Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 17 de Setembro de 2012, aworldtowinns.co.uk
Os protestos contra o vídeo anti-islâmico e o que ainda pode florescer na Primavera Árabe
Por Samuel Albert
Os protestos contra um vídeo reaccionário anti-islâmico revelaram, mais nitidamente que nunca, dois aspectos da que foi chamada “Primavera Árabe” – os perigos que enfrenta e o facto de o seu resultado ainda não estar decidido.
Tal como muitas outras pessoas, a minha primeira reacção após a morte do embaixador norte-americano na Líbia e de três outros membros da embaixada foi de medo. Tal como já tínhamos visto antes, quando a posição dos EUA de árbitro e impositor da ordem mundial é desafiada, frequentemente reage mostrando que ninguém está à altura do seu poder letal.
Todos nos lembramos da resposta dos EUA aos ataques do 11 de Setembro de 2001. Eles foram uma desculpa para a invasão, primeiro do Afeganistão e depois do Iraque, que não tinha nada a ver com a queda do World Trade Center. Agora, após o ataque à embaixada e o caos político que o acompanhou em todo o Médio Oriente e Norte de África, alguns peritos reaccionários que ajudam a definir a política externa norte-americana já estão a alegar que estes acontecimentos mostram a necessidade de uma intervenção militar estrangeira directa na Síria, para que os EUA possam ter “aliados no terreno” para lutarem pela sua posição de vantagem numa situação que ainda está basicamente fora do controlo de todos. (The New York Times, 16 de Setembro de 2012)
Sem fazer previsões específicas, podemos estar bastante certos de que os EUA se tentarão vingar, não apenas por ira de tiranos, mas também por frio calculismo, na sequência da sua ofensiva para assegurar e expandir o seu domínio do Médio Oriente por qualquer meio, independente de quanto derramamento de sangue isso implique.
Ao mesmo tempo, tal como muitas outras pessoas com elevadas esperanças na revolução no mundo árabe, eu também senti desânimo, porque os protestos contra o vídeo representam fundamentalmente uma tentativa de fazer avançar o Islão político. Esta reacção, tal como o Islamismo como projecto político global, obscurece e protege as relações económicas e sociais representadas pelos antigos regimes contra os quais os povos árabes se revoltaram e que derrubaram. Vai contra o que havia de melhor na Primavera Árabe.
Embora os protestos no Cairo estejam longe dos maiores e mais violentos, o Egipto foi onde eles começaram. O vídeo, alegadamente extraído de um filme mais extenso, surgiu inesperadamente no YouTube dobrado em árabe egípcio. A televisão islâmica egípcia espicaçou os primeiros protestos contra ele e noticiou falsamente que essa gravação estava a encher as televisões norte-americanas. Além disso, o Egipto pode ter sido o alvo específico desta provocação deliberada, uma tentativa de fazer a recém-empossada Irmandade Muçulmana tropeçar nas contradições das suas próprias posições, as quais, de qualquer forma, foram postas a nu. Mesmo sem ter em conta o papel central do Egipto entre os países árabes, a ascensão da Irmandade ao governo é muito importante na análise do que foi mudado e do que não foi mudado pela Primavera Árabe.
Os restos do regime de Mubarak
Os EUA teriam preferido alguma forma de continuação do regime de Mubarak, o qual apoiou no início, contra a revolta popular. Washington continua a dar uma grande importância aos seus laços com as forças armadas egípcias que são o núcleo do estado e controlam grande parte da economia. Mas a certo ponto concluíram que um governo liderado pela Irmandade Muçulmana era a melhor opção disponível.
Embora as figuras políticas pró-Mubarak e os generais que ele nomeou sejam ridicularizadas como “restos” do antigo regime, a Irmandade também é, de certa forma, um resquício do antigo regime, diferindo do que as pessoas chamam de felool (as fileiras desacreditadas de um exército derrotado) sobretudo porque ela não foi nem derrotada nem desacreditada politicamente.
A relação entre Mubarak e os islamitas foi complexa e por vezes violenta, mas mutuamente benéfica. Às vezes, os islamitas eram encarcerados e torturados, mas durante a maior parte do tempo foi dada à Irmandade a liberdade relativa de gerir os centros religiosos/de caridade/políticos através dos quais recrutou e expandiu a sua influência. Em troca, a participação dela no processo eleitoral, mesmo quando outros partidos da oposição boicotavam abertamente as eleições fraudulentas, deu ao sistema político alguma legitimidade e estabilidade. Não se viu a Irmandade em nenhum lado durante os primeiros dias dos gigantescos protestos na Praça Tahrir e noutras cidades egípcias em Janeiro de 2011 porque, ao contrário dos que arriscaram as suas vidas ao exigirem a queda do regime, ela estava à procura de uma forma de se tornar parte dele.
Como evidência de que o poder norte-americano lhes estendeu uma mão: nos dias anteriores à agitação por causa do filme, os EUA anunciaram que para além de atribuírem 2 mil milhões de dólares em “ajuda” ao Egipto, estavam a considerar reduzir a dívida de 3 mil milhões de dólares do país aos EUA em pelo menos mil milhões. O Fundo Monetário Internacional iniciou negociações com o governo egípcio para um empréstimo de 4,8 mil milhões de dólares. O governo de Obama apoiou o acordo e a chefe do FMI Christine Lagarde encarregou-se pessoalmente das negociações com os representantes do Egipto. O Banco Mundial também ofereceu um empréstimo de 200 milhões de dólares de juros. O governo norte-americano enviou ao Cairo uma das maiores delegações comerciais de sempre, com representantes das 49 principais multinacionais norte-americanas que aí desejam investir. Os responsáveis norte-americanos jorraram elogios à Irmandade. Um deles comentou: “Eles parecem os Republicanos durante metade do tempo” (The New York Times, 3 de Setembro de 2012).
Não houve nenhuma caridade nesta oferta e nunca o houve para o Egipto. O país tem sido há décadas o recipiente número dois da “ajuda” norte-americana porque esse dinheiro tem o mesmo objectivo que o dinheiro dado ao recipiente número um, Israel: assegurar que os sionistas possam continuar a desempenhar o seu papel de gendarme regional de confiança dos EUA. Desde os acordos de Camp David, em que o Egipto rompeu fileiras com os outros países árabes e concordou em reconhecer Israel e proteger os seus interesses, que os EUA têm continuado a subornar e a reforçar o exército egípcio.
Politicamente, o que este novo pacote de “ajuda” comprou foi isto: imediatamente antes de estas propostas financeiras terem sido anunciadas, o Presidente egípcio Mohamed Morsi (do Partido Liberdade e Justiça, a ala eleitoral da Irmandade muçulmana) fez dois anúncios cruciais. Um foi para pedir a Bashar al-Assad da Síria que se demitisse. Embora a Irmandade tenha as suas próprias razões para odiar a dinastia laica de Assad, é de realçar que o único pronunciamento importante em política externa de Morsi tenha sido em linha com as prioridades norte-americanas. O outro foi uma promessa de que o governo dele, tal como o de Mubarak, iria cumprir um acordo que dá aos EUA e a Israel o poder de veto sobre as operações militares egípcias na Península do Sinai. Isto é ainda mais vergonhoso não só porque o Sinai supostamente faz parte do território soberano do Egipto, mas também porque o governo enviou para lá as suas tropas para combaterem as supostas forças salafistas de base tribal que Israel considera uma ameaça às suas fronteiras.
Economicamente, o objectivo desta “ajuda” é manter a vida egípcia subordinada ao capital baseado nos países imperialistas aos quais presta tributo.
O que está errado no Egipto?
À medida que o Egipto se ia tornando mais completamente integrado nos mercados globais, financeiros e de bens, durante as últimas décadas, alguns sectores da economia prosperaram, mas a vida tornou-se mais penosa para a maioria da população. Nos campos onde ainda vive cerca de metade da população, uma “contra-reforma” agrícola projectada para promover a agricultura capitalista moderna nas zonas rurais caracterizadas por proprietários muito pequenos (e terras irrigadas incrivelmente férteis, algumas delas produzindo três colheitas por ano) transformou muitos fellahin em trabalhadores sem terra e afastou deliberadamente muitos mais para totalmente longe dos campos. Como consequência, o trabalho barato é tão abundante para as fábricas têxteis, de vestuário e outras localizadas no Delta do Nilo que a China achou vantajoso estabelecer aí unidades de exportação. Não admira que as multinacionais norte-americanas estejam a fazer fila.
Uma grande parte da população, das cidades e dos campos, foi afastada das suas vidas tradicionais mas não foi completamente integrada na economia formal. Um enorme número de pessoas trabalha como substitutos de máquinas (na construção, por exemplo, onde umas costas são mais baratas que um guindaste) ou como porteiros, guardas, auxiliares e por aí adiante.
O Cairo é uma das mais sofisticadas cidades do mundo, mas a falta de empregos estáveis, a dependência das relações feudais e outras relações pessoais de subjugação para a sua sobrevivência, as condições de vida frequentemente improvisadas e precárias de muitos dos seus habitantes e mesmo a sua dimensão insustentável estão muito relacionadas com a forma como o desenvolvimento económico e social global do país foi distorcido pela sua subordinação ao capital estrangeiro.
Ao mesmo tempo, graças a televisão e à internet, os padrões e estilos de vida norte-americanos e europeus são muito familiares para milhões de jovens que têm pouco acesso a sistemas de canalização, acesso limitado a escolas e nenhuma esperança de serem admitidos a esse tipo de modernidade.
Esta é a situação que define o cenário da vida social e intelectual. As crises económicas, políticas e ideológicas do Egipto após mais de meio século mostram que o problema não é o desenvolvimento, mas sim o tipo de desenvolvimento.
A Irmandade Muçulmana, com o seu grande apoio do capital privado e de profissionais independentes mais abastados, não tem nenhum programa para transformar estas condições básicas, nem qualquer intenção de o fazer. Alega que tem de seguir as imposições do FMI para encorajar o capital estrangeiro a reavivar uma economia estagnada. Mesmo que isso fosse possível neste momento em particular, não há nenhuma razão para acreditar que trará qualquer resultado melhor para o povo no futuro do que trouxe no passado.
Para proteger a sua administração de um país subordinado e fazer com que as pessoas aceitem vidas que muitos acham inaceitáveis, o que eles planeiam mudar apenas pode tornar a situação pior, não só apelando à mistificação da religião, mas oficialmente encorajando e/ou protegendo legalmente os aspectos mais retrógrados e opressivos das relações tradicionais, sobretudo o domínio dos homens sobre as mulheres.
Por exemplo, Omayma Kamel, uma médica que é conselheira presidencial para as “questões das mulheres” e deputada do Partido Liberdade e Justiça, encorajou recentemente a que mais mulheres fizessem o que eufemisticamente tem sido chamado de excisão ou “circuncisão feminina” e que implica cortar o clitóris e por vezes muito mais dos órgãos genitais da mulher – castração feminina. Esta prática está extremamente generalizada no Egipto, mas o governo de Mubarak tentou minimizar a sua existência, não a promovendo oficialmente. Agora, a pessoa encarregue do bem-estar das mulheres está a proclamar que usar o hijab não é suficiente – que as mulheres que não se submetam a essa mutilação serão condenadas como “ímpias” – implicando, desta forma, como outros islamitas clamam abertamente, que a “impiedade” das mulheres é a razão do assédio sexual público e do abuso físico directo que a maioria das mulheres egípcias sofre.
Já é suficientemente mau que o debate na assembleia constituinte controlada pela Irmandade se tenha centrado em como a nova constituição deve ser ainda mais Islamizada. Acentuar a necessidade de as mulheres agirem de uma forma mais “pia” – e não enfrentar o aumento dos ataques predatórios às mulheres como emergência nacional – dá um vislumbre da visão islamita do futuro.
Este é o contexto para se compreender os protestos contra o filme no Egipto e o papel do Islão político em geral.
O vídeo fascista cristão que os islamitas adoram odiar
Sem saber nada mais sobre A Inocência dos Muçulmanos do que o vídeo do YouTube e os relatos da comunicação social sobre as suas origens, parece que este filme visava ter exactamente o efeito que teve. Foi uma provocação deliberada, inflamando uma reacção islamita violenta no estrangeiro, polarizando ainda mais a situação política nos EUA e unindo os que querem levar a cabo o que só pode ser considerado uma cruzada religiosa no estrangeiro e promover uma agenda fascista cristã nos EUA.
A reacção a este vídeo não pode ser entendida sem se compreender a forma como os EUA têm dominado e humilhado os povos dos países árabes e para além deles, apoiando tiranos vende-pátrias assassinos e os esforços dos sionistas para erradicarem a Palestina, invadindo e provocando a devastação social no Iraque (e na Líbia e no Afeganistão) e assassinando pessoas a uma escala de massas ou apoiando outros que também o fazem.
Mas estes protestos contra o que é tomado como um insulto ao Profeta só podem ser vantajosos para as forças reaccionárias de toda a região. Eles têm sido abraçados por regimes – Tunísia, Iémen e Paquistão vêm-nos à mente – que precisam de esconder o facto de terem entregue o futuro do seu país e muitas vezes mesmo a sua soberania física aos EUA, bem como por outros regimes reaccionários actualmente não favorecidos pelos EUA, como o Irão e o Sudão.
Por exemplo, no Líbano, o Hezbollah organizou uma das maiores manifestações contra o vídeo até agora. O seu líder, Hassan Nasrallah, que raramente aparece em público devido às ameaças israelitas de assassinato, dirigiu-se pessoalmente à multidão, chamando ao filme “o pior ataque de sempre ao Islão”. Embora a perversidade do vídeo e do seu conteúdo racista anti-árabe sejam inegáveis, seguramente não é pior que o que os povos dos países árabes têm sofrido às mãos dos EUA e do Ocidente e dos seus mandantes – como as invasões do Líbano por Israel ou o massacre de milhares de palestinianos em 1982 nos campos de refugiados de Sabra e Shatila em Beirute.
Não só Nasrallah estava a tentar substituir a religião pela genuína resistência ao imperialismo, o que se poderia esperar de uma organização que agora lidera um governo libanês embutido nos mercados financeiros internacionais dos imperialistas e da sua rede política, como também estava a tentar afastar a questão do apoio do Hezbollah ao regime reaccionário de Assad, uma coisa muito pior que está a fazer ao povo da Síria e da região do que insultar Maomé.
A posição inicial do governo egípcio foi encorajar os protestos junto à embaixada norte-americana, de “baixo para cima”, através da sua influência política entre o povo e de declarações oficiais. Embora a polícia egípcia tenha sido rápida a dispersar violentamente as manifestações frente à embaixada síria, mesmo recentemente, e a polícia e o exército tenham aberto fogo na Praça Tahrir muitas vezes antes, quando os manifestantes atacaram pela primeira vez a embaixada norte-americana a 12 de Setembro, a polícia foi muito menos firme dessa vez. Contudo, os manifestantes eram apenas milhares, e não as millionia, as multidões de um milhão ou centenas de milhares de pessoas que ocuparam a Praça Tahrir noutras ocasiões.
Mesmo quando o governo de Morsi dispersou violentamente a multidão que se deslocou à própria Praça Tahrir alguns dias depois, continuou a “manter o seu bolo e também a comê-lo”. Por um lado, tentou satisfazer os EUA protegendo a embaixada norte-americana. Khairet al-Shater, o principal líder da Irmandade, escreveu uma carta ao jornal The New York Times em que dizia que o governo dos EUA e os seus “cidadãos” não podiam ser considerados responsáveis pelo filme. Por outro lado, a Irmandade continua a trabalhar para manter vivo o assunto.
De facto, ao mesmo tempo que era conciliatória para com os EUA, a carta de Shater era particularmente inflamatória e reaccionária em termos domésticos. Os egípcios podiam facilmente ler nas entrelinhas: o inimigo não é o Tio Sam mas sim “os judeus” – não interessa que os EUA tenham tornado possível que Israel se tenha tornado no que é – e, ainda mais, os cristãos coptas, que sempre foram um alvo à mão no Egipto sempre que tiveram de dar uma saída reaccionária para a ira de algumas pessoas.
Ao insinuar que “os coptas fizeram isto”, independentemente de quem se revele vir a ter estado envolvido na produção e promoção do filme, o que é que pode ser uma solução melhor para o dilema dos islamitas: como inflamar os sentimentos religiosos e reivindicar a autoridade do Islão, ao mesmo tempo que se trai os interesses nacionais do Egipto e do seu povo?
Alguns observadores têm salientado a distinção entre a Irmandade Muçulmana e os salafistas nesta situação, mas essa distinção é frequentemente pouco clara. Como a Irmandade vai buscar a sua legitimidade à religião, é difícil traçar uma linha entre aquilo a que chama de governo “civil” baseado em “princípios islâmicos” e o objectivo dos salafistas de uma forma de poder de estado sem outra lei que não a do Alcorão. Além disso, embora o Partido Al Nour tenha içado a sua bandeira negra salafista no muro da embaixada dos EUA, marcando pontos contra a rival Irmandade, a comunicação social egípcia relatou que após o primeiro dia ou dois eles pediram aos seus apoiantes para se afastarem, ansiosos por mostrarem aos EUA que também podem confiar neles.
Embora haja diferentes correntes dentro do Islão político, todas elas são produtos e parceiros do mesmo fenómeno. São todas resultado da mesma dinâmica que tem favorecido a ascensão do islamismo em geral – as classes exploradoras dos países dominados que enfrentam e por vezes confrontam os imperialistas sem procurarem ou sem poderem desafiar os limites do imperialismo como sistema económico mundial e enquadramento para as relações entre os povos e os países. No Egipto, tal como na Tunísia e noutros lugares, os salafistas não ficaram debilitados quando gente como a Irmandade Muçulmana chegou ao governo; pelo contrário, foram incentivados e reforçados pela legitimação global e pelo encorajamento do Islão político, mesmo quando fornecem tropas de choque aos “moderados”.
Se alguns salafistas no Egipto, tal como em muitos noutros países, estão numa postura confrontacional com os EUA, isso não os torna “anti-imperialistas” nem de nenhuma forma menos inimigos dos verdadeiros interesses nacionais e internacionalistas dos povos da região. A monarquia saudita, frequentemente o paradigma apontado pelos salafistas egípcios, e a Al Qaeda, cujas raízes estão na Irmandade, podem diferir na sua actual relação com os EUA, mas partilham uma ideologia e um modelo de sociedade que só podem ser descritos como o inferno na Terra em nome do céu. Isto também pode ser visto, com uma tonalidade religiosa algo diferente, na República Islâmica do Irão. Nenhum deles representa uma ameaça ao domínio global do capital imperialista, nem às formas indígenas de domínio de classe e de exploração e opressão sem as quais o mercado capitalista mundial dominado pelo imperialismo teria pouca penetração ou apoio.
O que está em jogo com este vídeo não são os direitos dos muçulmanos a praticarem a sua religião, os quais não estão ameaçados nesses países, ao contrário da situação dos muçulmanos na Europa e nos EUA. É indisputável que este filme é uma provocação reaccionária, mas outros filmes também desencadearam ataques violentos, como o delicioso Persepólis que descreve a amarga experiência de vida na República Islâmica do Irão e tenta lidar com o domínio religioso e a própria religião através de uma lente progressista. Este filme precisa de ser visto em todo o lado, mas a sua exibição foi criminalizada na Tunísia, onde o governo liderado pelo partido Ennahda e os salafistas têm uma relação algo semelhante à do Egipto, e foi efectivamente proibido no Egipto. Em ambos os países, os artistas e os animadores culturais estão a ser atacados e estão em risco como parte da islamização da sociedade.
Os sentimentos religiosos entre o povo persistirão durante muito tempo e só os reaccionários e não os revolucionários querem que isso seja uma linha divisória fundamental na sociedade, mas como podem as massas populares vir a conhecer e a mudar a realidade e a transformar-se a si próprias, e como podem florescer as suas mentes e talentos e fontes de prazer, se a religião for o árbitro supremo do que é permitido?
O islamismo e a “Primavera Árabe”
Embora sempre tenha havido resistência nos países árabes, desde o 17 de Dezembro de 2010 na Tunísia que uma nova situação varreu o Norte de África e o Médio Oriente. Milhões de pessoas comuns começaram a acreditar que podiam provocar uma mudança fundamental e que podiam estar dispostas a oferecer as suas vidas por essa possibilidade. As ruas e as praças encheram-se de pessoas que discutem e debatem questões políticas, sociais, culturais e morais fundamentais e que estão decididas a ter a sua palavra. Elas deram uma lufada de ar fresco que soprou por todo um mundo onde predominava a asfixia política e social.
A “Primavera Árabe” tem representado uma crise das estruturas, da legitimidade política e da autoridade moral da antiga ordem numa região chave dominada pelo imperialismo. Ao mesmo tempo, desde o início que tem havido correntes contraditórias. Sem uma liderança verdadeiramente revolucionária com uma compreensão científica dos problemas e das possíveis soluções radicais, as massas populares têm estado presas aos que propagam soluções reaccionárias. Essas soluções podem parecer atraentes porque se baseiam em tradições e mentalidades enraizadas em relações sociais de exploração e opressão, bem como no poder de vários tipos de exploradores e opressores. Os muros da prisão foram vigorosamente sacudidos, mas em lado nenhum o povo ficou livre.
O islamismo tenta solucionar esta situação pintando essa prisão de verde e fechando as portas e as janelas que as pessoas abriram com sacrifício. Estas manifestações contra o vídeo são, na sua inspiração e efeitos globais, parte dos esforços para resolver esta crise por uma ou outra variante do domínio islâmico. Não há nada de emancipador nelas.
A combinação entre autoridade religiosa e poder de estado dificilmente é um exclusivo dos povos do Médio Oriente e Norte de África, historicamente ou nos dias de hoje. Na sua cerimónia de homenagem aos seus quatro homens mortos na Líbia, o Presidente norte-americano Barack Obama e a sua Secretária de Estado Hillary Clinton invocaram uma vez atrás de outra o deus deles e o “papel especial” do país deles no mundo, supostamente atribuído por deus. A Rússia tem assistido a um alinhamento igualmente hediondo entre deus e estado – no fim de contas, as artistas de performance chamadas Pussy Riot foram encarceradas por “blasfémia”, não por terem denunciado o Presidente Vladimir Putin, mas por terem insultado o deus dele.
Mas é uma particularidade dos países árabes hoje em dia, não só por razões históricas mas também por causa da entrada das vastas massas na vida política e da contestação delas das suas circunstâncias, pelo que, agora mais que nunca, nenhum regime reaccionário – nenhum representante, velho ou novo, da ordem mundial e as suas componentes locais – é possível sem a autoridade e a legitimidade da religião.
Mesmo que os reaccionários tenham agora retomado a iniciativa na região, isto não nos deve cegar para o facto de a velha ordem não poder ser assim tão facilmente reparada de novo, numa forma velha ou nova. Estes protestos mostraram dramaticamente que a ascensão do islamismo tem consequências contraditórias, fornecendo tanto potenciais vantagens ao domínio imperialista como problemas à actual configuração imperialista do mundo. Também salientaram a continuação do explosivo descontentamento e desordem entre os vastos sectores pobres do povo que os islamitas capitalizaram e reencaminharam. A questão não é saber se os oprimidos podem ser mobilizados, mas sim sob que bandeira e para que interesses e perspectivas.
Parece improvável que a região esteja a ponto de se retirar numa estabilidade reaccionária de longo prazo. A roda ainda está a girar. Isto é tanto um fruto da “Primavera Árabe” como um importante factor extremamente favorável para os que ardem de desejo de ver as insurreições de 2010-11 resultarem em revoluções completas.
Mas enquanto a maioria das pessoas nestes países se sentir compelida a escolher entre “o Obama deles e o nosso Osama”, ou qualquer outra versão do confronto entre o domínio imperialista e os seus valores hipócritas e ao seu próprio serviço, por um lado, e o domínio imperialista mais a tirania religiosa e o obscurantismo, por outro, as massas populares não poderão resolver a crise do domínio reaccionário a seu favor e a favor da humanidade.
As massas populares não poderão fugir a este impasse a menos que outro caminho comece a tomar forma na teoria, num programa e na prática, com base numa compreensão das verdadeiras fontes subjacentes à sua opressão e humilhação, e na única verdadeira forma de esta situação poder ser completamente superada – através de um poder de estado revolucionário que vise romper o poder do imperialismo e de todas as formas de opressão e atraso através da transformação da situação e do pensamento do povo, em última análise como parte de refazer completamente o mundo através da revolução proletária e guiando-se pelo comunismo. É uma orientação que quase não está presente na mistura destas tempestades, mas que precisa muito de estar.