Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 15 de Setembro de 2008, aworldtowinns.co.uk

Recensão crítica: “Planeta Favela”

Planet of Slums [Planeta Favela na edição brasileira] (Editora Verso, Londres e Nova Iorque, 2006 em capa rígida, 2007 em edição brochada), escrito pelo urbanista teórico Mike Davis, tem muitas razões para ser recomendado.

Davis escreve muito poeticamente, tanto em termos de linguagem como das suas imagens justapostas, enquanto, ao mesmo tempo, o seu objectivo é exactamente uma compreensão científica de como é exactamente a vida – e o que é que o futuro lhes reserva – dos mais de mil milhões de pessoas que vivem nas favelas (bairros de lata em Portugal) brasileiras, nos pueblos jóvenes peruanos, na cidade de lixo de Manila, nos bairros dos cemitérios habitados por um milhão de pessoas no Cairo, pelos milhões de pessoas que vivem sem água corrente nem esgotos em Lagos, Mumbai (Bombaim) e Jacarta e nos desakota de Colombo (no Sri Lanka). O seu argumento principal é que, enquanto hoje, pela primeira vez, mais de metade dos habitantes do planeta vivem em cidades, isso não acontece, em termos humanos, devido ao sucesso do capitalismo, mas sim ao seu falhanço em fornecer um verdadeiro lugar neste mundo para aqueles que o seu crescimento afastou das zonas rurais.

O seu livro ilustra muito claramente porque é que precisamos de uma revolução mundial e porque é que as estratégias do “lucro no comando” nunca poderão resolver os problemas da pobreza, das favelas, do acesso a água potável e a instalações sanitárias decentes. Particularmente recomendado é o Capítulo 6, intitulado “Ecologia das Favelas”, uma denúncia profundamente violenta e perturbadora de como centenas de milhões de pessoas em todo o mundo são forçadas a viver em completa imundície, sem acesso aos bens mais essenciais, como a água potável ou uma sanita. Na Europa Ocidental e nos EUA, a vasta maioria das pessoas nem sequer imagina o privilégio que é ter torneiras em casa que fornecem água potável e limpa e uma casa de banho privada para a família e os amigos usarem. Planeta Favela descreve as pessoas que vivem em condições de vida abomináveis, tais como: terrenos envenenados por desperdícios tóxicos ou com crónicos aluimentos de terras; incêndios frequentes nas favelas(incluindo fogos postos como método de eliminação dessas favelas); respirarem um ar que equivale a fumar dois maços e meio de cigarros por dia, como acontece em Mumbai; serem forçados a defecar ao ar livre, uma situação vivida por 700 milhões de pessoas na Índia; e não terem acesso a água potável. Davis salienta: “As doenças do sistema digestivo devido a sistemas sanitários miseráveis e à poluição da água (...) são a principal causa de morte no mundo”. Na mesma página, Davis cita Eileen Stillwaggon, que diz que “diariamente, em todo o mundo, as doenças relacionadas com o fornecimento de água, o tratamento e a recolha de lixo matam 30 mil pessoas e constituem 75% das doenças que afectam a humanidade”. Obviamente, com uma ordem mundial diferente onde a prioridade dos governos seja a saúde da população mundial em vez do lucro, todas essas mortes seriam totalmente evitáveis. É um dos maiores crimes do imperialismo que no século XXI morra uma média de 30 mil pessoas por dia por não terem acesso a água potável de confiança e à recolha de lixo.

Num outro capítulo, Planeta Favela indica como, nalguns países do mundo, a população das favelas corresponde a mais de 90% da população urbana total – por exemplo, no Afeganistão, 98,5% da população urbana vive em favelas. Davis também relata que no Iraque, outro país “libertado” pelos EUA e pela Grã-Bretanha, as epidemias de hepatite e febre tifóide estão fora de controlo e, dois anos após a invasão, “conseguia-se ver a olho nu filamentos de excrementos humanos na água das torneiras”.

As pessoas na Europa tendem a assumir como garantido o acesso aos cuidados universais de saúde e pode ser fácil esquecer que, para a maioria das pessoas do mundo, isso não passa de um sonho. Um facto chocante em Planeta Favela é que “um número estimado em 60% dos pequenos camponeses cambojanos que venderam as suas terras e se mudaram para as cidades foi forçado a fazê-lo devido a dívidas médicas”. Os números das variações das taxas de mortalidade infantil também são perturbadores. Por exemplo, em Quito (capital do Equador) a mortalidade infantil é 30 vezes mais elevada nas favelas que nos bairros mais ricos.

Planeta Favela também fornece uma viva denúncia do resultado das intervenções do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI), cujas actividades beneficiam os imperialistas e aqueles que já estão bem, ao mesmo tempo que em geral deixam os pobres na mesma situação ou numa situação ainda pior. Um exemplo disso são os bairros sociais que apenas beneficiam as classes médias urbanas e as elites e não os habitantes das favelas. É muitas vezes seguindo instruções do Banco Mundial e do FMI que o financiamento dos sistemas de saúde está a ser reduzido: por exemplo, “a percentagem de nascimentos medicamente assistidos no México caiu de 94% em 1983 para 45% em 1988, depois da adopção de um segundo programa do FMI em 1986, enquanto a taxa de mortalidade materna explodiu de 82 para 150 por 100 mil habitantes em 1988”. Davis cita as recomendações do programa Investir na Saúde do Banco Mundial: “Uma despesa pública limitada a um pacote de serviços estritamente definido; taxas [moderadoras] de utilização dos serviços públicos; e privatização dos cuidados de saúde e do seu financiamento”. Davis continua, descrevendo o que aconteceu quando essa abordagem foi adoptada no Zimbábue onde, quando foram introduzidas as taxas moderadoras no início dos anos 90, a mortalidade infantil “duplicou”.

O livro fornece uma alargada e incisiva descrição da vida de uma parte cada vez maior da população do planeta, de que não são parte menor as mulheres e crianças. “Um estudo recente sobre as crianças das favelas de Daca, no Bangladesh, revelou que ‘quase metade dos rapazes e raparigas entre os 10 e os 14 anos estavam a fazer trabalhos geradores de rendimentos’ e ‘só 7% dos rapazes e raparigas entre os 5 e os 16 anos frequentavam a escola’.” Só em Daca há 750 mil crianças trabalhadoras. Hoje em dia, todos os países já aprovaram leis a proibir o trabalho infantil, mas dezenas de milhões de crianças do planeta vêem-lhes negada uma educação e são forçadas a trabalhar pelas muito mais poderosas leis que regem a forma como o sistema capitalista tem que tentar espremer cada vez mais lucros das pessoas, por todos os meios que puder.

Davis traz-nos uma importante compreensão das forças impositivas do mercado global para uma análise das formas como são restringidos os esforços das organizações não-governamentais [ONG], cujo número tem crescido rapidamente nos últimos anos. Ele argumenta: “Mesmo quando as ONGs e os financiadores do desenvolvimento interferem na ‘boa governação’ e na melhoria incremental das favelas, forças de mercado incomparavelmente mais poderosas estão a empurrar a maioria dos pobres ainda mais para as margens da vida urbana”. Essas mesmas forças também mantêm essas ONGs “amarradas” aos objectivos dos seus financiadores internacionais, em vez de a um programa definido pelas necessidades das pessoas.

Davis concentra-se na denúncia e não nos fornece muito sobre o que é preciso fazer para se lidar com os inúmeros horrores que descreve. Infelizmente, ele aparentemente rejeita a mais importante experiência e compreensão que de facto foram acumulados a esse respeito, ao lançar um ataque superficial ao que ele chama “estalinismo asiático”, com o que ele quer dizer a China revolucionária (1949-1976), descrevendo a política chinesa como “anti-urbanismo ideológico”. Tendo denunciado repetidamente que os países nada fizeram e nada estão a fazer de construtivo em relação às favelas em rápido crescimento em todo o mundo, ele queixa-se então dos esforços da China para impedir a criação de favelas e condena os chineses por terem impedido a afluência dos campos para as cidades através de “rígidos controlos da migração interna”. Contudo, mesmo Davis concede que ao fim de 11 anos de Revolução na China, os sem-abrigo tinham sido realojados e a maioria das favelas urbanas tinha sido eliminada. Isso foi um feito extraordinário sem paralelo na história! Davis não pode querer as duas coisas ao mesmo tempo! Além disso, Davis reconhece depois que, “desde os finais dos anos 70, a distribuição de rendimentos nas cidades chinesas passou da mais igualitária da Ásia a uma das mais notoriamente desiguais”. Esse progresso na superação das divisões entre ricos e pobres foi um reflexo do desenvolvimento económico equilibrado que a China conseguiu atingir quando se libertou do domínio imperialista sob a liderança revolucionária de Mao Tsétung. Os leitores interessados podem consultar o Manual de Economia Política de Xangai [Shanghai Textbook on Political Economy] (Banner Press, Chicago, 1995), publicado durante o período da Revolução Cultural na China, para saberem mais sobre o pensamento político e económico por trás desse extraordinário sucesso.

Planeta Favela é um pouco mais difícil de ler do que o necessário. Salta de um lado para o outro, entre diferentes zonas do mundo, e não diz em que países estão localizadas as várias cidades, requerendo um elevado grau de conhecimento geográfico. Além disso, embora seja o tipo de livro que se lê e mais tarde se usa como livro de referência, o índice não tem listagens por país ou tópico.

Davis descreve um mundo que clama pela revolução. Ao mesmo tempo, como fica claro do extenso leque de fontes em que se baseia, os revolucionários não são os únicos a analisar as profundas mudanças que ocorreram na estrutura da população mundial nos últimos anos. Ele conclui o seu livro virando-se para a forma como os que actualmente controlam o mundo estão a avaliar o potencial impacto dessas mudanças. Por exemplo, fica claro que na realidade eles esperam pouco progresso real, se mesmo algum, em todas as reluzentes promessas sobre a erradicação da pobreza que são regularmente apregoadas pela ONU e outras organizações multilaterais. Por exemplo, investigadores de topo da ONU concluíram que as actuais taxas de evolução da África subsaariana não atingirão os muito propalados Objectivos de Desenvolvimento do Milénio senão muito depois do início do século XXII – e isso foi escrito antes das recentes crises dos combustíveis e dos alimentos. Os analistas esperam assim que as favelas do planeta venham a ser focos e viveiros de rebeliões e motins nos próximos anos. Como consequência, os militares que impõem a ordem imperialista global estão a aumentar exponencialmente os seus preparativos para lidarem com os enormemente elevados desafios das megafavelas, sobretudo do Terceiro Mundo.

Davis cita um estudo da Escola de Guerra do Exército dos EUA que dá uma indicação do que eles consideram estar em jogo. Esses pensadores militares imperiais advertem: “O futuro da guerra está nas ruas, nos esgotos, nos prédios altos e nas zonas de casas espalhadas que formam as cidades arruinadas do mundo... A nossa história militar recente tem sido pontuada por nomes de cidades – Tuzla [Bósnia], Mogadíscio, Los Angeles [!], Beirute, Cidade do Panamá, Hué, Saigão, Santo Domingo – mas estes confrontos não foram senão um prólogo, com o verdadeiro drama ainda por vir.”

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