A verdadeira história da revolução maoista no Tibete
6. Os sonhos terrenos do dalai-lama
No final dos anos 80, as cidades do Tibete foram repetidamente sacudidas por agudas lutas antigovernamentais. As revoltas foram reprimidas por balas governamentais e prisões em massa. Essas revoltas tibetanas resgataram o dalai-lama de longos anos de obscuridade internacional. De repente, no final dos anos 80, ele era tratado como celebridade por poderosas forças em todo o mundo — e mesmo distinguido com o Prémio Nobel da Paz de 1989.
Uma imagem altamente romantizada do dalai-lama está a ser apresentada para consumo público: o dalai-lama é retratado como um santo moderno que leva a cabo uma luta não violenta contra impossíveis dificuldades. Ele é apresentado como líder e centro espiritual de um movimento de independência por um “Tibete Livre” — em luta contra o poderoso governo central da China encabeçado por Deng Xiaoping.
Esta imagem é essencialmente falsa.
A verdade é que, durante quase 20 anos, o dalai-lama centrou as principais esperanças dele em chegar a um acordo com o dirigente supremo da China, Deng Xiaoping. Ele tem a esperança de que a sua aristocracia exilada possa ser restabelecida numa parte dos seus antigos privilégios e poder — em troca de ajudar a estabilizar essa região para os actuais governantes da China.
Em 1987, o dalai-lama retirou as anteriores reivindicações de independência do Tibete e de retirada das tropas chinesas do Tibete. Em 1994, ele saiu mesmo em defesa da renovação para a China do estatuto comercial norte-americano de “Nação Mais Favorecida” (MFN) — chocando muitos dos apoiantes dele nos EUA que estavam a exigir que o governo norte-americano retirasse o estatuto de MFN para forçar uma mudança na política da China em relação ao Tibete.
Por outras palavras, à medida que aumentavam a opressão e a resistência das massas do Tibete durante os anos 80, o dalai-lama oferecia-se cada vez mais abertamente ao actual governo chinês — usando a luta no interior do Tibete como moeda de troca nas negociações dele.
Os motivos de um deus-rei deposto
O dalai-lama a oferecer-se a Deng Xiaoping? A pedir um acordo com o regime que disparou sobre os manifestantes de Lhasa e Tiananmen e inundou as cidades do Tibete com tropas e imigrantes han?
Alguns acharão isto difícil de acreditar. Mas a verdade é que, desde que foi para o exílio em 1959, toda a política dos círculos do dalai-lama andou à volta de recuperarem de alguma forma o estatuto privilegiado deles sobre o povo do Tibete. Isto emana da essência da natureza de classe deles — de núcleo exilado de uma classe dominante feudal derrubada.
Antes da revolução, os mosteiros do Tibete treinavam uma elite iniciada do clero que passava as vidas isoladas deles a cantar e a debater dogmas religiosos. Com o seu intenso misticismo e meditação auto-absorvida — o budismo lamaísta apresenta a sua vida monástica como sendo uma rede de oásis espirituais afastada dos sujos afazeres da vida quotidiana. Os apoiantes do dalai-lama ficam por vezes impressionados com a conduta “pacífica” dos monges que encontram. Mas, na realidade, esses monges e os mosteiros deles nunca estiveram afastados da sociedade de classes: a cultura religioso-aristocrática do Tibete é inconcebível sem a sua base económica de servidão e escravidão.
Numa discussão sobre a Índia, o Presidente Avakian descreveu como as práticas monásticas aparentemente espirituais estão profundamente ligadas ao sofrimento das massas comuns: “Aí estão todos esses monges instruídos e todo esse conhecimento concentrado nos mosteiros budistas da Índia antiga; e, contudo, esses monges — não que eles próprios vivessem uma vida necessariamente de extrema sumptuosidade, alguns deles eram bastante ascéticos e viviam de uma forma bastante simples — apesar disso, toda a forma de vida deles e, mais que isso, toda a sua aprendizagem e conhecimento privilegiados que estavam à disposição deles assentavam (...) numa base de cruel e extrema exploração e escravização das massas populares dessa sociedade. E também há a questão, claro, do conteúdo e do valor desse conhecimento e ‘sabedoria’ adquiridos pelos monges, pelos eruditos, etc., em condições em que eles estão divorciados das massas comuns e que na realidade levam as vidas deles de ‘erudição’ e ‘devoção’ apenas e justamente devido à exploração e escravização das massas.”11
Em suma, o budismo lamaísta é uma rede de instituições sociais que surgiu com base na propriedade feudal das terras e dos servos. E, por sua vez, a doutrina lamaísta justificou essa exploração ao insistir em que os justos nascem para dominar e os pecadores nascem para sofrer.
A classe dominante do velho Tibete compreende muito bem estas ligações: os sonhos deles de restabelecerem a “liberdade religiosa” e a “cultura tradicional” no Tibete requerem alguma forma de propriedade da terra e a exploração do seu povo. No fundamental, essa classe derrubada e o programa político dela não têm nada a ver com a libertação do povo do Tibete.
Uma vez compreendida esta natureza de classe, podemos perceber as motivações por trás das muitas reviravoltas da caminhada política do dalai-lama.
O Dalai-CIA-Lama
A 1 de Outubro de 1998, a organização do dalai-lama emitiu um comunicado em que admitia que durante os anos 60 tinha recebido da CIA milhões de dólares para enviar bandos armados de exilados tibetanos para o Tibete para minar a revolução maoista. Segundo o jornal The New York Times (1 de Outubro de 1998), a organização do dalai-lama disse ter recebido 1,7 milhões de dólares por ano para armar, treinar e financiar as suas forças contra-revolucionarias. Esse comunicado também revelou pela primeira vez que durante esse período o dalai-lama foi um agente pago da CIA e recebia dos serviços secretos dos EUA uma remuneração anual de 186 mil dólares.
A guerra contra-revolucionaria tibetana teve início em 1959, quando as forças feudais tentaram fazer uma insurreição contra-revolucionaria no Tibete. O dalai-lama fugiu do trono dele de deus-rei do Tibete e exilou-se na Índia. A CIA usou então o dalai-lama como testa-de-ferro das operações encobertas dela no Tibete e no ocidente da China. Mais de uma década depois, a CIA cancelou essas operações porque essa guerra encoberta tinha sido um fracasso total. O movimento maoista tinha desenvolvido importantes raízes no Tibete durante a reforma agrária e a Grande Revolução Cultural Proletária, enquanto a operação dos lamaístas/CIA tinha suscitado muito pouco apoio entre o povo do Tibete. As forças lamaístas que dirigiam essa operação encoberta eram conhecidas pela sua corrupção e passividade.
Durante 30 anos, os revolucionários maoistas alegaram que o dalai-lama e a família dele trabalhavam com a CIA e lideravam um exército mercenário de exilados que efectuava actos de sabotagem, espionagem e assassinatos no Tibete a partir de bases nos vizinhos Butão e Nepal.
Durante esse mesmo período, o dalai-lama autopromoveu-se como homem de paz e lutador pela justiça. Muita gente no Ocidente acreditou nisso e foi mesmo influenciada por essa forma extremamente conservadora do Budismo que é o Lamaísmo Tibetano. No Ocidente desenvolveu-se um movimento para o apoiar — frequentemente acreditando que ele representa a causa da autodeterminação e da justiça no Tibete. Ao mesmo tempo, depois da restauração do capitalismo na China após a morte de Mao Tsétung em 1976, o foco do trabalho do dalai-lama tem sido tentar uma acomodação com os novos governantes revisionistas em Pequim que assegure para ele e os seguidores dele uma posição dentro da estrutura de poder deles.
Agora, é a própria organização do dalai-lama que confirma que nos anos 60 ele esteve envolvido nas operações militares encobertas da CIA que visavam expandir o domínio dos EUA na Ásia. A única defesa feita no recente comunicado de 1 de Outubro é que o dalai-lama não enriqueceu pessoalmente com esses dinheiros da CIA. O comunicado alega que ele usou o salário dele da CIA para financiar escritórios em Nova Iorque e Genebra para promover a causa feudal lamaísta. Por outras palavras, admite que o dalai-lama era um agente pago da CIA, mas nega que era um agente corrupto da CIA.
A primeira grande desilusão do dalai-lama
Quando a classe dominante do Tibete fugiu para o exílio, em 1959, ela tinha duas esperanças: em primeiro lugar, que pudesse manter a sua ociosidade e introspecção no exílio e, em segundo lugar, que alguma grande potência surgisse de algum lugar e restaurasse o seu anterior esplendor... no Tibete.
Durante uma década, nos anos 60, os senhores feudais exilados do Tibete pensaram que o imperialismo norte-americano seria o grande salvador deles. Os feudalistas tibetanos instalados na cidade indiana de Dharamsala tentaram mostrar-se como sendo um governo no exílio ao estilo ocidental: adoptaram uma bandeira nacional, um hino e mesmo uma “constituição” que combinava o domínio dos lamas divinos com um parlamento no papel. Essa charada assemelhava-se à forma como os contras nicaraguenses da CIA aprenderam a enaltecer “a democracia e os direitos humanos” durante as campanhas de angariação de fundos em Washington DC nos anos 80.
Mas os mimados e divididos exilados tibetanos eram uma fraca força de combate com pouco apoio efectivo no Tibete. No início dos anos 70, a CIA abandonou rudemente os exilados tibetanos.
O imperialismo norte-americano nunca se interessou particularmente pelo Tibete — excepto como plataforma para pressionar a China. Os EUA nunca pretenderam instalar os lamaístas como governantes de algum futuro “Tibete independente”. Tal como todos os outros governos do mundo, o governo norte-americano defendeu oficialmente que o Tibete fazia historicamente parte da China e nunca reconheceu a organização do dalai-lama como legítimo “governo no exílio”.
O verdadeiro objectivo estratégico da política norte-americana era conter a revolução maoista e por fim “reabrir” toda a China à exploração norte-americana. Assim que os EUA viram uma abertura dentro do próprio governo chinês, perderam interesse no corrupto e isolado exército tibetano exilado.
Na sua autobiografia de 1990, o dalai-lama chama a esses dias da CIA de meados dos anos 60 um ponto alto do programa de restabelecimento tibetano. Ele queixa-se amargamente da forma como os patronos norte-americanos dele o abandonaram.
Depois dessa rude traição, o dalai-lama tinha apenas uma verdadeira esperança de restauração: que algum dia emergisse em Pequim um governo que estivesse disposto a partilhar o poder com ele e as sobras da antiga classe dominante do Tibete.
A esperança do dalai-lama em Deng Xiaoping
Desde o início do seu exílio que a velha classe dominante do Tibete percebeu que as forças direitistas associadas a Deng Xiaoping representavam uma linha muito diferente da das forças revolucionárias associadas a Mao Tsétung. A partir de posições dominantes dentro do Partido Comunista da China, Deng e outros seguidores da via capitalista eram contra o encorajamento de movimentos revolucionários no Tibete — dizendo que, num futuro previsível, o Partido Comunista da China deveria partilhar o poder com a velha classe dominante do Tibete e deixar intacto muito do feudalismo tibetano.
Quando Deng regressou à proeminência política em Abril de 1973, o dalai-lama expressou abertamente a esperança de regressar a Lhasa. Como disseram os maoistas nessa altura, Deng representava a “restauração dos rituais” em toda a China. No ano seguinte, o dalai-lama ordenou aos seus últimos guerrilheiros anticomunistas que baixassem as armas.
Os lamaístas exilados entusiasmaram-se quando Deng Xiaoping ascendeu ao poder global na China após o golpe de estado antimaoista de 1976. Os círculos lamaístas ficaram tão contentes com a morte de Mao e a prisão dos seguidores dele que espalharam o rumor de que esses acontecimentos tinham sido causados pelas orações feitas durante a cerimónia Kalachakra de 1976 do dalai-lama.
Desde 1960, quando os revolucionários maoistas começaram a organizar ocupações de terras no Tibete, que não tinha havido nenhum contacto entre Pequim e os exilados em Dharamsala. Mas, em 1977, pouco após o golpe de estado antimaoista, o próprio Deng Xiaoping enviou um emissário secreto ao agente da CIA irmão do dalai-lama, Gyalo Thondup. Altos responsáveis chineses apelaram publicamente à restauração das formas feudais tibetanas e ao regresso dos exilados tibetanos — incluindo o próprio dalai-lama.
Em 1977, quando o Congresso da Juventude Tibetana no exílio reafirmou o seu apoio a acções armadas contra as forças do governo chinês, o quartel-general do dalai-lama ordenou a dissolução desse grupo.
Os lamaístas saudaram as “reformas” restauracionistas do final dos anos 70 — em que os novos governantes da China começaram a encerrar as Comunas Populares nos campos do Tibete. Aos olhos deles, esse regresso à propriedade privada da terra poderia abrir caminho à reconstrução da sua velha superstrutura feudal.
Problemas com o acordo
Anos de negociações entre Pequim e Dharamsala não levaram a parte nenhuma. Depois de 1983, os governantes revisionistas de Pequim aparentemente decidiram que podiam consolidar a nova ordem deles no Tibete sem incluírem o dalai-lama e os exilados dele. O governo central chinês começou a inundar as cidades do Tibete com trabalhadores, técnicos e comerciantes han. (Os han são a etnia maioritária na China.) E começaram a restaurar alguns mosteiros tibetanos — edificando uma rede de clérigos controlada pelo governo central e não pelo dalai-lama.
Em 1987, o dalai-lama queixou-se de que os revisionistas chineses “tentaram reduzir a questão do Tibete a uma discussão do meu próprio estatuto pessoal”. Os lamaístas exilados queriam o direito feudal a seleccionar as crianças para os seus mosteiros e queriam limitar o controlo do governo sobre as suas instituições religiosas. Num livro de entrevistas, O Tibete, a China e o Mundo, o dalai-lama discute um importante obstáculo nas discussões dele com o governo chinês: “Eles acham que simplesmente recitar alguns mantras, dar voltas aos templos, fazer prostrações e andar com uma roda de orações e rosários é suficiente para praticar a religião. Por isso é que só superficialmente é que há liberdade religiosa. Os chineses simplesmente não têm nenhuma ideia da necessidade de haver um professor formal, da necessidade de estudar a fundo e praticar seriamente em lugares adequados.”
O dalai-lama não estava contente com o direito a um regresso seguro e à liberdade religiosa formal para os crentes — ele queria “lugares adequados” para restaurar o modo de vida monástico na sua totalidade.
De facto, os lamaístas exilados queriam que os novos capitalistas de estado chineses partilhassem uma parte significativa do poder e da riqueza da sociedade tibetana com a velha classe dominante feudal — para que o clero pudesse reproduzir o sistema de grandes mosteiros que viviam do trabalho das massas tibetanas.
Essas negociações não tinham a ver com a melhoria das condições e dos direitos do povo tibetano. Essas negociações tinham a ver com a restauração do mundo privilegiado da velha aristocracia governante — exigindo uma parcela do excedente da riqueza que o novo governo chinês tem extraído do povo trabalhador do Tibete.
Aparentemente, o governo chinês pensou que o dalai-lama estava a fazer exigências inaceitavelmente excessivas — sem oferecer em troca nada de particularmente útil. Pela segunda vez, desfaziam-se as esperanças do dalai-lama na restauração.
Usar a luta do povo para fazer pressão para um acordo
Quando as negociações se afundaram num impasse, o dalai-lama mudou desesperadamente de táctica: decidiu pressionar o governo da China manipulando as tensões internacionais e agitando o crescente descontentamento nas cidades do Tibete.
A 21 de Setembro de 1987, num discurso perante uma comissão do Congresso dos EUA, o dalai-lama revelou um “Plano de Paz em Cinco Pontos para o Tibete”. A sua ideia central era a de que o Grande Tibete se deveria tornar num estado-tampão desmilitarizado entre a China e a Índia. Previa uma retirada das tropas, bases militares e instalações nucleares chinesas da Região Autónoma do Tibete e da maioria das províncias vizinhas do Qinghai e Sechuan. Um dos seus cinco pontos exigia o fim da política chinesa de imigração han.
Este plano assemelhava-se às propostas soviéticas de recortar várias “zonas de paz” em áreas de domínio imperialista norte-americano. Significativamente, o dalai-lama usou a palavra hindi (a língua indiana) Ahimsa para descrever o seu estado-tampão. O dalai-lama tinha andado a namorar de vez em quando a União Soviética e o aliado dela, a Índia — ele planeava usar agora o seu Plano em Cinco Pontos para pressionar os EUA a pressionarem a China a chegar a um acordo.
Uma semana após o discurso dos Cinco Pontos do dalai-lama, foi desencadeada por monges de Lhasa uma importante revolta nacionalista. O momento da insurreição parecia ter sido mais que uma coincidência. As tensões que se tinham acumulado durante uma década de crescente imigração han explodiram — uma esquadra da polícia foi invadida. Centenas de pessoas foram mortas pelas tropas governamentais. Outros distúrbios rebentaram em 1988.
Para o dalai-lama, essa erupção de luta significou que ele tinha finalmente uma verdadeira moeda de troca para as suas negociações: ele poderia oferecer-se para conter este novo movimento nacionalista em troca de um nicho substancial dentro da nova ordem revisionista.
No meio de uma generalizada atenção internacional pelas revoltas em Lhasa, várias grandes potências pressionaram publicamente o governo chinês para retomar as negociações com os exilados de Dharamsala. Segundo o historiador A. Tom Grunfeld, os responsáveis nepaleses acreditaram que o governo central chinês poderia chegar a um acordo com o dalai-lama — para provar aos governantes de Hong Kong e Taiwan que a fusão com um estado chinês unificado não significaria necessariamente cederem todo o poder a Pequim.
Abandonando a reivindicação da independência
O dalai-lama depressa se mexeu para se posicionar nas novas negociações com Pequim: distanciou-se publicamente das violentas perturbações em Lhasa e incitou os tibetanos de dentro e fora do Tibete a se prepararem para aceitar um acordo com o governo chinês. E, para surpresa dos próprios apoiantes dele, abandonou publicamente as reivindicações de independência do Tibete e retirada das tropas chinesas — embora essas reivindicações tivessem estado em destaque nos protestos tibetanos e no seu próprio Plano em Cinco Pontos.
Perante uma reunião do Parlamento Europeu em Estrasburgo (França) a 18 de Junho de 1988, o dalai-lama propôs que o Tibete permanecesse “associado” ao governo de Pequim e que as tropas do governo central permanecessem no Tibete por um período indefinido de tempo. Segundo este esquema, o governo central chinês controlaria a política externa tibetana e as questões militares, enquanto a região teria uma vida económica e cultural autónoma com um governo regional laico. Isto queria dizer que ele previa que o clero reconstruísse o seu sistema de mosteiros mas não controlasse o governo. Isto foi o revelar público do acordo que há muito tempo o dalai-lama tinha tido a esperança de conseguir.
No seu livro de entrevistas, o dalai-lama apela aos apoiantes dele para aceitarem esse acordo: “De facto, estamos a tentar encontrar uma espécie de via intermédia. (...) Eu disse em muitas ocasiões que a fronteira humana está sempre a mudar. Expliquei que, em certas circunstâncias, duas nações se podem combinar numa nação. (...) Assim, em teoria, nós, tibetanos, que somos seis milhões, podemos obter mais benefícios se nos unirmos aos mil milhões de chineses em vez de nos tornarmos num país independente.”
Edward Lazar, um proeminente activista pró-lamaísta, escreve no livro A Angústia do Tibete: “A posição oficial do governo tibetano no exílio e do dalai-lama, tal como redefinida na Declaração de Estrasburgo de 15 de Junho de 1988, é de um acordo com a China. E a maior parte do que se escreve sobre o Tibete serve para obscurecer o facto de que o objectivo para o Tibete não é definido como sendo a independência. (...) A própria palavra ‘independência’ é evitada nas declarações oficiais tibetanas e é evitada nas reuniões. A ‘independência’ não é sequer uma das centenas de entradas do índice da nova autobiografia do dalai-lama. A ideia de independência é tão perigosa que apenas é referida como a ‘palavra com I’ em alguns círculos do Tibete.”
O dalai-lama depressa nomeou uma equipa de negociadores para as novas conversações agendadas para Janeiro de 1989 em Genebra. Mas, na primavera de 1989, tanto Lhasa como a Praça Tiananmen foram sacudidas por poderosos protestos que foram reprimidos por uma sangrenta ofensiva governamental. O Tibete foi colocado sob lei marcial — e as conversações de Genebra nunca tiveram lugar.
Lisonjeando o dirigente do novo governo sanguinário da China
Esses massacres não impediram o dalai-lama de apoiar Deng Xiaoping, o dirigente do actual governo antimaoista da China. Na sua recente autobiografia, o dalai-lama alega ter há muito uma admiração por Deng: “No final de 1978, houve um encorajador desenvolvimento adicional quando Deng Xiaoping emergiu como autoridade suprema em Pequim. Como dirigente de uma facção mais moderada, o predomínio dele parecia assinalar uma verdadeira esperança para o futuro. Sempre achei que Deng poderia um dia fazer grandes coisas pelo país dele. Quando estive na China em 1954-5, encontrei-me várias vezes com Deng e fiquei muito impressionado com ele. Nunca tivemos nenhuma conversa prolongada mas ouvi falar muito dele — sobretudo que ele era um homem de grande capacidade e também muito decidido. Da última vez que o vi (...) ele impressionou-me como sendo um homem poderoso. Agora começa a parecer que, além destas qualidades, ele também é bastante sensato.”
Estas palavras foram escritas em 1990 — já depois da sangrenta repressão, das prisões em massa e da lei marcial no Tibete e em Pequim.
As tentativas descaradas do dalai-lama de chegar a um acordo com o governo de Pequim aprofundaram as divisões dentro do movimento dele no exílio. Um dos principais enviados internacionais do dalai-lama, Lodi Gyaltsen Gyari, fala em “críticos internos” que dizem que “o dalai-lama está a tentar vender o Tibete”. Alguns tibetanos ocidentalizados da classe alta nascidos no exílio — agrupados em torno do Congresso da Juventude Tibetana — opuseram-se em voz alta à abordagem dele. Eles fizeram pressão por uma política de tentar dividir a China — esperando estabelecer um Tibete independente nos moldes dos países neocoloniais pró-ocidentais.
A nível internacional, os lamaístas são retratados como verdadeiros crentes na não-violência. Mas, nos apelos dele aos “críticos internos”, o representante Gyari do dalai-lama alega que em princípio não tem nada contra a violência. Em A Angústia do Tibete, ele escreveu: “Houve tempos em que também eu teria preferido lutar, mas devemos ser realistas. Tivemos algumas más experiências e ficámos a cambalear. Eu não quero ir agora mais longe nessa questão; faz tudo parte do passado. Mas, na nossa memória, ainda está viva.”
Por outras palavras, Gyari recorda aos companheiros exilados dele a traição da CIA nos anos 60, dizendo que as lições dessas “más experiências” são que os exilados tibetanos devem, mais tarde ou mais cedo, chegar a um acordo com o governo revisionista chinês.
O dalai-lama defende um acordo com um pragmatismo semelhante. Na entrevista dele em Dharamsala, ele diz: “No nosso caso, a violência é mais ou menos suicida. Não é prático de todo. (...) Mesmo que dez mil jovens fora do Tibete, em conjunto com algumas centenas de milhares de jovens no Tibete, peguem em armas, ainda assim será muito difícil. Os chineses poderiam esmagar-nos facilmente. Mesmo uma guerra de guerrilha é muito difícil. (...) Penso que podemos chegar a algum tipo de compromisso que seja mutuamente benéfico.”
Embora a abordagem do dalai-lama seja impopular entre os exilados tibetanos, foi saudada nas capitais ocidentais. Após o massacre de Tiananmen, as potências ocidentais ficaram preocupadas com que o poder governamental chinês pudesse reprimir mais agressivamente os elementos pró-ocidentais dentro da nova classe dominante chinesa. Por isso, desde 1989, poderosas forças na classe dominante dos EUA têm andado à procura de uma forma de pressionar o governo de Deng. Elas escolheram o dalai-lama e a sua causa dos “direitos humanos no Tibete” como sendo essa forma.
Desta vez, as potências ocidentais não querem os exilados tibetanos como força armada. Desde a morte de Mao que as relações EUA-China têm sido demasiado amistosas para isso. Em vez disso, os EUA querem que o dalai-lama represente um papel público destacado para pressionar Pequim a abandonar a rígida centralização económica e política.
Para que o dalai-lama possa desempenhar melhor esse papel, as potências ocidentais atribuíram-lhe o Prémio Nobel da Paz em Dezembro de 1989 — conferindo-lhe todo um novo nível de prestígio e legitimidade.
Quando algumas pessoas bem-intencionadas apoiam o chamado movimento “Tibete Livre”, deixam-se transformar frequentemente em soldados rasos na luta de Washington pelos mercados lucrativos e a mão-de-obra barata da China. Os governantes dos EUA continuam a não se preocupar com o Tibete. Uma vez mais, só querem usar a “questão do Tibete” e os “direitos humanos” como forma de pressão ocasional sobre o governo da China.
Na moda, mas não tão na moda
Por estes dias, o dalai-lama viaja pelo planeta com o oportunismo qualificado de um camaleão político: prega o misticismo aos new agers ocidentais, ao mesmo tempo que se apresenta como céptico científico perante audiências de cientistas da natureza. Veste-se de ecologista antimilitarista quando se encontra com os Verdes da Europa Ocidental, ao mesmo tempo que cinicamente se oferece aos sanguinários seguidores da via capitalista de Pequim. Acomoda-se com forças religiosas conservadoras ao assinar a declaração antiaborto “Seamless Garment” e depois sugere que por vezes os abortos podem ser justificados, de forma a manter a sua credibilidade entre os apoiantes ocidentais liberais.
Então, em Maio de 1994, o dalai-lama deixou-se usar para reduzir a pressão sobre a China. Reuniu-se discretamente com o Presidente Clinton em Washington DC e anunciou depois numa conferência de imprensa na Alemanha que apoiava a prorrogação do estatuto de “Nação Mais Favorecida” à China. Alguns dias depois, o próprio Clinton anunciou que ia prorrogar o estatuto de MFN à China. O dalai-lama tinha ajudado cinicamente Clinton e Pequim a levarem a melhor sobre as forças anti-MFN que exigiam que Washington impusesse restrições comerciais para pressionar a China.
Todas estas manobras e intrigas trouxeram ao dalai-lama uma fama sem precedentes. Ele é mesmo uma moda em alguns círculos. Mas, ironicamente, essa atenção internacional está a acontecer numa altura em que a base de apoio do dalai-lama no exílio se está a corroer rapidamente.
A comunidade de exilados tibetanos está a perder coerência e o dalai-lama está a perder poder sobre ela: a maioria dos exilados tibetanos instalou-se nos países onde agora vivem. Só a geração mais velha se lembra do Tibete. A maioria dos exilados não tem nenhuma vontade de aí regressar. Muitos desdenham abertamente os velhos costumes tibetanos.
Com o passar do tempo, os fundos humanitários internacionais estão a secar para os exilados tibetanos. Isto corta pela base o poder político do dalai-lama — que sempre dependeu do dinheiro externo. As constantes actividades internacionais do dalai-lama são, pelo menos em parte, um constante esforço de angariação de fundos para a estrutura pessoal dele.
Ao mesmo tempo, as hipóteses de negociar uma restauração lamaísta no Tibete são mais escassas que nunca. A exploração de classe foi restaurada no Tibete depois do golpe de estado de 1976 — mas numa nova forma que combina a agricultura semifeudal com o capitalismo de estado. Embora alguns observadores aleguem que o dalai-lama tem alguma popularidade como símbolo antigovernamental no Tibete, não há nenhum sinal de que as massas populares tibetanas apoiem o programa político do dalai-lama.
A única verdadeira esperança do dalai-lama é que a China se comece a dividir após a morte de Deng — tal como aconteceu na União Soviética pós-Gorbachev — e que poderosas forças em Pequim e Washington de alguma forma aprovem o regresso dele como forma de manterem o seu domínio sobre as partes mais exploráveis da China. É uma esperança muito escassa.
O tempo está a esgotar-se para os sonhos terrenos do dalai-lama de obter “lugares adequados” no Tibete. E não há nenhuma razão para lamentar a sua extinção.
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Uma revolucionária encontrou recentemente um velho amigo. Ela descobriu que o amigo — que andava geralmente bem informado e era um progressista — tinha sido influenciado pelas acusações lamaístas contra a revolução maoista na China. À medida que falavam sobre isso, a revolucionária salientou alguns pontos materialistas básicos sobre o dalai-lama. Descreveu como as massas populares — servos, escravos e mulheres — eram oprimidas na velha sociedade tibetana. Descreveu sucintamente a forma como as massas tibetanas tinham sacudido o mundo delas durante a revolução maoista entre 1950 e 1976. E desafiou-o a defender o programa político do dalai-lama. O amigo dela ficou com um olhar perplexo no rosto e então deixou escapar: “Ou tudo o que acabas de me dizer é falso ou eu me deixei apanhar numa incrível farsa”.
Romantizar o lamaísmo tibetano requer uma certa indiferença pela vida do povo.
O Presidente Bob Avakian escreveu na revista Revolution: “Há um importante elemento de chauvinismo: tratar esses povos do Terceiro Mundo e as culturas, tradições e relações deles como algo de ‘exótico’. Assim, segundo esse ponto de vista, é perfeitamente correcto que as massas populares desses países sejam sujeitas a essas formas ‘exóticas’ de opressão e exploração — como a opressão patriarcal e feudal das mulheres e das massas em geral — mas não as tentem impor a mim! Isso é diferente — eu venho de uma sociedade iluminada avançada! É esse o chauvinismo desse ponto de vista.”12
A história da vida deste dalai-lama é a história de um opressor — um representante feudal e um entusiástico agente dos interesses imperialistas norte-americanos: ele foi educado desde a infância para ser um deus-rei feudal — uma carreira que foi interrompida quando uma poderosa revolução chegou vinda do leste. Entre 1959 e 1976, altura em que o Tibete sofreu mudanças radicais que emanciparam as massas populares tibetanas — o dalai-lama opôs-se irreconciliavelmente a esse processo revolucionário. Ele e os irmãos dele ajudaram a organizar uma guerra encoberta da CIA contra a revolução maoista e enviaram milhares de exilados tibetanos para trabalhos forçados para o exército indiano. Mas, desde que a revolução maoista foi derrubada em 1976, desde que os camponeses do Tibete foram uma vez mais mergulhados em condições semifeudais e desde que emergiu um vento de luta justificada — agora o dalai-lama prega a “via intermédia” budista da causa comum com Deng Xiaoping e o governo opressor dele em Pequim.
Por que razão uma pessoa honrada e progressista haveria de apoiar isto?
As massas nada ganharão se o dalai-lama regressar como representante feudal local do governo de Deng. Elas não serão libertadas se alguns dos ocidentalizados exilados do Tibete conseguir estabelecer um Tibete dito “independente” — ligado por mil fios neocoloniais aos interesses das multinacionais e do governo dos EUA.
Uma verdadeira libertação começa com as massas populares e com a luta contra os opressores delas. No Tibete actual, as massas populares são os milhões de camponeses pobres espalhados pelos vastos campos da região. Os seus principais opressores actuais são os seguidores chineses da via capitalista que venderam a China ao imperialismo e restauraram a exploração nos campos.
A chave para o futuro do Tibete está em fazer um balanço correcto das lições dos anos de Mao. A revolução maoista no Tibete rompeu os grilhões da servidão e os grilhões mentais do carma. Até ter sido derrubada, a revolução maoista trouxe a organização armada das massas, a cooperação socialista e o início de uma verdadeira libertação para algumas das pessoas mais amargamente oprimidas do planeta.
Num outro artigo desta série, uma jovem comunista defendia que os pobres do Tibete se poderiam erguer sobre as grandes montanhas aprendendo a voar em formação como os bandos de gansos selvagens. Um nómada maoista impenitente entrou na tenda de uma equipa de antropólogos norte-americanos — pedindo-lhes que levassem a mensagem de que “os inimigos de classe” tinham retomado esse canto do Tibete. São os sonhos e a política de revolucionários como estes que podem conduzir o povo do Tibete à liberdade.
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NOTAS
11 Bob Avakian, Radical Ruptures, or Yes, Mao More Than Ever [Rupturas Radicais Ou Sim, Mao Mais Que Nunca], revista Revolution n.º 60, Outono de 1990, p. 36, marxists.org/history/erol/ncm-7/avakian-90.pdf.
12 Idem, pp. 35-36.
Publicado originalmente no jornal Revolutionary Worker/Obrero Revolucionario:
- revcom.us/a/firstvol/tibet/tibet6.htm (em inglês no n.º 767, 7 de Agosto de 1994) e
- revcom.us/a/firstvol/tibet/tibet6s.htm (em castelhano no n.º 769, 21 de Agosto de 1994).
O artigo “O Dalai-CIA-Lama”, apesar de posterior a esta série, foi aqui incluído como anexo para ajudar a ilustrar o verdadeiro papel do dalai-lama. Também foi publicado originalmente no mesmo jornal:
- revcom.us/a/v20/980-89/985/tibet.htm (em inglês no n.º 985, 6 de Dezembro de 1998) e
- revcom.us/a/v20/980-89/986/tibet_s.htm (em castelhano no n.º 986, 13 de Dezembro de 1998).
A série completa está disponível através do índice ou em PDF: