A verdadeira história da revolução maoista no Tibete

5. A vida sob o domínio do dalai-lama no exílio

O dalai-lama e a CIA

Pouco depois da vitória em 1949 das forças maoistas contra o ditador Chiang Kai-shek apoiado pelos EUA, a revolução chegou ao Tibete. A classe dominante do Tibete — uma classe feudal de aristocratas e monges — alternou freneticamente entre a passividade e a resistência.

A partir de 1957, alguns sectores dessa classe participaram numa série de actos armados anticomunistas — tentando impedir as profundas transformações revolucionárias no Tibete. Os propagandistas lamaístas, incluindo o próprio dalai-lama, retratam esses actos como uma resistência nobre e interna contra o domínio estrangeiro.

A verdade é esta: desde o início dela nos anos 50 no Tibete até à insurreição feudalista armada de 1959, passando pelo movimento dos anos 60 de guerrilha armada baseada nos exilados, essa “luta” foi organizada, financiada, treinada, armada, liderada e, por fim, desactivada pela CIA.

Nos velhos tempos, o dalai-lama era uma figura de proa de uma ordem feudal opressora. No exílio, tornou-se na figura de proa de um movimento armado anticomunista tibetano apoiado pela CIA e encabeçado pelo irmão dele, Gyalo Thondup — semelhante aos muitos exércitos contras (contra-revolucionários) que a CIA criou para levar a cabo guerras encobertas.

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“Muitas das armas vieram de fora. A base dos rebeldes a sul do rio Tsangpo recebeu várias vezes fornecimentos entregues por via aérea, vindos dos bandos de Chiang Kai-shek e foram instaladas estações de rádio por agentes enviados pelos imperialistas e pelos bandos de Chiang Kai-shek para as manobras deles.”

Agência noticiosa revolucionária Xinhua, Março de 1959.

“Ninguém, seja nos países envolvidos ou nos não envolvidos, pode acreditar na alegação comunista de que (...) a rebelião foi apoiada pelos ‘imperialistas, pelos bandos de Chiang Kai-shek e por reaccionários estrangeiros’.”

The Economist, 1959.

“Não há nada que tenha vindo do exterior.”

Thubten Norbu, irmão do dalai-lama, entrevistado pelo jornal U.S. News and World Report, 1959.

No início dos anos 50, os EUA invadiram a Coreia e ameaçaram invadir a própria China revolucionária. Ao mesmo tempo, a Agência Central de Informações (CIA) norte-americana trabalhava dia e noite para juntar as forças reaccionárias às suas redes de espiões e para desenvolver equipas clandestinas que pudessem levar a cabo uma guerra secreta contra o novo poder popular na China.

Em Abril de 1949, o Secretário de Estado dos EUA, Dean Acheson, enviou um telegrama ao seu Embaixador em Nova Deli dizendo que os governantes norte-americanos gostariam de ver “discretamente reforçada a capacidade militar tibetana [de] resistência”. O historiador do Tibete A. Tom Grunfeld escreveu: “No verão de 1950 foram dadas instruções ao Gabinete de Coordenação Política, o ramo burocrático oficialmente encarregue das operações encobertas, para ‘iniciar uma guerra psicológica e operações paramilitares contra o regime comunista chinês’.”

As principais forças feudais à volta do dalai-lama ofereceram-se como sequiosos agentes — inicialmente das forças reaccionárias do Kuomintang (KMT) liderado por Chiang Kai-shek em Taiwan e depois directamente dos EUA. Os dois irmãos mais velhos do dalai-lama, Gyalo Thondup e o “lama reencarnado” Thubten Jigme Norbu, emergiram como importantes agentes tibetanos da CIA.

Grunfeld escreveu: “George Patterson (...) esteve intimamente envolvido nessas negociações como tradutor e intermediário. Ele relatou que, em 1953, Thubten Norbu contactou a CIA e que lhe disseram para levar o seu caso ao KMT (de quem já recebia apoio encoberto). Patterson também recordou um encontro dois anos depois entre Ragpa Pangdatsang e representantes dos governos da Índia e dos EUA. Nessa altura, os Estados Unidos terão supostamente sugerido um plano de revolta em dez anos, cujo objectivo seria um eventual fim do controlo da China sobre o Tibete. (...) John F. Avedon, cujo recente livro pode ser considerado a versão ‘oficial’ da perspectiva histórica do dalai-lama, contesta que Gyalo Thondup tenha feito um acordo com a CIA logo em 1951. Foi inicialmente um arranjo para recolha de informações que se transformou numa guerra de guerrilha em 1956. Num curto espaço de tempo, os Estados Unidos tinham eclipsado o KMT como principal fonte de ajuda militar aos rebeldes.” Grunfeld acrescenta que quando iniciou esses arranjos com os imperialistas norte-americanos, Thubten Norbu levava com ele “uma carta que o autorizava a negociar em nome do dalai-lama”. Em 1958, a CIA começou a usar bases aéreas em Banguecoque, na Tailândia, para lançar por via aérea armas e munições nas regiões de etnia tibetana do Kham.

Grunfeld escreveu: “Foi Gyalo Thondup que organizou as primeiras missões de treino da CIA, escolhendo seis tibetanos para esse fim”. Pouco depois, foi instalado um campo secreto da CIA para treinar agentes tibetanos em Camp Hale, no alto das montanhas Colorado Rockies, nos EUA.

Conspirações tibetanas — Made in USA

As manobras da CIA encorajaram uma insurreição armada em Março de 1959, quando as forças feudais tentaram expulsar o exército revolucionário do Tibete. Diz Grunfeld: “Apesar dos gritos de inocência por parte do dalai-lama, responsáveis em Washington planearam os acontecimentos meses antes daquele fatídico Março de 1959.”

Em Março de 1959, as forças feudais tibetanas foram rapidamente derrotadas. O dalai-lama foi forçado a exilar-se na Índia numa operação encoberta da CIA. Grunfeld documentou que os agentes treinados pela CIA que estavam na caravana do dalai-lama colocaram na neve alvos especiais para entregas aéreas, para poderem guiar um avião militar C130 dos EUA que tinha sido especialmente modificado para voar nos rarefeitos céus tibetanos. A meio caminho da Índia, um operador de rádio juntou-se ao grupo do dalai-lama para que toda a operação pudesse ser monitorada directamente pela estação da CIA em Daca, no Paquistão Oriental (actual Bangladexe).

A CIA estabeleceu imediatamente uma força contra entre os tibetanos exilados. Foram instalados dez campos no minúsculo principado de Mustang, na fronteira Nepal-China. A CIA obteve mais três C130 modificados para entregas aéreas de alta altitude. Diz Grunfeld: “Este importante esforço de recrutamento reuniu no campo 14 mil tibetanos e mais alguns membros dos povos tribais, ‘inteiramente dependentes dos transportes de longa distância e da infiltração [e] armados, equipados e alimentados pela Agência [CIA]’.”

Em 1961, o dalai-lama disse: “as únicas armas que os rebeldes [lamaístas] possuem são as que conseguiram capturar aos chineses”. Alguns relatos dizem que o dalai-lama escolheu pessoalmente o chefe do campo de Mustang.

As ameaças de guerra por parte da Índia

Nessa altura, o governo indiano estava a preparar uma guerra fronteiriça com a China revolucionária e aumentou o seu envolvimento directo no exército contra-revolucionário tibetano. Numa base secreta no estado indiano do Orissa, agentes norte-americanos, funcionários indianos e contras tibetanos reuniam-se semanalmente para coordenarem as suas actividades. A primeira incursão contra-revolucionária tibetana na China ocorreu no final de 1961, pouco antes de rebentar a guerra entre a Índia e a China. Grunfeld documenta um estudo da CIA desse período com informações detalhadas sobre como as condições meteorológicas únicas do Tibete poderiam afectar o uso de antenas, substâncias químicas e guerra biológica.

Ao mesmo tempo, o alto clero tibetano alugava dezenas de milhares de refugiados tibetanos ao governo indiano na construção de estradas militares no norte da Índia para a iminente guerra contra a revolução chinesa (ver a 5ª Parte com uma descrição desses campos de trabalhos forçados). Quando, em 1962, estalou a guerra entre a Índia e a China revolucionária, as forças da Índia foram rapidamente derrotadas pelo Exército Popular de Liberação.

Enquanto os exilados tibetanos ajudavam a Índia a atacar a China, poderosas forças revolucionárias dentro da Índia inspiravam-se na revolução maoista. Os revolucionários internacionalistas indianos tomaram o partido da China. Pouco depois, os comunistas revolucionários liderados por Charu Mazumdar formaram na Índia um novo partido maoista de vanguarda que, em 1967, iniciou uma grande luta armada entre os camponeses de Naxalbari — no mesmo distrito da região de Darjeeling por onde muitos feudalistas tibetanos entraram na Índia.

Incursões e espionagem a partir das bases contra-revolucionárias tibetanas

As incursões fronteiriças dos contra-revolucionários tibetanos continuaram durante os anos 60. O dinheiro que Gyalo Thondup recebia da CIA para essas operações aumentou. A CIA esperava que esses contras tibetanos pudessem manter redes de agentes, levar a cabo actos de sabotagem e, em geral, importunar as forças revolucionárias.

Mas, globalmente, toda essa operação contra tibetana foi um fracasso. À medida que a revolução se aprofundava no Tibete, a fronteira foi protegida com cada vez mais sucesso. As milícias revolucionárias das Comunas Populares — compostas por antigos servos tibetanos — juntaram-se ao Exército Popular de Liberação na perseguição e abate desses odiados sabotadores e espiões feudais. Ao mesmo tempo, o povo do Nepal exigia cada vez mais que esses campos armados fossem removidos.

Na última incursão conhecida, em 1969, um bando invasor contra tibetano foi completamente esmagado pelas forças revolucionárias. No início dos anos 70, a classe dominante dos EUA estava atolada no Vietname e a preparar a abertura de relações com a República Popular da China. Um movimento armado contra tibetano corrupto e ineficaz já não servia os planos imperialistas dos EUA. A CIA pura e simplesmente abandonou os contras tibetanos.

Este é o padrão de usar-e-deitar-fora usado pelos reaccionários com os curdos do Irão, as tribos hmong das montanhas da Indochina, os índios misquitos do leste da Nicarágua e as forças fundamentalistas islâmicas que combateram no Afeganistão.

Em 1975, o dalai-lama ordenou às forças contras remanescentes no Nepal para baixarem as armas. Os senhores feudais tibetanos estavam política e militarmente derrotados no interior do Tibete. Quando os fundos da CIA secaram, os contras tibetanos já não tinham nenhuma base para continuarem a guerra de guerrilha deles no exílio.

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Para mais documentação e detalhes sobre o envolvimento da CIA no movimento contra do dalai-lama, ver o livro de A. Tom Grunfeld, A Criação do Tibete Moderno.

Em meados dos anos 50 começaram as ocupações revolucionárias de terras em algumas propriedades controladas por lamas ou aristocratas tibetanos. A classe dominante feudal do Tibete reagiu fazendo uma aliança secreta com a Agência Central de Informações (CIA) norte-americana e tentativas de resistência armada em 1957 e 1959. (Ver “O dalai-lama e a CIA”, em anexo) Foram rapidamente derrotados e o dalai-lama fugiu para a Índia.

A maior parte da classe dominante tibetana e das forças conservadoras de outras classes seguiram o dalai-lama para o exílio, sobretudo entre 1959 e 1963. Poucos o fizeram depois de 1965. As estimativas do número desses refugiados tibetanos conservadores variam entre 30 e 100 mil.

Eles foram recebidos na fronteira por agentes da CIA dispostos a os organizarem como força contra a revolução maoista. Os agentes da CIA criaram um exército anticomunista com base nas forças exiladas do dalai-lama e estabeleceram uma máquina de propaganda para enfeitarem a “história deles” para consumo mundial.

Nos Estados Unidos, foi formado apressadamente em Março de 1959 um “Comité Norte-Americano de Emergência Para os Refugiados Tibetanos” (AECTR). Encabeçado pelo jornalista de direita Lowell Thomas e pelo liberal e anticomunista Juiz do Supremo Tribunal William O. Douglas, essa agência teve uma vida breve — alguns meses gastos a canalizar dinheiro para a Índia para instalar os feudalistas tibetanos no exílio. O historiador do Tibete A. Tom Grunfeld escreveu: “Embora ainda não tenha sido contada toda a história do Comité, continua a haver muita especulação e consideráveis provas circunstanciais de que uma importante fonte do seu financiamento foi a CIA”.

Muitos refugiados também foram roubados na fronteira indiana por funcionários corruptos. Grunfeld conta que um refugiado se queixou que a corrupção e os subornos na Índia “eram tão comuns como antes o eram no Tibete”.

Uma biografia tibetana relatava que “os filhos e filhas de tibetanos aristocratas e de tibetanos ricos que estudam na universidade ou trabalham à volta de Darjeeling não vieram para ajudar”. Essa indiferença é típica da velha classe dominante do Tibete, preguiçosa e egocêntrica.

Sob o olhar atento do governo indiano e da CIA, os campos de refugiados foram instalados de forma a preservar o que a liderança dos exilados considerava ser mais precioso da velha ordem tibetana. Durante décadas, as forças do dalai-lama viajaram pelo mundo atacando as mudanças feitas no Tibete pela revolução maoista durante a tempestuosa luta de classes entre 1959 e 1976. Por isso, faz todo o sentido que nós, maoistas, discutamos o que esses campos de tibetanos na Índia revelam sobre a natureza de classe do dalai-lama e do quartel-general dele no exílio.

Trabalhos forçados para a máquina de guerra da Índia

O governo indiano estava extremamente descontente por ter um poderoso exército revolucionário na sua fronteira norte — sobretudo após 1959, quando o furacão da revolução camponesa da terra varreu o Tibete. A Índia é ela própria um vasto país semifeudal — repleto de camponeses explorados que observavam com atenção as lições e os métodos da revolução maoista.

Na altura em que os refugiados tibetanos chegaram à Índia, o exército indiano estava a preparar-se febrilmente para uma guerra com a “China Vermelha” de Mao. O dalai-lama e o governo Kashag dele chegaram a um acordo com o governo indiano de Nehru: em troca de terras e materiais para se estabelecerem, o dalai-lama ofereceu milhares de refugiados tibetanos para trabalhos forçados, que foram enviados para campos de alta montanha para trabalharem na construção de estradas militares para o exército indiano poder atacar a revolução maoista na China.

Em 95 campos de trabalho, 18 a 21 mil refugiados tibetanos foram forçados a trabalhar em condições horríveis. Recebiam 30 cêntimos por dia, o que não era suficiente para a alimentação deles. Muitos passaram fome ou pura e simplesmente trabalharam até à morte. Muitos deles morreram de doença e em explosões de dinamite e deslizamentos de terras. Grunfeld relata que os próprios responsáveis tibetanos refugiados admitiram em 1964 que esses trabalhadores estavam pior do que estariam se tivessem permanecido no Tibete.

Quando os refugiados foram enviados para os campos de trabalho, retiraram-lhes violentamente muitas dos filhos deles. Grunfeld diz que “cinco mil crianças foram retiradas aos pais para irem viver em campos de refugiados permanentes. Três mil outras foram autorizadas a ficar com os pais nos campos de trabalhos forçados (...) e havia relatos frequentes de crianças com menos de quinze anos a fazer trabalhos perigosos.”

Devemos salientar aqui uma certa hipocrisia lamaísta: durante décadas, o dalai-lama atacou os revolucionários maoistas por construírem estradas no Tibete — e acusou os revolucionários de usarem “trabalhos forçados”. A máquina de propaganda lamaísta dele atacou a revolução por esta obrigar o clero lamaísta a fazer trabalho manual (como cultivarem os seus próprios alimentos) e por supostamente debilitar a família tradicional tibetana. Ao mesmo tempo, as forças exiladas do dalai-lama na prática entregavam os refugiados tibetanos nos campos de trabalhos forçados ao serviço do governo indiano e retiravam-lhes os filhos.

Na sua autobiografia de 1990, o dalai-lama descreve especificamente como ele combinou pessoalmente os detalhes dos campos de trabalho nas reuniões com Nehru, salientando que quem estava nos campos de trabalhos forçados eram ex-freiras e monges. O dalai-lama acrescenta que, nessa altura, ele tentou ver os aspectos positivos dessas provações, dizendo: “A dor é o padrão para se medir o prazer”. O trabalho forçado ulag era um costume social chave no feudalismo tradicional tibetano em que os senhores feudais podiam exigir trabalhos forçados aos “seus” servos e escravos.

Em 1990, o dalai-lama admitiu que alguns exilados tibetanos continuavam a trabalhar nesses campos de trabalhos forçados. Mas ele escreveu que isso não era deplorável porque os tibetanos pobres de hoje estão nos campos de trabalhos forçados “por sua livre vontade” — como trabalhadores assalariados.

A regra de ouro

A classe dominante tibetana exilada deixou o Tibete porque a iminente revolução agrária ameaçava as fundações da sua classe e do seu poder — a propriedade feudal da terra. As distinções e os privilégios de classe eram chave na “cultura tradicional” que os lamaístas pretendiam preservar.

O velho governo e classe dominante tibetanos emergiram como senhores dos refugiados. O governo Kashag do dalai-lama representava os mais poderosos interesses clericais e aristocráticos. A família dele, sobretudo os poderosos irmãos dele, emergiu com as mãos em importantes fundos, sobretudo dinheiro da CIA. O próprio dalai-lama agiu como supremo senhor feudal, com as mãos firmemente colocadas em muitas carteiras.

As ligações hereditárias entre servos e senhores não adquiriram exactamente as mesmas formas no caos do exílio, mas foram criadas novas estruturas de classe opressoras. Quanto ao essencial, elas baseavam-se na “regra de ouro” do capitalismo moderno: Quem tem o ouro dita as regras.

Ao longo dos anos, o dalai-lama tem mantido o seu poder sobre um movimento intensamente conflituoso e dividido, mantendo o seu controlo apertado sobre o dinheiro. Desde o início que ele controlou milhões de dólares — de um tesouro em ouro e prata extraído às massas populares tibetanas. O dalai-lama diz que valia 8 milhões de dólares.

Grunfeld escreveu: “Uma das principais fontes de poder político do dalai-lama é a capacidade dele de controlar os fundos humanitários, as bolsas de estudo e a contratação de professores e burocratas tibetanos”.

Cada campo era administrado por um “Dirigente do Campo” nomeado pelo dalai-lama. Um estudo académico desses campos de exilados relatou que o Dirigente do Campo “é considerado o rei do campo. Ele pode, na prática, mandar nas pessoas dentro do campo.”

A corrupção nos campos de exilados tibetanos é bem conhecida. No mercado de MacLeod Ganj, a menos de três quilómetros da residência do dalai-lama, têm sido encontrados à venda bens de ajuda humanitária, sobretudo medicamentos.

Grunfeld relata que “as operações humanitárias têm-se misturado com a rivalidade organizativa e as intrigas de ‘membros pouco reputados da clique dominante tibetana’.” A falecida irmã do dalai-lama, Tsering Dolma, era um conhecido exemplo de “membro pouco reputado” — ela era amplamente odiada pela forma arrogante e corrupta como geria um império pessoal de “internatos” infantis com mais de 3000 crianças.

Grunfeld escreve: “Enquanto as crianças ao seu cuidado passavam frequentemente fome (uma trabalhadora relatou um incidente em que ela foi atacada por crianças famintas quando levava um prato de restos do pequeno almoço), ela era conhecida pelos seus almoços formais de doze pratos. Ao mesmo tempo, com temperaturas extremamente baixas, as crianças eram vestidas com ‘túnicas finas de algodão, rotas e sem mangas — embora, quando os VIP visitavam o Infantário Superior, todas as crianças fossem vestidas com roupa quente de lã, meias grossas e botas espessas’.”

Fatais distinções de classe

Oitenta por cento dos refugiados tibetanos instalaram-se na Índia — a maioria dos restantes instalou-se no Butão, no Nepal e no Sikkim. O governo indiano não quis ter todos os tibetanos concentrados numa zona — pelo que os instalou em 20 campos muito espalhados por toda a Índia.

Os campos nas terras baixas do sul da Índia foram fatais para os tibetanos que não estavam habituados a viver num clima quente e húmido. Os velhos costumes feudais tibetanos sobre esgotos, lixo, lavar e cozinhar acabaram por ser fatais face ao calor — as doenças devastaram os refugiados. Num dos primeiros campos, metade dos refugiados morreu no primeiro ano.

A clique do dalai-lama desenvolveu um sistema simples para decidir quem instalava onde. Os ricos senhores feudais e os activistas anticomunistas ficaram nos campos mais amenos nas montanhas do norte da Índia. Os exilados servos pobres foram para os quentes, húmidos, sobrelotados e mortíferos campos do sul.

Um estudo sobre os tibetanos no norte da Índia revelou que 25% deles se descreviam como sendo anteriormente muito ricos, 20% ricos, 40% da classe média e 15% da classe média baixa. Nenhum deles disse que tinha sido “pobre” no Tibete pré-revolucionário. O investigador concluiu que nos campos do norte, “os refugiados representam desproporcionadamente a hierarquia monástica, as classes altas e os participantes activos no movimento tibetano de resistência”.

Um estudo sobre o campo de Mundgood, no sul, revelou que quase todos tinham sido servos pobres, pastores e artesãos no velho Tibete. Não só a vida no sul foi uma sentença de morte para muitos exilados pobres, como durante os anos seguintes foi gasto muito menos dinheiro para criar empregos e escolas nesses campos meridionais.

A exploração de classe também surgiu dentro dos campos. O dalai-lama descreve como usou as reservas de ouro dele para criar empresas capitalistas que usavam os refugiados tibetanos como trabalhadores assalariados — uma fábrica de tubos metálicos, uma fábrica de papel e outras empresas a que ele chama “fábricas de dinheiro”.

Um campo do sul em Bylakuppe acabou por obter algum capital para instalar uma quinta leiteira e fábricas de tapetes. Uma parte dos exilados usou a “ajuda humanitária” para se tornarem exploradores a tempo inteiro — empregando os seus vizinhos camponeses indianos sem-terra como mão-de-obra e criados de casa.

Ao mesmo tempo, as massas de exilados pobres viviam em condições miseráveis. Grunfeld cita um médico norte-americano que dizia que em 1980 a maioria dos refugiados “estava a viver em extrema pobreza em campos insalubres em terras ‘abandonadas’ nas zonas mais pobres da Índia. A maior parte da energia deles é dedicada à luta pessoal pela sobrevivência. (...) As pessoas afundam-se em pobreza, apatia, doença, alcoolismo e desespero.”

Quando algumas pessoas falam em “preservar a cultura tradicional tibetana”, deviam lembrar-se das fatais distinções de classe centrais nessa sociedade feudal.

Preservar alguns costumes, modificar outros

Por razões óbvias, os lamaístas tibetanos exilados não falam publicamente sobre a preservação de tradições tibetanas fundamentais como o ulag (trabalho forçado) e a servidão. No recente filme pró-lamaísta O Pequeno Buda, por exemplo, os lamas são mostrados com chicotes quando estão a dar instrução em pátios cheios de jovens monges noviços — mas os chicotes são mostrados como sendo um afável dispositivo educativo (como se fosse o apito de um treinador).

Na sua autobiografia de 1990, o dalai-lama admite que teve de proibir algumas “formalidades” tradicionais à frente de estrangeiros. Por exemplo, por tradição, os tibetanos das classes mais baixas eram castigados se olhassem para os amos deles acima dos joelhos. Na velha sociedade, muita gente nunca tinha visto o rosto dos seus opressores. E toda a gente era obrigada a “prostrar-se” com a cara e a barriga para baixo em frente ao dalai-lama. Os estrangeiros que vissem esses costumes podiam ter um vislumbre do repulsivo elitismo que era tão central nos ensinamentos lamaístas — os governantes do velho Tibete alegam ser reencarnações divinas e aperfeiçoadas de espíritos imortais tipo-Buda. O dalai-lama alterou essas “formalidades” para ajudar a criar uma versão romantizada da “cultura tradicional tibetana” para consumo público.

Ao mesmo tempo, os lamaístas instalaram comunidades altamente conservadoras que preservaram, de facto, muitas tradições feudais nucleares. Grunfeld escreve, por exemplo: “As mulheres estão ainda pior que os seus congéneres masculinos porque precisam de autorização — de um homem — para poderem sair do campo; não podem votar; e ficam em segundo lugar no que diz respeito à educação.”

Grunfeld estima que metade das crianças tibetanas no exílio não recebe nenhuma educação — mantendo a hostilidade lamaísta em relação à educação de massas. E os jovens que vão à escola são frequentemente doutrinados com os ensinamentos lamaístas hostis à ciência, à inovação e ao trabalho. Grunfeld cita um tibetano descontente que alegava que o sobrinho dele, após nove anos na escola, nunca tinha lido um jornal ou um livro inteiro.

Devemos salientar aqui uma outra hipocrisia: durante anos, os exilados tibetanos atacaram os maoistas pelo facto de, mesmo durante a Grande Revolução Cultural Proletária, os estudos avançados no Tibete serem frequentemente leccionados na língua han (chinês). Havia duas razões para isso: não havia basicamente nenhum livro nem professores disponíveis para ensinar muitas matérias políticas e científicas avançadas na língua tibetana e porque ajudava à unidade do movimento revolucionário ter activistas e quadros tibetanos capazes de comunicar numa língua escrita amplamente utilizada por muitos grupos linguísticos na China. Ao mesmo tempo, os revolucionários maoistas mobilizaram o povo tibetano para desenvolver máquinas de escrever na língua tibetana e criar as condições para que a língua tibetana pudesse ser muito mais amplamente utilizada no ensino superior e no governo.

Ao mesmo tempo, devemos salientar que os lamaístas adoptaram o inglês como principal língua de ensino do sistema escolar deles no exílio. O dalai-lama tenta justificar essa prática na sua autobiografia de 1990 repetindo o argumento usado no sistema educativo neocolonial da Índia — de que o inglês é “a língua internacional do futuro”.

Mas há mais hipocrisia: na propaganda deles, os exilados da classe alta tibetana transformam a “cultura tradicional tibetana” num fetiche. Mas, na realidade, muitos abandonaram desdenhosamente essa cultura tradicional e enviaram os seus filhos para dispendiosos internatos de língua inglesa. O biógrafo autorizado do dalai-lama, Roger Hicks, descreve como, no final dos anos 60 e início dos anos 70, essa geração mais jovem estava a ficar em grande parte ocidentalizada.

O irmão mais novo do dalai-lama, Tendzin Choegyal, é um conhecido exemplo disso. Ele é supostamente a oitava encarnação de um espírito imortal chamado Ngari Rimpoche. Ele foi educado na prestigiada escola preparatória católica de Saint Joseph em Darjeeling, onde o reitor alegou que Choegyal “tinha esquecido toda essa tolice de ser uma encarnação”. Hicks relata que o próprio Choegyal disse: “Eu sou uma banana — amarelo por fora e branco por dentro”.

Grunfeld salienta que o dinheiro e o poder do dalai-lama no exílio só se mantêm enquanto houver muitos refugiados sem pátria. Por isso, foi para benefício da liderança exilada que mantiveram durante décadas as massas tibetanas em casas para crianças, campos de trânsito e instalações temporárias. E é pelas mesmas razões que o “governo” do dalai-lama se opõe aos casamentos mistos entre exilados tibetanos e indianos e a que massas tibetanas exiladas peçam a cidadania indiana — embora esse estatuto legal tornasse a vida delas muito mais fácil. Ao mesmo tempo, é comum que a classe alta rica tibetana solicite estatutos não-tibetanos — incluindo dois dos irmãos do dalai-lama que são cidadãos norte-americanos.

Muitos exilados tibetanos pobres têm as suas próprias razões para rejeitarem os costumes do velho Tibete feudal. Grunfeld escreve: “Um antropólogo que entrevistou muitos dos refugiados mais pobres relatou que eles viam a velha sociedade com algum sentido de vergonha e que só discutiam isso com estranhos com extrema relutância; ele relatou que ‘um certo número deles indicou-me que preferia permanecer no Mysore [Índia] em vez de regressar ao Tibete tal como ele era no velho sistema’.”

O aparelho de relações públicas do dalai-lama dá ao mundo exterior uma imagem de brochura de viagens da vida dos exilados tibetanos: como se fosse um Shangri-La espiritual de monges nobres à espera de fazerem regressar a sua santificada “cultura tradicional” ao povo tibetano impacientemente à espera. Esta imagem da comunicação social é, quanto ao essencial, uma farsa cruel e brutal.

Continua na 6ª Parte: Os sonhos terrenos do dalai-lama

Publicado originalmente no jornal Revolutionary Worker/Obrero Revolucionario:

O anexo “O dalai-lama e a CIA” foi publicado apenas em inglês no n.º 765, 17 de Julho de 1994, revcom.us/a/firstvol/tibet/cia5.htm.

A série completa está disponível através do índice ou em PDF: PDF

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