Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 12 de Julho de 2010, aworldtowinns.co.uk
Afeganistão: A dolorosa crise da ocupação gera insubordinação
O comandante supremo dos EUA no Afeganistão, General Stanley McChrystal, foi afastado do seu cargo e substituído pelo General David Petraeus, seu superior como responsável por todas as forças norte-americanas no grande Médio Oriente. Numa entrevista dada a um repórter da revista Rolling Stone (rollingstone.com/politics/politics-news/the-runaway-general-the-profile-that-brought-down-mcchrystal-192609/) que passou um mês com o general na Europa e no seu quartel-general no Afeganistão, McChrystal tinha criticado e mesmo ridicularizado a sua liderança civil, incluindo o Presidente Barack Obama, o vice-presidente Joe Biden, o Conselheiro Nacional de Segurança General James L. Jones, o representante especial da administração para o Afeganistão e o Paquistão, Richard C. Holbrooke, e o embaixador norte-americano Karl W. Eikenberry.
A insubordinação do general e a sua subsequente demissão surgiram após um outro incidente notável, uma troca pública de críticas amargas entre a administração Obama e responsáveis do governo de Hamid Karzai no Afeganistão.
Estes desafios abertos ao governo norte-americano são indícios de uma crise em apodrecimento que a guerra do Afeganistão criou aos EUA e à aliança da NATO que lideram essa ocupação. O problema parece ainda mais sério para esses imperialistas no sentido em que esta demissão representa algo mais que uma simples reacção a um descrédito público mal recebido.
O que antes parecia ser uma guerra rápida e fácil para os EUA e outros imperialistas ocidentais acabou por ser algo diferente. Uma década depois, está a ficar cada vez mais difícil para eles. O nível de vítimas nas tropas ocupantes está a aproximar-se do nível da guerra do Iraque no seu auge. Só os EUA já gastaram mais de 200 mil milhões de dólares na guerra, sobretudo em aspectos militares. Há cerca de 130 mil tropas ocupantes, sem contar com os mercenários privados, e mais soldados norte-americanos estão a caminho.
O aumento do número de forças e de despesas militares desta guerra apenas levou a uma deterioração da situação política e militar dos imperialistas e arrastou-os ainda mais fundo numa guerra sem fim à vista.
De facto, a forma como o General McChrystal tratou alguns dos líderes políticos e o modo com eles reagiram revela algo sobre a crescente frustração e impaciência entre os imperialistas e as verdadeiras diferenças políticas sobre a forma de lidar com a guerra que estão a começar a explodir entre as suas próprias fileiras, antes unidas.
Entre essas diferenças está a forma de lidar com os “insurgentes” ou, por outras palavras, se devem ou não negociar com os talibãs com vista a alguma forma de acordo de partilha de poder. Também tem havido desacordo sobre saber se devem ou não aumentar o número de tropas ocupantes que já tinha sido expandido quando McChrystal exigiu mais 40 mil soldados em Junho de 2009, um mês depois de ter sido nomeado para gerir a guerra. Isto parece ser uma tentativa de fortalecer a posição para negociar.
A ironia é que Hamid Karzai, o seu irmão Ahmad Vali Karzai e o seu governo têm sido os mais directos defensores do General McChrystal. Eles fizeram tudo o que puderam para impedir que a administração norte-americana o demitisse. Isto mostra o entrelaçar das duas questões acima referidas com uma terceira: como lidar com o regime que os próprios EUA e seus aliados instalaram e com o chefe de governo que nomearam, Hamid Karzai.
Karzai e a natureza da sua insubordinação em relação aos EUA
No último par de anos temos ouvido falar muito na corrupção que tomou o controlo do Afeganistão, a ponto de o seu governo ser considerado um dos mais corruptos do planeta, e da incapacidade e falta de vontade de Karzai em limpar a casa. Mesmo alguma comunicação social norte-americana tem denunciado abertamente o envolvimento do irmão do presidente e de outros antigos e actuais membros do governo e altos funcionários no tráfico de droga. O conteúdo dessa denúncia não é de que o governo está, de alto a baixo, literalmente nas listas de pagamentos do imperialismo, mas que os seus membros estão mais interessados no tráfico de droga, nos subornos e noutras formas de acumulação de fortunas pessoais depositadas em bancos estrangeiros do que em agir para o “grande bem” dos objectivos dos seus patrões.
Revisitemos brevemente o conflito entre Karzai e os EUA que escalou quando Obama tomou posse e aumentou ainda mais quando Karzai se apresentou para ser reeleito em Agosto de 2009.
Muitos responsáveis norte-americanos e britânicos já o tinham acusado de falta de vontade em combater a corrupção. Por isso, houve rumores de que os EUA e outros imperialistas ocidentais poderiam não o apoiar para um segundo mandato. Porém, no final, eles parecem ter chegado à conclusão que, devido à complexidade da situação política, essa mudança poderia vir a criar ainda mais problemas para eles. Por exemplo, pensaram em substitui-lo pelo seu rival Abdullah Abdullah, um ex-ministro dos negócios estrangeiros de Karzai. Mas trazer esse membro tajique da Aliança do Norte dos senhores da guerra que foram os principais aliados dos EUA na sua invasão original iria criar ainda mais problemas entre as diferentes facções que agora apoiam a ocupação, incluindo os reaccionários senhores da guerra pachtuns.
Em suma, nessa altura não havia alternativa a Karzai. Além disso, o próprio Karzai sentiu que não era o momento de partir. Talvez tenha achado que os serviços que tem prestado aos imperialistas valiam mais do que o que ele tem recebido.
Por isso, no final tiveram que o apoiar para outro mandato. Porém, o governo de Obama impôs condições. Obama disse: “Tal como eu indiquei [a Karzai] (...) a prova não vai estar nas palavras; vai estar nos actos” (The New York Times, 3 de Novembro de 2009). A sua Secretária de Estado Hillary Clinton disse que o presidente do Afeganistão “podia fazer melhor”, dizendo-lhe para criar uma “comissão anticorrupção” e avisando-o de que, caso contrário, os EUA poderiam cortar a “ajuda” civil. Quando Karzai aceitou e criou uma comissão para trabalhar com o FBI e as polícias da Grã-Bretanha e da União Europeia, o embaixador norte-americano Eikenberry vociferou que isso não era suficiente: “As palavras são baratas. São precisos actos.” (BBC, 16 de Novembro de 2009).
Depois de Karzai ter sido reconduzido no seu cargo, convocou para Cabul uma “conferência nacional contra a corrupção”, onde culpou os contratos e a ajuda externa não solicitada pela fraqueza e corrupção do seu governo. Disse: “Quando o governo é enfraquecido, quando a autoridade do presidente é enfraquecida, quando a autoridade do Parlamento e dos ministros e seus adjuntos é enfraquecido e os seus salários são pagos por estrangeiros e os seus carros blindados são fornecidos por estrangeiros eles pensam que têm algum apoio externo e ninguém lhes pode dizer o que devem fazer. (...) Parte da corrupção é um produto deste problema. E isto tem criado um outro governo paralelo ao governo do Afeganistão.” (Sítio internet em persa da BBC, 15 de Dezembro de 2009).
Persistindo no seu desafio aos EUA e aos outros países da NATO, Karzai convidou o presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad para o seu palácio, onde pôde denunciar os ocupantes e exigir a saída deles. Numa outra ocasião, Karzai ameaçou os norte-americanos: “Se vocês e a comunidade internacional me pressionarem mais, juro que me vou juntar aos talibãs” (NYT, 2 de Abril de 2010).
Este comportamento enfureceu alguns políticos e comentadores norte-americanos. Estavam escandalizados por o seu lacaio poder estar a ser tão insubordinado. Por exemplo, a 30 de Março o colunista Thomas Friedman escreveu no NYT:
“O presidente Hamid Karzai do Afeganistão convidou o presidente do Irão, Mahmoud Ahmadinejad, a Cabul – para colocar um dedo no olho da administração Obama – depois da Casa Branca ter anulado um convite ao Sr. Karzai para ir a Washington por o presidente afegão ter esvaziado um painel independente que tinha descoberto uma fraude generalizada na sua reeleição o ano passado. (...) É isto que estamos a obter por estarmos a arriscar milhares de soldados norte-americanos e por já termos gasto 200 mil milhões de dólares. Estas notícias são uma luz vermelha a acender-se.”
Vale a pena mencionar que McChrystal se manteve afastado destas tensões entre Karzai e a Casa Branca e que, durante esse período, recebeu calorosamente Karzai no seu quartel-general.
A demissão de McChrystal não resolveu este conflito e continuam a surgir críticas abertas dos dois lados. Por exemplo, recentemente, o procurador-geral afegão Mohammad Ishaq Alako disse que o embaixador norte-americano “o tinha pressionado a iniciar processos específicos contra figuras de alto perfil” e o tinha instigado a demitir-se caso não o fizesse. Alako continuou: “Será que a ética diplomática permite ameaças como esta?” (NYT, 29 de Junho de 2010).
Segundo o mesmo relato, a 28 de Junho “a Representante Nita M. Lowey, uma Democrata de Nova Iorque e presidente do Subcomité de Apropriações da Câmara dos Representantes para a ajuda externa, anunciou que iria cortar a maior parte dos 3,9 mil milhões de dólares da ajuda externa pedida pela administração Obama para o Afeganistão até o país conseguir controlar a corrupção”.
Isto coloca duas questões ou, em vez disso, a mesma questão vista de dois ângulos diferentes. Por um lado, uma vez que os imperialistas nomearam o seu próprio homem, porque é que pensam em afastá-lo e continuam a criticá-lo? Por outro lado, o que é que isso significa em relação a Karzai? Como é que ele pode ousar ser tão desrespeitoso em relação àqueles a quem ele deve a sua coroa? E porque é que ele os desafia abertamente?
A questão é que, devido à situação da ocupação, complexa e a deteriorar-se, ele teve algum espaço de manobra. As contradições entre os EUA e outros imperialistas e os governantes reaccionários dos países que eles oprimem não significam automaticamente que esses governantes sejam independentes ou representem os interesses nacionais dos povos.
Além disso, Karzai não só tinha algum espaço de manobra face à ameaça ao seu lugar, como pôde sentir que conseguia obter alguma pretensa legitimidade ao desafiar verbalmente as grandes potências e resistindo à sua ordem de demissão. Outros reaccionários colocados no poder pelos imperialistas já antes o tinham feito e o continuam a fazê-lo, pelo que, por que não Karzai?
Afinal de contas, os EUA e Companhia sabiam que Karzai e o seu governo eram corruptos quando os instalaram no poder. O seu maior problema não é Karzai mas a situação que eles provocaram. Quando invadiram o Afeganistão, os imperialistas prometeram reconstruir o país e trazer-lhe prosperidade, segurança, a libertação das mulheres, paz e democracia. Agora, nove anos depois, a vasta maioria das pessoas não viu quase mais nada a não ser mais pobreza, uma economia baseada no tráfico de droga, guerra, bombardeamentos aéreos, assassinatos, violações, insegurança e a continuação da opressão das mulheres – e a humilhação nacional. Os imperialistas estão a tentar atirar todas as culpas sobre um governo corrupto. Mas o governo corrupto não é a causa desta situação; pelo contrário, é um produto desta guerra e desta ocupação. De facto, os EUA não têm muitas escolhas a não ser seguir com Karzai porque, pelo menos de momento, eles parecem não ter nenhuma alternativa a ele.
Dependendo do desenvolvimento da situação, estas escaramuças podem intensificar-se ainda mais e manifestar-se de formas mais impossíveis de prever e mais explosivas. Estes debates são indícios de contradições objectivas.
A demissão de McChrystal e um possível ajuste de estratégia
O que liga as críticas públicas expressas por McChrystal e Karzai e aqueles que eram os seus alvos é a crise criada pela forma como a guerra se está a desenvolver.
A demissão de McChrystal não pode ser limitada ao que ele disse à Rolling Stone. É a continuação de discordâncias a meio de uma situação alarmante para os imperialistas.
Parece que a demissão de McChrystal deu aos decisores políticos norte-americanos uma oportunidade para alterarem alguns elementos da sua estratégia. “Em privado, pelo menos um responsável sénior da Casa Branca sugeriu que se usasse a saída do General McChrystal como desculpa para uma limpeza da casa”, relatou a 30 de Junho o NYT.
No debate político nos círculos governamentais e militares dos EUA iniciado durante os últimos meses da administração Bush e que aumentou durante os primeiros meses após a posse do seu sucessor, Obama acabou por escolher apoiar a posição identificada com McChrystal, uma ampla escalada das forças terrestres. A posição alternativa, identificada com Biden e as outras pessoas que McChrystal acabou por denegrir na Rolling Stone, era a de que uma “pegada” (ou melhor dito, marca de bota) tão grande só iria aumentar o ódio popular aos ocupantes. Agora, apesar de o “impulso” ainda estar em curso e de mais tropas norte-americanas ainda estarem para chegar, estas tropas já mostraram não poder “limpar e manter”, tal como esperado, os bastiões estabelecidos pelos talibãs, ao mesmo tempo que os talibãs e os seus aliados conseguem desencadear ofensivas inesperadas contra os ocupantes em novas zonas. O outro aspecto da nova estratégia “COIN” (contra-insurreição) – construir elementos de poder político pré-ocupação em antigas zonas insurgentes – também fracassou manifestamente.
Em Junho do ano passado, Obama demitiu o antecessor de McChrystal e abraçou McChrystal e a sua abordagem da guerra. Esta nova demissão – mais uma substituição abrupta de generais de topo que não acontecia nos EUA desde a guerra da Coreia – parece dever-se a um crescente desânimo e a divisões entre os responsáveis por essa guerra.
Responsáveis civis norte-americanos e o General Petraeus salientaram que a estratégia de base não irá mudar. Porém, há pelo menos uma política que poderá vir a ser ajustada. O artigo da Rolling Stone torna claro que muitos soldados norte-americanos estão furiosos com os seus comandantes porque já não os autorizam a “pegar nas suas armas” ou, por outras palavras, a encher de balas qualquer afegão que lhes apeteça matar e “pura e simplesmente bombardear o local”. As regras de compromisso associadas à estratégia COIN definem que eles devem tentar evitar confrontos em que pessoas desarmadas possam morrer ou usar o seu poder aéreo contra civis. Isto é suposto ajudar a conquistar “os corações e as mentes”, explicou McChrystal às suas tropas insatisfeitas.
Ao mesmo tempo, as Forças de Operações Especiais, comandos descritos por um ajudante de McChrystal como uma “máquina de matar” que muitas vezes invadem aldeias à noite e disparam indiscriminadamente, foram em grande parte construídas no âmbito da COIN. Sob a liderança de McChrystal, ex-responsável pelas Forças de Operações Especiais dos EUA em todo o mundo, o número dessas unidades de comandos foi multiplicado de quatro para dezanove. E, apesar de toda a preocupação declarada de McChrystal em reduzir as vítimas civis devido ao que ele chama de razões de “sangue frio” – ganhar a guerra – as forças da NATO admitem ter matado cerca de 90 civis entre Janeiro e Abril deste ano, um enorme aumento em relação ao mesmo período do ano passado. Como disse o próprio general – se por pesar ou orgulho não ficou claro – “Abatemos um surpreendente número de pessoas mas, que seja do meu conhecimento, nenhuma delas alguma vez se provou ser uma ameaça” (NYT, 26 de Março de 2020).
Essas regras de compromisso podem mudar. Na audição no Senado dos EUA onde foi confirmado o seu novo cargo, Petraeus disse que queria “assegurar às mães e pais dos que lutam no Afeganistão que eu vejo como imperativo moral a mobilização de todos os recursos possíveis para proteger os nossos homens e mulheres de uniforme. (...) Os que estão no terreno têm que ter todo o apoio de que necessitam quando estão numa situação difícil.” O NYT chamou a isto – o que é um indício de que os ocupantes podem regressar às velhas regras de compromisso, com menos limitações oficiais para matarem – “o seu primeiro afastamento das políticas do ex-comandante supremo norte-americano, General Stanley A. McChrystal” (29 de Junho de 2010).
Como ficou claro a todos os que leram a entrevista dada à Rolling Stone, McChrystal é um reaccionário extremo a todos os níveis. O seu desprezo pelos civis não se estende apenas aos do Afeganistão mas ao seu próprio país natal, bem como a outros. Agora, Petraeus, cuja imagem é menos brutal, parece estar a ir na direcção de tornar a própria guerra ainda mais brutal. (De facto, os dois homens são produtos altamente conscientes dos mais elevados graus da educação militar e civil norte-americana.) O que motiva estes debates sobre as regras de compromisso, tal como o debate político sobre como gerir a guerra global, não é principalmente a sensibilidade dos comandantes. Isto reflecte uma situação objectiva contraditória: quanto mais matam, mais os ocupantes são odiados, mas a sua ocupação é inerentemente odiosa e o povo irá resistir-lhe independentemente do resto. Os ocupantes tratam todos os afegãos como potenciais inimigos e isso é cada vez mais a realidade. Os comentários do General Petraeus são um sinal de que haverá ainda mais assassinatos de civis nos próximos meses.
Independentemente de como os governantes dos EUA possam tentar resolver as suas contradições objectivas e a sua luta interna, está isto: o Presidente Obama aproveitou a ocasião da demissão de McChrystal para recordar a todos que: “A nossa política muitas vezes alimenta conflitos, mas temos que renovar o nosso sentido de objectivo comum” (obamawhitehouse.archives.gov/blog/2010/06/23/president-obama-afghanistan-general-mcchrystal-general-petraeus, 23 de Junho de 2010). Ele reafirmou que os EUA não estão prestes a sair do Afeganistão.
A ocupação do Afeganistão e tudo aquilo que lhe está associado deu aos talibãs, odiados por muita gente no Afeganistão, uma oportunidade para encontrarem alguma base de apoio entre as pessoas de algumas zonas, sobretudo no Afeganistão meridional e leste.
O desenvolvimento da situação revela cada vez mais que as raízes de todos os problemas do Afeganistão – incluindo os talibãs, Karzai, os senhores da guerra, a pobreza e a miséria – estão inteiramente ligadas ao domínio imperialista. As grandes potências têm sido o principal pilar dos reaccionários afegãos e do seu sistema social há mais de um século. O primeiro passo para lidar com estes problemas é combater os imperialistas. É por isso que as pessoas em todo o lado têm que se opor vigorosamente à ocupação do Afeganistão.