bairros urbanos inteiros. Houve intelectuais e artistas que foram assassinados em tão grande número que muitos deles fugiram do país.

Na Tunísia, Ben Ali conseguiu esmagar o Ennahda através de prisões, tortura e encarceramentos em larga escala. Também usou isso como desculpa para esmagar toda a dissidência durante as duas décadas seguintes. Mas os islâmicos aguentaram o impacto da repressão mais violenta.

O Ennahda reemergiu como força importante quase após a queda de Ben Ali e os seus dirigentes regressaram do exílio na Grã-Bretanha e em França. Há um debate constante sobre se abandonou ou não os seus objectivos de domínio religioso. Tem força entre as classes médias e mais baixas, desde os operários das fábricas aos comerciantes, e sobretudo entre os advogados, que se dividem entre tendências laicas e religiosas. Entretanto, também emergiu da noite para o dia um movimento salafista. (Os salafistas são sunitas que defendem um regresso ao Islão tal como eles acreditam que foi praticado nos tempos iniciais.) O Hizb al-Tahrir (Partido da Libertação) defende um califado islâmico e a abolição das liberdades políticas. Tem conseguido recrutar muitos jovens, aparentemente entre os pobres, e circula à procura de brigas. A situação nas ruas é complicada. Muitas vezes, quando as mulheres e jovens “imodestas” são tratadas como caça livre, as pessoas dizem não ter a certeza de quem está a fazer isso.

Não pode se pode afastar a hipótese de Ghannouchi se ter tornado sinceramente um “revisionista islâmico”, como algumas pessoas lhe chamam, e de querer seguir a via do “Islão suave” do AKP turco, tornando-se parte de um governo modernizador e pró-EUA. Num importante relatório recente sobre a Tunísia, o Grupo Internacional de Crise, gerido pela nata da diplomacia europeia e norte-americana e dos think-tanks amigos dos governos, é descaradamente entusiástico em relação ao Ennahda. Mas seria errado não reconhecer o carácter contraditório e fluido da situação. Uma vez aceite a religião como terreno de legitimidade e verdade, então a religiosidade “indulgente” pode ficar em desvantagem em relação ao fundamentalismo.

Bob Avakian introduziu o conceito dos “dois obsoletos”: “a Jihad de um lado e o McMundo/McCruzada do outro”, “estratos historicamente obsoletos da humanidade colonizada e oprimida contra estratos dominantes e historicamente obsoletos do sistema imperialista”. Embora “os estratos dominantes e historicamente obsoletos do sistema imperialista [constituam] a maior ameaça à humanidade”, “se alinharmos com qualquer um destes ‘obsoletos’ acabamos por fortalecer os dois” (Bringing Forward Another Way/Desenvolver Um Outro Caminho). Na Tunísia, não é que haja um lado a levantar-se e a proclamar-se favorável ao domínio imperialista e outro lado a opor-se a tudo o que seja moderno. Mas, mesmo assim, esta citação descreve com precisão uma armadilha em que a maioria das pessoas está a cair.

Quando pressionados a dizer quais são as suas esperanças em relação à Tunísia, muitos activistas e intelectuais, bem como pessoas das classes mais baixas, respondem que querem que fique como a França, uma democracia multipartidária parlamentar estável com um sistema de segurança social. Muitos tunisinos têm vivido uma vida dura de trabalhadores imigrantes e não pensam que a Europa seja o céu. Só que é difícil às pessoas conceberem que seja possível qualquer outra coisa melhor, sobretudo no mundo de hoje, onde mesmo a maioria da esquerda tunisina não tem analisado de facto a experiência histórica das revoluções lideradas pelos comunistas e, em vez disso, aceita o pensamento dominante de que as mudanças radicais mostraram ser fúteis. Além disso, embora muitas pessoas comuns tenham alguma ideia de que a França não podia ser como é sem a sobre-exploração de países como a Tunísia, não compreendem suficientemente o facto científico de que o “modelo francês” é de facto impossível na Tunísia, uma vez mais em grande parte porque não vêem nenhuma outra alternativa.

Por outro lado, colocar o futuro possível da Tunísia em termos de o modelo francês ou o domínio fundamentalista islâmico (a que as pessoas não demasiado traumatizadas pela experiência argelina poderão chamar de modelo iraniano) apenas cria um terreno mais favorável ao islamismo — e vice-versa.

Numa manifestação em Tunes a 8 de Janeiro de 2011, exigiu-se a libertação das pessoas presas em anteriores protestos
Numa manifestação em Tunes a 8 de Janeiro de 2011, exigiu-se a libertação das pessoas presas em anteriores protestos (Foto: Hassene Dridi/AP)

Esta é uma sociedade suficientemente moderna para ter tantos estudantes do sexo feminino como do sexo masculino, mas em que não só há mais do dobro de analfabetismo entre as mulheres que entre os homens em geral, como mesmo entre as actuais gerações há duas vezes mais mulheres licenciadas universitárias desempregadas que homens. Os laicos tunisinos têm razão quando salientam que a constituição tunisina de 1959 era mais avançada que a de França nessa altura no que diz respeito aos direitos das mulheres, mas também fazia graves concessões ao Islão nessa questão (as mulheres só herdam metade do que os homens herdam e têm menos direitos noutros questões de família). De qualquer forma, o exemplo de França deveria dizer-nos alguma coisa: aí, as mulheres são iguais em termos legais, mas continua a ser uma sociedade integralmente masculina, supremacista e patriarcal, como fica óbvio pela recente onda de apoio ao presidente do FMI Dominique Strauss-Kahn, acusado de violação, já que o argumento usado não é o de ele ser inocente mas sim o de a violação não ser importante. Uma religião supremacista masculina e os elementos patriarcais ainda são muito poderosos na Tunísia e reflectem o pano de fundo das tradições, convicções e práticas reaccionárias entre o povo, e os islâmicos podem ter vantagem em apelar abertamente à supremacia masculina em vez de a tentarem encobrir.

Algumas pessoas alegam que uma posição mais radical contra o “modelo francês” e o “modelo iraniano” iria cortar os activistas políticos das vastas massas e sobretudo dos estratos mais baixos, mas na realidade um pensamento nebuloso e errado sobre estas questões é um importante obstáculo a podermos ligarmo-nos de uma forma sustentada aos que nada têm a perder e a unirmos essas massas, os estratos mais favorecidos, os intelectuais e outros estratos.

Além disso, a clareza em relação a estas questões é a única forma de fornecermos uma compreensão científica que pode lidar com uma importante fonte de depressão que há neste momento entre as pessoas comuns e mesmo entre os activistas: quando olham para o regime tunisino, o exército e os islâmicos, e pensam na Argélia e na guerra civil aí entre os militares argelinos apoiados pelos franceses (e pelos norte-americanos) e os fundamentalistas islâmicos, muitas pessoas sentem que a questão agora não é saber se as coisas podem melhorar mas sim se, de uma forma ou de outra, estão ou não a ponto de se tornarem muito pior.

V. E agora o quê?

A liberdade política — liberdade de expressão, de protesto, de imprensa e por aí adiante — não é apenas para as classes médias educadas. De facto, como se pode ver no desenvolvimento concreto da revolta, à medida que as pessoas conquistavam esses direitos através da sua própria luta e sacrifícios, os tunisinos comuns começaram a falar sem medo, a desafiar a autoridade e a produzir um questionamento e um fermento social mais profundo e global do que tudo o que se viu desde os anos 70 na maioria dos países “avançados” onde esses direitos estão inscritos na lei. Isto é necessário para que as pessoas se tornem inteiramente vivas e para que ocorra uma verdadeira mudança social.

Mas que dizer àqueles cujas vidas continuarão a ser miseráveis? Agora que algumas das pessoas relativamente melhor na vida obtiveram parte do que queriam, a “revolução” acabou?

O pressuposto não assumido por trás dos arranjos políticos que estão agora a ser postos em prática é que a vida — a relação da Tunísia com o resto do mundo e as relações económicas e sociais entre os tunisinos (as várias classes, os homens e as mulheres, as regiões) — vai continuar como antes, só que um pouco melhor porque eles agora têm direitos políticos e uma democracia parlamentar.

Quer as pessoas tenham ou não plena consciência disso, aquilo contra o que elas se estão a revoltar na Tunísia e no resto dos países árabes (e noutros pontos do terceiro mundo) é a forma como o imperialismo domina a organização das suas economias e como define as suas sociedades no seu todo com base nisso, e os regimes políticos que impõem esse domínio.

A Tunísia não está necessariamente condenada a ser dominada por um autocrata ou uma junta militar, mas não é por acaso que as ditaduras abertas têm sido tão comuns em todo o terceiro mundo, geográfica e historicamente. (A América Latina, por vezes apontada como prova de que esses dias acabaram, na realidade conheceu durante o último século períodos alternados de “aberturas democráticas” e repressão militar.)

Eles podem ter eleições e direitos constitucionais (ao contrario do domínio arbitrário de Ben Ali ou outras variantes), mas essas coisas tendem a ser restringidas, quando não simplesmente eliminadas. As classes dominantes locais dependentes do estrangeiro são menores e mais fracas que as classes dominantes dos países imperialistas, as classes médias são menores e mesmo menos estáveis, as condições de vida impelem mais vezes as pessoas a revoltarem-se, e o desenvolvimento regional distorcido torna muitas vezes difícil um controlo centralizado. A persistência de relações de exploração feudais e de outras formas pré-capitalistas facilita frequentemente o domínio imperialista, e as classes e forças que representam essas relações também são cruéis inimigas dos interesses fundamentais do povo.

Manifestação em Tunes a 14 de Janeiro de 2011, em que foram gritadas palavras de ordem contra Ben Ali
Manifestação em Tunes a 14 de Janeiro de 2011, em que foram gritadas palavras de ordem contra Ben Ali
(Foto: Christophe Ena/AP)

De uma forma mais fundamental, independentemente do sistema de governo, as classes dominantes desses países são as representantes de relações imperialistas, e o direito à autodeterminação e a igualdade entre as nações nunca está no programa. Não se trata apenas de elas serem politicamente servis em relação ao imperialismo, embora seja verdade que as maquinações e intervenções imperialistas representam um importante papel a levar os governos ao poder e a fazê-los novamente sair. Enquanto as suas economias forem organizadas segundo as leis do capitalismo, sobretudo a tentativa de obtenção das mais altas taxas de lucro, num mundo em que as formações concorrentes do capital monopolista baseadas num punhado de países dominam os restantes ou, por outras palavras, enquanto forem dependentes do mercado mundial imperialista, têm de se curvar perante os interesses e os ditames de Paris, Nova Iorque, Londres, Berlim, Roma, etc. esta é a única lógica a que os capitalistas e outras classes exploradoras podem obedecer.

Um desenvolvimento que satisfaça as necessidades do povo requerer todo um sistema político diferente, um sistema cujo objectivo fosse libertar as pessoas e a nação do domínio imperialismo e dos capitalistas tunisinos e de outros exploradores que deles dependem, que não visse o desenvolvimento como um objectivo em si mesmo que abre simplesmente a porta a antigos ou novos exploradores, mas como parte de um processo que leve à abolição de todas as formas de exploração e opressão e à superação de todas as desigualdades à escala mundial. Como parte disso, também teria de haver um processo de ruptura com as relações sociais, tradições e pensamentos predominantes opressores, tanto os impostos pelo imperialismo como os tradicionalmente embutidos na sociedade tunisina.

Os tunisinos têm razão em quererem poder exprimir-se, organizar-se e desfrutar de outras liberdades, libertar-se do livre arbitrário, recuperar a dignidade individual e nacional e tomar de volta o seu país. Mas não podem ser livres a menos que compreendam que a palavra “liberdade” não faz sentido e é enganadora a menos que eles se interroguem: liberdade para quem, para que classe? Liberdade para os imperialistas e os seus aliados locais? Ou liberdade em relação a eles para o povo, liberdade para terem um papel decisivo na determinação do rumo da sociedade e de se unirem aos povos do mundo para libertarem a humanidade?

Estas perguntas, mesmo nas formas mais imediatas de se saber porque é que a Tunísia e os tunisinos sofrem desta forma e o que se pode fazer sobre isso, não estão a ser pensadas e debatidas de uma forma suficientemente profunda neste momento na Tunísia. Pelo contrário, demasiada gente está a ficar presa ao que parece possível num dado momento, mesmo quando sabem ou suspeitam que não há outro caminho para a Tunísia a não ser romper os laços da política tal como ela é agora praticada e as pessoas começarem a perceber como tornar possível uma verdadeira revolução.

Numa palavra, o futuro da revolta na Tunísia ainda não está decidido. A actual “abertura democrática” pode favorecer o treino e a preparação das pessoas para a revolução; mas também pode desorientá-las e adormecê-las, levando à perda das grandes conquistas da revolta: o seu despertar político, a sua determinação generalizada e actuada a favor de alguma forma de mudança radical, e sem o que essa mudança será impossível, e a iniciativa política que elas retiraram das mãos dos seus opressores.

A questão é ver a situação na Tunísia não apenas como ela é, mas como poderia ser. Alguns activistas fecham os olhos e esperam que a história faça sempre a coisa certa, enquanto outros são propensos a acessos de pensamentos obscuros. Muitos são afectados por ambos. O que é importante não é ir buscar a coragem das pessoas, mas sim ver como é que o que as massas populares fizeram criou uma situação muito favorável ao trabalho revolucionário que tem de ser feito.

Ninguém pode prever quanto tempo durará esta situação. Nem ninguém pode prever como é que a volatilidade regional e mundial que os tunisinos ajudaram a desencadear poderá retroagir sobre a Tunísia.

Até agora, o povo tunisino conseguiu coisas surpreendentes por sua própria iniciativa. Mas enfrenta obstáculos que ou os consegue superar ou eles o podem derrotar. A questão é saber quem irá agora liderar o povo — se será um ou outro tipo de reaccionários que procuram arrastar as pessoas retrógradas, ou se serão os camaradas que rompam com as políticas reformistas, agarrem a possibilidade de se treinarem a si próprios e a muitos outros no mais avançado conhecimento da ciência do comunismo entre a insurreição e a confusão, e forjem uma estratégia revolucionária.

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Relato da Tunísia:


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