Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 6 de junho de 2016, aworldtowinns.co.uk
O referendo britânico sobre a saída da União Europeia:
Parem de pensar como britânicos (e como europeus!)
– Comecem a pensar na humanidade!
Por Robert Borba
A 23 de junho, a Grã-Bretanha irá votar se irá “Ficar” na União Europeia [UE] ou “Sair” dela. Quaisquer que sejam os dois lados em disputa, este referendo é uma armadilha reacionária.
De um lado estão aqueles que argumentam que a melhor maneira de controlar as fronteiras da Grã-Bretanha, de manter de fora as “hordas de imigrantes”, de deixar andar à solta o poder das grandes multinacionais britânicas, de derrotar os inimigos do país e de projetar globalmente o poder britânico é sair da UE. Do outro lado estão aqueles que alegam que a melhor maneira de controlar as fronteiras da Grã-Bretanha, de manter de fora as “hordas de imigrantes”, de deixar andar à solta o poder das grandes multinacionais britânicas, de derrotar os inimigos do país e de projetar globalmente o poder britânico é ficar na UE. A questão central que está a ser colocada às pessoas é muito simplesmente qual a melhor maneira de reforçar os interesses imperiais da Grã-Bretanha. Apoiar qualquer um dos lados deste debate não é neutro: apenas torna as pessoas cúmplices do imperialismo britânico e dos horrendos crimes que irá continuar a praticar, no país, no Médio Oriente, em África e no mundo – seja como parte da UE ou não.
A campanha do Ficar é liderada pelo primeiro-ministro britânico Cameron, ao lado do Partido Trabalhista de Jeremy Corbyn, e tem o apoio de dirigentes dos aliados-chave da Grã-Bretanha – o presidente norte-americano Obama, a chanceler alemã Merkl, o presidente francês Hollande – e do FMI, da OCDE e de empresas gigantes como a Morgan Stanley, a JP Morgan e a Goldman Sachs. É difícil imaginar um grupo mais oposto aos interesses do povo britânico. Mas os dirigentes da campanha do Sair estão lado a lado com eles: obtiveram o apoio de Donald Trump e do Putin da Rússia e são liderados por Tories [conservadores] de topo, incluindo o ex-Presidente de Câmara de Londres, Boris Johnson, que está a tentar usar a campanha para se tornar primeiro-ministro, e o Partido para a Independência da Grã-Bretanha (UKIP), de direita.
Cameron começou por se comprometer em 2013 a realizar um referendo sobre a permanência da Grã-Bretanha na UE, num esforço para lidar com as graves divisões na classe dominante britânica, e em particular no Partido Tory [Conservador] que então liderava o governo. Apesar disto, na altura isso deve ter parecido uma jogada segura – poucos imaginavam então outra coisa diferente de uma continuação do status quo. Agora, num contexto de intensificada tensão global, incluindo a rivalidade entre a Rússia e os EUA, a luta interna dentro da UE, e do aumento do nacionalismo ressurgente em toda a Europa e o Ocidente, o resultado está longe de ser certo.
Sair da UE, sonhando com um império recuperado
Inicialmente, os “Brexiteers” [defensores do Brexit – Britain Exit – a saída britânica – NT] alegavam que, libertada da “papelada” dos burocratas “não eleitos” da UE, a Grã-Bretanha iria prosperar. Estas alegações embateram numa barragem de estudos que surgiam várias vezes por semana defendendo que a Grã-Bretanha não podia deixar o quadro do mercado único europeu sem nenhum dano económico, pelo menos a curto prazo.
Embora recusando-se a fazer concessões em relação a este ponto, as forças do Sair têm tentado mudar os termos do debate. Como disse o dirigente do UKIP, Nigel Farage: “Não é a economia, estúpido! É a soberania.” Com isto, Farage está a apelar a sentimentos profundos que se agitam entre os milhões de pessoas que foram afastadas e marginalizadas pela forma como o mundo funciona atualmente e a apontar esse descontentamento para longe da sua verdadeira fonte. Os Brexiteers evocam os sofrimentos que são sentidos por vastos setores da sociedade britânica, a estagnação ou declínio dos salários reais, os cortes de benefícios, a deterioração de serviços públicos como os transportes e os cuidados de saúde, e usam tudo isto para jogar com o sentimento de direito às coisas que tem estado profundamente embutido na sociedade britânica devido a gerações de vida privilegiada sob o Império, que continua a existir hoje, e dirigem toda esta raiva e frustração contra todos aqueles que supostamente estão “por baixo deles”, em particular os imigrantes e os muçulmanos. Por exemplo, o conservador proeminente David Davis denuncia a UE como “máquina de transformação de empregos – deslocando os empregos dos cidadãos britânicos para as mãos dos imigrantes que vêm da UE” (Sunday Times, 28 de maio de 2016), sobretudo os europeus do Leste, vindos da Roménia, da Bulgária e da Polónia.
Mas quem foi realmente responsável pelo esvaziamento da indústria manufatureira britânica na última geração, destruindo dezenas de milhares de empregos e baixando os salários? Não foram os baristas romenos que deslocaram a indústria de construção naval das docas de Newcastle e do nordeste da Grã-Bretanha para a Ásia em busca de maiores lucros. E quem foi responsável pela medonha escassez de habitação disponível que está a levar ao aumento em espiral do número de sem-abrigo em todas as cidades britânicas – terão sido os trabalhadores polacos que trabalham longas horas nos setores mais sujos e mais subalternos da indústria de construção? Ou terá sido o resultado das políticas governamentais concertadas para desmantelar o estado social e vender as casas públicas, as quais foram iniciadas pela primeira-ministra britânica Thatcher e continuadas tanto pelos conservadores como pelos trabalhistas – em combinação com a atividade especulativa dos grandes construtores civis e banqueiros que, embora tenham beneficiado de enormes ajudas governamentais após a crise financeira de 2008, financiam essencialmente habitações no setor de luxo que estão para além das possibilidades de todos, menos da elite global e britânica?
É esta mesma classe de capitalistas que tem vindo a governar durante os anos da globalização imperialista, com a crescente desigualdade que a acompanhou na Grã-Bretanha e em todo o mundo. Menos de 1 por cento da população manteve a mesma quantidade de aumento da riqueza nos últimos 10 anos (26 por cento) que todos os 50 por cento do fundo da sociedade, gerando níveis de desigualdade não vistos há gerações – um processo que, e não devemos esquecer isto, ocorreu tanto sob governos trabalhistas como conservadores.
Este visar dos imigrantes como a causa dos sofrimentos das massas é ecoada de uma forma mais elegante por Cameron e a campanha do Ficar, que prometem constantemente virem a “obter o controlo das fronteiras britânicas”. Esta mensagem equivale a uma mentira direta sobre a causa do sofrimento de milhões de pessoas, e anda de mãos dadas com uma moralidade nacionalista abertamente reacionária. Os anti-imigrantes não se preocupam um chavo com as razões por que milhões de imigrantes estão a fugir dos países deles nem com o que lhes acontece.
Com a visão bloqueada por palas patrióticas, as pessoas são treinadas a não ver o que é cegantemente óbvio: que uma das principais forças responsáveis por afastar as pessoas das terras delas, desde o Afeganistão a África, é o próprio imperialismo britânico, em cumplicidade e por vezes em rivalidade com outras potências imperialistas. Basta passear pelas ruas das comunidades imigrantes de Londres Oriental e ver as caras dos cuidadores, dos homens do lixo, dos condutores de minitáxis – afegãos, somalis, bangladexianos, paquistaneses, indianos, iranianos, sírios. São caras que refletem séculos de Império, com cada cara a contar uma história de invasão, ocupação e saque, desde os campos de concentração e tortura que a Grã-Bretanha infligiu aos quenianos durante a chamada revolta Mau-Mau ao seu apoio resoluto ao apartheid na África do Sul (com a primeira-ministra britânica a denunciar Mandela como “terrorista”) – a lista não acaba, página atrás de página.
Pessoas destituídas de histórias, os migrantes são depois tratados por ambos os lados como nada mais que uma fonte de benefícios para a Grã-Bretanha e o povo britânico: o quanto retiram (segundo o Sair) ou acrescentam (segundo o Ficar) ao próprio bem-estar deles? Desapareceu qualquer consideração em relação às vidas e à situação dos próprios migrantes. Para dar apenas um exemplo: durante a última semana de maio, quando emergiram notícias de que mil seres humanos tinham perdido a vida num esforço desesperado para atravessarem o Mediterrâneo, isso não foi mencionado uma única vez num painel da BBC de uma hora de debate sobre a UE que incluiu conservadores e ainda o ex-dirigente trabalhista Ed Milliband e a deputada do Partido Verde Caroline Lucas, embora a discussão se tivesse centrado esmagadoramente na imigração.
O colete de forças mental desta campanha está a treinar as pessoas a estreitarem a visão delas para a sua própria situação – “como é que isto me afeta”, “a nós, os britânicos?” – como se as vidas britânicas de alguma maneira valessem mais que as dos sírios que fogem da guerra, ou a dos etíopes ou somalis que fogem da pobreza abjeta e do caos. Mas não valem! Tal como disse Bob Avakian, presidente do Partido Comunista Revolucionário, EUA (revcom.us): “Internacionalismo – o mundo inteiro está primeiro!” Esta é a única moral merecedora de qualquer pessoa que deseje um mundo melhor.
O cruel apontar aos imigrantes por parte de ambas as campanhas não visa apenas “içar a ponte levadiça” e apertar o controlo da imigração, mas também intimidar e amedrontar os milhões de imigrantes que já cá estão. Os valores centrais da britanidade estão a ser vigorosamente reafirmados – tal como o estão os valores chauvinistas europeus em inúmeros outros países imperialistas. Ecoando o apelo do candidato presidencial populista fascista norte-americano Donald Trump para “Tornar a América grande de novo”, os políticos britânicos apelam a colocar de novo o “Grã” [Grande] em “Grã-Bretanha” – o que só pode significar a intensificação do horror para milhões de pessoas em todo o mundo que têm sofrido às mãos da dominação britânica, militar e económica, e também para milhões de pessoas no próprio país.
O engodo reacionário da “civilização europeia”
A posição global da Grã-Bretanha no mundo é mantida inalterada por ambos os lados, e a Europa é tratada como sendo muito parecida a um grupo comunitário local. “Nós vamos”, alega o dirigente trabalhista Corbyn, “ser mais fortes como país se cooperarmos com os nossos vizinhos para os enfrentarmos em conjunto”. (labourforbritain.org.uk)
Mas a UE não é nenhuma associação benigna de bairro. Enquanto funcionar em conjunto por um bem comum, beneficia as classes capitalistas dos 28 países europeus que, independentemente da desigualdade e rivalidade entre eles, desfrutam de estar no lado dominante da divisão do mundo em países oprimidos e opressores. Tudo o que diz respeito à Europa, desde os museus que são em grande parte coleções de pilhagem colonial, às suas principais empresas e à sua cultura, está marcado pela história de séculos de comércio de escravos, de opressão colonial e de guerras pelo império. A Europa não é um facto geográfico que pode ser “redefinido”, como defendem muitos europeus que se autoproclamam de esquerda, é uma realidade histórica que tem de ser enfrentada através da revolução e derrubada.
Como defendia um comunicado recente do Grupo do Manifesto Comunista Revolucionário sobre a crise migratória: “O poder político em cada estado europeu baseia-se e protege todo um sistema socioeconómico de exploração cujos tentáculos chegam a todo o mundo. A globalização só tornou esta exploração ainda mais omnipresente, mais brutal e mais disruptiva do atual tecido social. Todos os governos destes estados são forçados a impor e a facilitar este processo. [...] A crença na possibilidade de uma Europa acolhedora e inclusiva, e ainda assim imperialista, é pior que apenas uma ilusão. Esconde a realidade atual e passada do que a democracia capitalista ocidental e o seu sistema de valores perpetuam no mundo; ela não pode ser implementada, independentemente de quem for eleito; e é incapaz de enfrentar os ataques reacionários ou as ululantes forças fascistas ou ainda os islamitas que fingem oferecer uma moral e uma ordem social alternativas em oposição à ‘decadência e miséria oferecidas pelo Ocidente’”. Veja-se apenas a forma como Tsipras e o Syriza foram convertidos de críticos social-democratas em brutais impositores da Europa Fortaleza!
“A política do possível” ou realmente emancipar a humanidade?
Há muitas pessoas que estão repugnadas com ambos os lados deste debate. Num artigo intitulado “Os políticos que apoiam o Brexit são todos medonhos, tal como o são os políticos contra ele”, o comediante Frankie Boyle argumentava que “ambas as campanhas têm sido completamente racistas” e interrogava-se se os britânicos são “os fanáticos hediondos que cada uma destas campanhas tem assumido serem” (The Guardian, 1 de junho). Um outro comentador, Gary Younge, lamentou que: “Na ausência de um desafio mais vasto à ordem neoliberal, simplesmente votar sim ou não é equivalente a escolher a vala para morrer”. Mas depois Younge escolhe relutantemente a vala dele. Basta! “Escolher a nossa vala” não é neutro – as pessoas precisam de acabar com esta lógica do “mal menor”, de rebaixar as perspetivas delas para “a política do possível”, de limitar a visão delas a resultados aparentemente palpáveis dentro do quadro capitalista existente: isto acaba invariavelmente em reconciliação com os horrores.
O que muitas destas pessoas não entendem é o papel totalmente reacionário que esta votação está a representar na sociedade em geral, independentemente de qual dos lados venha a ser favorecido. Este referendo está a treinar intensivamente as pessoas a ver as eleições na sociedade capitalista como uma ferramenta de soberania popular e uma avenida para mudar o mundo, quando o que elas fazem na realidade é cobrir com roupagens democráticas o regime de uma classe de capitalistas exploradores. Qualquer que seja o lado que ganhe, os crimes reacionários do imperialismo britânico irão ser propagandeados como “a vontade do povo”. Mas, tal como Avakian tem salientado, “enquanto a sociedade humana estiver dividida em diferentes classes de pessoas, não haverá, nem pode haver, isso das ‘eleições livres’, no sentido de não haver nenhum grupo da sociedade com maior influência que outro nas eleições e na tomada de decisões políticas em geral. Num mundo deste tipo, um grupo na sociedade – representando fundamentalmente uma classe dominante de um tipo ou outro – terá sempre maior influência que o resto das pessoas.”
As pessoas estão a ser marteladas com a ideia de que esta é a “votação mais importante na vida delas” e que o voto delas pode mudar o destino do país de uma forma importante. Mas o que esta votação não irá mudar é a posição fundamental da Grã-Bretanha na cadeia alimentar imperialista global. A pertença à NATO não está a ser votada, nem a pertença ao Conselho de Segurança da ONU, nem a sua ocupação da parte norte da Irlanda, e aí por diante. A posição da Grã-Bretanha como parte da estrutura de defesa europeia, e em particular a sua “relação especial” com os EUA na pilhagem e exploração de grande parte do mundo pelas grandes multinacionais e bancos britânicos, a sua imposição armada disto, e o seu saque continuado das vidas das pessoas também no próprio país – tudo isto irá continuar dentro ou fora da UE.
O que este referendo irá fazer é reforçar as ilusões de que a democracia parlamentar representa a vontade das pessoas e as tendências a não ver para além das possibilidades oferecidas por este enquadramento. Numa época que clama por uma perspetiva internacionalista e revolucionária que vise todo o sistema, os argumentos da “esquerda” que apoia tanto o Ficar (o ex-Ministro das Finanças grego Varoufakis, Slavoj Zizek) como o Sair (o Partido Socialista dos Trabalhadores britânico, SWP) estão a enganar aqueles que anseiam pelo fim dos pesadelos criados pela Europa e pela Grã-Bretanha no mundo, e amarra as esperanças deles aos partidos imperialistas há muito desacreditados, enquanto estes lutam por posições parlamentares.
Quer com a perspetiva estreita do interesse próprio (o que está em causa nisto para mim como britânico), quer com a perspetiva mais de “esquerda” do que está em causa para “a classe trabalhadora britânica”, o que ambas as campanhas representam é o treino intensivo das pessoas para verem a relação delas com o mundo pela lente dos interesses do imperialismo britânico e para confinarem a luta delas ao que é realizável dentro do quadro democrático burguês. E embora não seja difícil ver porque é que muitas pessoas estão enfurecidas com toda a bílis racista derramada pelo lado do Sair, num mundo em que a Europa está no topo da cadeia alimentar imperialista, “expandir” isto para uma “perspetiva europeia” não é um progresso.
O desemaranhar do centro político convencional em toda a Europa e nos EUA e a crescente polarização da sociedade coloca sérios perigos. Mas estas mesmas condições explosivas também trazem oportunidades reais para esculpir um tipo diferente de futuro. Há realmente uma necessidade urgente para milhões de pessoas se unirem para resolver os enormes problemas que as pessoas enfrentam na Grã-Bretanha e em todo o mundo – mas não da perspetiva do “nós britânicos” nem do “nós europeus”, mas antes de uma perspetiva internacionalista que se baseie nas necessidades da humanidade oprimida – e isto significa colocar a Union Jack [a bandeira britânica –NT] no museu a que pertence. Não precisamos nem da nostalgia pelas promessas não cumpridas de uma democracia social europeia cada vez mais falida, nem de perseguir pateticamente os sonhos do império perdido! Precisamos de olhar para além dos horizontes do atual sistema e começar a construir um movimento que lute não só para derrotar a investida reacionária mas que também possa conduzir à única solução real, a revolução comunista.