A verdadeira história da revolução maoista no Tibete
3. Os Guardas Vermelhos e as Comunas Populares
Tibete: Um terreno fértil para a Revolução Cultural de Mao
Num dia solarengo de Agosto de 1966, Mao Tsétung saudou um milhão de jovens Guardas Vermelhos que tinham inundado Pequim — e colocou no braço uma das braçadeiras vermelhas deles. Mao Tsétung fez uma coisa que nenhum outro chefe de estado da história tinha feito: apelou às massas populares para se revoltarem contra o governo e o partido dominante que ele próprio encabeçava. “Bombardeiem o Quartel-General!”, disse ele. A intensa e histórica luta que ele desencadeou iria sacudir toda a China durante os dez anos seguintes — de 1966 a 1976. Tinha começado a Grande Revolução Cultural Proletária.
Poucos dias depois dessa grande manifestação, alguns Guardas Vermelhos foram até Lhasa, no Tibete — onde a mensagem radical deles encontrou uma audiência entusiástica. Em 1964, na nova Escola Secundária do Tibete tinha acabado de se formar a primeira classe sénior. Um núcleo de jovens de famílias de antigos servos e escravos sabia agora ler — e tinha aprendido os princípios fundamentais do maoismo sobre a revolução.
De imediato, os estudantes da Escola Secundária de Lhasa e da vizinha Escola de Formação de Professores do Tibete formaram as suas próprias organizações de Guardas Vermelhos. Eles não estavam com vontade nenhuma de ficar à espera de ordens. Debateram como levar avante a revolução e entraram imediatamente em acção.
Aqui, na 3ª Parte desta série, vamos contar o que sabemos sobre a luta no Tibete nos dez anos que se seguiram. Não é fácil descobrir a verdade. Foram acontecimentos arrebatados e complexos numa região enorme e isolada.
Por um lado, as forças de classe que eram o alvo da revolução maoista retratam a Revolução Cultural como um pesadelo insensato de fanatismo e destruição. O Gabinete de Promoção do dalai-lama, sediado na Índia, fornece “relatos de testemunhas oculares” escritos por extremistas conservadores, sobretudo exilados da classe alta tibetana. Os homens que hoje governam a China falam em “dez anos perdidos” cheios dos “excessos do Bando dos Quatro”. (“Bando dos Quatro” é o nome que dão aos mais próximos apoiantes de Mao Tsétung.) Esses relatos contra-revolucionários são altamente duvidosos.
Por outro lado, os activistas revolucionários do Tibete não encontraram uma forma de eles próprios fazerem ouvir a sua história. Muitos deles estão indubitavelmente na prisão ou mortos.
Para escrever este artigo, analisámos panfletos escritos por Guardas Vermelhos tibetanos durante a própria Revolução Cultural. Lemos os textos de diferentes observadores e académicos progressistas e também analisámos criticamente as alegações dos inimigos do maoismo. Há enormes lacunas na história. Mas é possível compor um quadro básico do que os revolucionários do Tibete tentaram levar a cabo nesses intensos dez anos.
Verdadeiros comunistas contra falsos comunistas no Tibete
Mao desencadeou a Grande Revolução Cultural Proletária porque viu um grande perigo para as massas: a revolução chinesa que tinha chegado ao poder em 1949 tinha estagnado.
Poderosas forças no governo e no Partido Comunista da China apelavam à construção de uma China “moderna” centrada numa produção sem perturbações. Embora essas forças se chamassem a si próprias “comunistas”, na realidade elas não tinham nenhuma intenção de irem mais longe que a abolição do feudalismo e a construção de um poderoso estado nacional. Elas queriam impedir as transformações revolucionárias.
Mao viu que a imitação que eles faziam dos métodos capitalistas “eficientes” deixaria impotentes as massas populares. Essa via criaria um sistema capitalista de estado sem ânimo e despolitizado, semelhante ao que tinha tomado o poder na União Soviética no tempo de Kruschov. Mao apelidou essas forças de “revisionistas” e “falsos comunistas”. Disse que eram constituídas por “democratas burgueses tornados seguidores da via capitalista”. Os seus principais líderes nacionais nos meados dos anos 60 eram Liu Shaoqi e Deng Xiaoping.
No Tibete, esse conflito entre a linha revisionista e a linha de Mao não foi amplamente conhecido entre as massas — mas foi muito agudo.
A linha de Mao apelava a um processo revolucionário continuado levado a cabo passo a passo — um processo que essencialmente se baseava nas próprias massas populares tibetanas e que as organizava.
Mao tinha estimulado a edificação paciente de uma organização revolucionária no Tibete durante os anos 50. No início dos anos 60, uma grande aliança entre os servos do Tibete e o Exército Popular de Libertação (EPL) tinha destruído o núcleo da velha sociedade opressora — libertando as massas da servidão e da escravidão, tomando as terras da classe dominante e proibindo muitas velhas práticas opressoras. Foi um grande avanço e uma boa aplicação da linha de Mao.
Mao acreditava que, para que as massas populares fossem verdadeiramente libertadas, a revolução tinha de avançar para além da reforma agrária antifeudal. Ele defendeu o desenvolvimento sistemático de novas organizações colectivas nos campos — para que as massas de camponeses pudessem combinar os recursos delas: escavar irrigações, construir estradas, criar milícias armadas de camponeses e construir escolas. Mao acreditava que, sem a colectivização socialista, os camponeses pobres acabariam por ser oprimidos pelos camponeses mais ricos e pelos novos exploradores. Isto aplicava-se ao Tibete, bem como ao resto da China. Mao defendeu uma base industrial socialista auto-suficiente nas terras altas do Tibete para satisfazer as necessidades dos seus habitantes. E Mao queria uma revolução das ideias que extirpasse as odiosas superstições do passado e que, nessa base, gerasse o florescimento de uma nova cultura tibetana libertadora.
Mas as poderosas forças revisionistas viam o Tibete com olhos muito diferentes. Elas não estavam interessadas no potencial revolucionário das massas do Tibete. Queriam desenvolver sistemas “eficientes” de exploração da riqueza do Tibete — para que a região pudesse contribuir rapidamente para a China “moderna” que eles defendiam.
Os revisionistas pretendiam transformar os camponeses do Tibete em produtores eficientes de cereais. Eles planeavam importar trabalhadores e técnicos de outras regiões chinesas para desenvolverem algumas indústrias baseadas nos minerais.
Os revisionistas queriam eliminar os aspectos do feudalismo tibetano que contrariavam o aumento da produção. Mas eles pretendiam oferecer aos antigos governantes feudais uma fatia permanente do poder — para usarem as organizações e ideologia feudais deles como instrumento da estabilização de uma nova ordem revisionista.
Toda a gente sabia que a aristocracia lamaísta estava envolvida em todo o tipo de conspirações contra-revolucionárias. Mas os revisionistas acreditavam que podiam conter essas conspirações: primeiro, oferecendo-se para protegerem as massas de diferentes aspectos da velha sociedade e, em segundo lugar, baseando-se na gigantesca força militar do EPL.
Essa linha era claramente hostil às massas populares tibetanas: via-as como desesperadamente atrasadas e baseava-se em alianças com os opressores delas. Essa linha justificava-se a si mesma falando constantemente nas “condições especiais do Tibete” — mas na prática tinha uma abordagem “chauvinista han” extrema em relação a tudo o que era tibetano e esperava acabar por absorver os tibetanos na etnia han — a etnia maioritária na China. E os revisionistas não estavam dispostos a tolerar um levantamento das massas para fazerem a revolução.
Em particular, os revisionistas eram hostis a qualquer plano para uma nova vaga revolucionária no Tibete. Eles opunham-se às medidas socialistas — como a propriedade colectiva da terra e uma base industrial autónoma. Diziam que essas medidas socialistas eram prematuras, destabilizadoras e ineficientes e que acabariam para sempre com a “frente única” deles com os feudalistas.
Em suma, a linha revisionista para o Tibete era essencialmente um plano para uma nova ordem opressora em que os revisionistas (em aliança com os velhos opressores) usavam a força militar para explorarem o Tibete. Essa “via capitalista” era claramente oposta à linha de Mao, em todos os aspectos.
O programa revisionista é-nos familiar porque essa linha é exactamente a política capitalista opressora que foi implementada no Tibete pelo governo e pelas tropas de Deng Xiaoping desde que derrotaram os maoistas em 1976. Mao iniciou a Grande Revolução Cultural Proletária para derrotar exactamente essas forças que hoje oprimem as massas populares da China (incluindo o Tibete).
A revolução atinge Lhasa como um raio
“Os continuadores da causa revolucionária do proletariado surgem durante a luta das massas e temperam-se nas grandes tempestades da revolução.” — Mao Tsétung7
Em 1966, os revisionistas no Tibete eram bastante arrogantes. Eles controlavam o exército e tinham poderosas ligações em Pequim, entre as quais Liu Shaoqi e Deng Xiaoping. O principal revisionista tibetano era o General do EPL Zhang Guohua, que tinha chegado em 1950 e via o Tibete como o “reino” privado dele.
As forças de Zhang planearam cavalgar a nova campanha de Mao. Usaram a táctica de “brandirem a bandeira vermelha para se oporem à bandeira vermelha”. Quando a Revolução Cultural foi anunciada, organizaram o seu próprio “Grupo da Revolução Cultural” oficial. Pintaram Lhasa literalmente de vermelho — anunciando que todas as casas deveriam hastear uma bandeira vermelha e exibir um cartaz de Mao. Os altifalantes difundiam canções revolucionárias e as ruas receberam novos nomes. Tendo “provado” desta forma o seu entusiasmo revolucionário, as autoridades do Tibete anunciaram: “Aqui no Tibete não há duas linhas”. Disseram que as principais forças reaccionárias eram os bandos de feudalistas apoiados pela CIA, pelo que a luta armada do EPL era a principal actividade revolucionária que ainda era necessária. Em suma, os revisionistas quiseram limitar a Revolução Cultural no Tibete a uma produção sem perturbações, a um estudo tranquilo e às actividades do exército. Enviaram brigadas para todas as fábricas e escolas para garantirem que o crescente movimento dos Guardas Vermelhos não saía fora do controlo deles. Poderosas forças em Pequim, incluindo o primeiro-ministro Zhou Enlai, um dos principais membros do governo, tentaram ajudá-los, ordenando aos Guardas Vermelhos que saíssem do Tibete. Organizaram mesmo um jantar de despedida dos Guardas Vermelhos. Mas os Guardas Vermelhos recusaram-se a partir.
A Revolução Cultural no Tibete iniciou-se como um fogo na pradaria! Formaram-se grupos de Guardas Vermelhos em todo o lado e que tudo sacudiram. Algumas organizações de Guardas Vermelhos ocuparam de imediato o santuário de Jokhang em Lhasa — declarando guerra aos que toleravam a continuação da opressão feudal e da superstição. Surpreendidas, as autoridades declararam isso ilegal e “contra-revolucionário”. As ocupações de edifícios alastraram.
Os Guardas Vermelhos exigiam saber por que é que os altos responsáveis do Partido continuavam a apresentar os proprietários de servos e os altos lamas — como o dalai-lama, o panchen-lama e Ngawang Jigme Ngabo — como “líderes do povo tibetano”. Os Guardas Vermelhos revelaram que Deng Xiaoping tinha mesmo sugerido recrutar lamas dos estratos superiores do Tibete como membros do Partido Comunista. Será que a análise de classes e a prática social não tinham mostrado que essas forças eram opressoras?
Um dos primeiros panfletos dizia que as condições especiais do Tibete não significavam que o Tibete era “uma zona de vácuo para a luta de classes”. Os Guardas Vermelhos disseram que as autoridades estavam a violar os princípios maoistas: “O essencial da linha revolucionária do Presidente Mao é a linha de massas, (...) ter uma fé total nas massas, dar rédea solta às massas, ter a coragem de se apoiar nas massas.”
Primeiro a tomada do poder, depois o exercício do poder
“Na nova situação da Grande Revolução Cultural Proletária, cercado pelos tambores da guerra que repudiam a linha burguesa reaccionária, nasceu o Quartel-General Rebelde Revolucionário de Lhasa! (...) Não tememos ventos nem tempestades, nem areia a voar, nem pedras rolantes. Não nos preocupa que esse punhado de seguidores da via capitalista no poder (...) se nos oponha ou nos tema. Também não nos preocupa que os monárquicos burgueses nos denunciem ou nos amaldiçoem. Faremos resolutamente a revolução e revoltar-nos-emos. Revolta, revolta e revolta total até ao fim para criar um brilhante novo mundo vermelho do proletariado.”
— Fundamentos dos Guardas Vermelhos “Rebeldes Revolucionários” do Tibete, Dezembro de 1966.
Centenas de grupos de Guardas Vermelhos uniram-se para formar os Rebeldes Revolucionários. Eles baseavam-se nas massas populares: na nova geração de activistas e estudantes tibetanos e nos camionistas, soldados rasos, quadros de base e Guardas Vermelhos han que tinham vindo de outras partes da China.
Algumas pessoas ficarão surpreendidas por saber que a Revolução Cultural não foi imposta às massas tibetanas pelas autoridades do Partido Comunista e por Guardas Vermelhos “importados” do resto da China. Mesmo apoiantes do dalai-lama como John Avedon e os “relatos dos exilados” reconhecem que um grande número de jovens tibetanos se uniu desde o início aos Rebeldes Revolucionários e que muitos quadros tibetanos mais velhos se juntaram entusiasticamente à luta.
Havia tibetanos envolvidos nos dois lados dessa revolução. Alguns, recrutados e treinados pelos revisionistas, esperavam transformar-se numa nova elite — os maoistas chamavam-lhes “monárquicos burgueses”. Outros, sobretudo entre os jovens ex-escravos e ex-servos, estavam desejosos de fazer avançar a revolução rumo ao socialismo. Durante as tempestades que se seguiram, foi formada toda uma nova geração de activistas comunistas tibetanos e a corrente maoista ganhou raízes muito mais profundas entre as massas populares tibetanas.
Em Janeiro de 1967, quando as organizações maoistas tomaram o poder em Xangai, os Rebeldes Revolucionários do Tibete declararam que também tomariam o poder a Zhang, o “senhor do Tibete”. Em Fevereiro, os operários rebeldes do Complexo Têxtil Linchih ocuparam a fábrica — foi a primeira tomada de poder da Revolução Cultural no Tibete. Os Rebeldes Revolucionários ocuparam o jornal Diário do Tibete e parte da capital. Um combatente Rebelde disse: “Vários tipos de organizações combatentes actuaram primeiro, foram então declaradas ‘ilegais’ pela ‘linha reaccionária’ e depois obtiveram a aprovação do Presidente Mao”. Foram movimentações corajosas e perigosas.
Temendo a prisão, Zhang organizou um contra-ataque e depois fugiu de Lhasa. Unidades leais da polícia formaram um grupo conservador de “Guardas Vermelhos”, chamado Grande Aliança. Tinha por base altos responsáveis do partido e quadros aristocratas tibetanos. Semanas depois, unidades do exército reprimiram os Rebeldes Revolucionários com o apoio da Grande Aliança. Esse golpe de estado (que fazia parte de um movimento contra Mao em toda a China chamado “Corrente Adversa de Fevereiro”) foi repelido quando Mao Tsétung apelou ao exército para “apoiar as massas da esquerda”.
Não sabemos muitos pormenores sobre as complexas e por vezes violentas lutas que se propagaram pelo Tibete durante os dois anos seguintes. Mas sabe-se o seguinte: Em Setembro de 1968, um novo governo, o Comité Revolucionário Tibetano, foi finalmente estabelecido. Uniu diversas forças em torno da linha de Mao. Uma vez consolidado esse novo poder revolucionário, a Revolução Cultural entrou numa nova fase — desafiando todos os aspectos da vida social e da maneira de pensar.
A criação das Comunas Populares
“Quando os gansos selvagens voam em formação, conseguem voar por cima das montanhas mais elevadas. Nós, os pobres, podemos superar qualquer dificuldade se nos unirmos e nos ajudarmos uns aos outros.”
— Tsering Lamo, líder comunista da Associação de Mulheres de um município, a explicar a via socialista a outros ex-servos
A libertação das massas do Tibete estava, e continua a estar, intimamente ligada à revolução das relações de produção e de propriedade da terra. Depois da reforma agrária do início dos anos 60, o novo sistema baseado em pequenas parcelas individuais continha as sementes de uma nova opressão. Começaram a reaparecer ricos e pobres à medida que os camponeses mais bem-sucedidos contratavam ou compravam terras aos seus vizinhos mais pobres. Concentrados na sobrevivência familiar, os servos estavam frequentemente demasiado desorganizados para enfrentarem as constantes tentativas feudais de restauração do seu poder.
Com a vitória da linha de Mao em 1969, novas unidades agrícolas experimentais — chamadas Comunas Populares — começaram a ser organizadas nos vastos campos do Tibete. Os métodos colectivos que tinham construído as novas estradas do Tibete eram agora usados para mudar a vida nos campos. Em cada Comuna, a terra era trabalhada colectivamente por centenas de camponeses. As colheitas colectivas eram divididas com base em “pontos de trabalho” — uma medida da quantidade de trabalho que cada pessoa tinha feito. Em 1970 estavam a operar quase 666 Comunas em 34% dos distritos da região. Em pouco tempo, havia Comunas em todo o lado.
Para se fazer essa transformação, foi necessário um trabalho político paciente e uma feroz luta de classes. Alguns camponeses apenas queriam a sua própria terra — e não viam o contexto global. Muitas vezes, os camponeses mais pobres, como por exemplo as ex-escravas, estavam dispostos a experimentar primeiro os novos métodos. Foi exercida uma ditadura popular sobre os opressores — os proprietários de servos e os altos lamas. Agora, eles também tinham de trabalhar — quer gostassem disso ou não. Os contra-revolucionários foram desmascarados e perseguidos.
Durante séculos, o trabalho forçado das massas tinha servido aristocratas ociosos e construído grandes templos que propagavam a superstição. Agora, o trabalho colectivo trazia a irrigação e a água potável a 80% das terras aráveis do Tibete. Como a sobrevivência de cada família já não dependia apenas da sua própria parcela de terra, era agora possível aos camponeses experimentarem dezenas de novos legumes, frutas e culturas agrícolas.
Algumas experiências resultaram, outras não. A própria luta de classes perturbou algumas colheitas. Mas foram conseguidos grandes saltos na produtividade da terra. A produção alimentar do Tibete duplicou.
As Comunas Populares também tornaram possível a constituição das primeiras escolas rurais, a educação em massa e os primeiros grupos de teatro rural da história do Tibete. As pessoas mais velhas eram agora apoiadas, mesmo que não tivessem filhos. As mulheres obtiveram um novo poder. Uma jovem Guarda Vermelha tibetana disse: “Como nós, as mulheres, trabalhávamos, claro que as Comunas eram boas para nós”. Os casamentos arranjados e a poligamia acabaram. Os exilados queixam-se de as crianças se terem tornado revolucionárias e já não obedecerem a pais reaccionários.
O famoso Manual dos Médicos Pés-Descalços maoista foi publicado em tibetano e usado para formar milhares de novos médicos entre os ex-servos. Pouco depois, 80% das camas hospitalares do Tibete estavam nos campos — e chegou pessoal médico dos hospitais urbanos do leste da China. Mais de metade dos 6400 médicos pés-descalços eram mulheres (que antes os dogmas budistas proibiam de praticar medicina).
As Comunas Populares aumentaram enormemente o poder político dos camponeses. Os membros das Comunas foram armados e treinados pelo EPL. Cada Comuna criou uma brigada de milícia yulmag para combater os opressores. As milícias perseguiam os bandos contra-revolucionários do dalai-lama treinados pela CIA e destruíam todos os tipos de quadrilhas feudais. Essas milícias são uma prova do apoio das massas tibetanas às transformações revolucionárias.
Com a linha revisionista derrotada, foram dados enormes passos no desenvolvimento de uma nova base industrial socialista no Tibete. Em 1964, havia apenas 67 fábricas. Em 1975, havia 250 empresas — a maioria das quais servia as necessidades locais e agrícolas. Pequenas unidades hidroeléctricas levaram a luz eléctrica às pessoas. Pela primeira vez, as massas tinham à disposição delas bens manufacturados: óculos de protecção solar que reduziram as cataratas que causavam cegueira generalizada entre os mais velhos; panelas de pressão que eliminaram muitas doenças que matavam muitas crianças devido ao velho estilo da cozinha tibetana; novos utensílios agrícolas que aumentaram a produtividade e tornaram a vida mais fácil.
Uma revolução na maneira de pensar das massas
“A revolução comunista é a ruptura mais radical com as relações de propriedade tradicionais; portanto, não há nada de estranho em que no decurso do seu desenvolvimento rompa da maneira mais radical com as ideias tradicionais.” — Karl Marx e Friedrich Engels, 18488
“Hoje em dia, nós, os servos emancipados, já atirámos para as profundezas do Rio Tsangpu todas as velhas e horrendas canções, danças e dramas que elogiavam os proprietários de servos e propagavam superstições sobre deuses e seres sobrenaturais. Que as ondas fortes as levem e nunca regressem.”
— Dzomkyid, um servo emancipado de 50 anos do município de Gyatsa, 1966“Antes de estudar as obras do Presidente Mao, só me preocupava com o que me pertencia. Eu sabia exactamente quantas pilhas de estrume de iaque para combustível tinha armazenadas em casa. Podia mesmo dizer quantas estavam secas e quantas estavam molhadas sem olhar para elas. Mas não me preocupava muito com os rebanhos do colectivo. Os ensinamentos do Presidente Mao alargaram as minhas perspectivas. O meu objectivo na vida é agora claro para mim. Hoje preocupo-me não só com o colectivo mas com o mundo inteiro e com a revolução mundial.” — Um pastor tibetano, 1967
“Sabemos agora que não eram deuses nem demónios que faziam trabalhar os motores. Manobrámo-los e vimos que o que os fazia funcionar não era sangue de crianças, como nos diziam os lamas.” — Um novo mecânico tibetano
Durante a Revolução Cultural, os maoistas visaram os “quatro velhos” — velhas ideias, velhos costumes, velha cultura e velhos hábitos. E, no Tibete, havia muitas coisas “velhas” para desafiar. As pesadas superstições religiosas retinham a luta das massas. Eram um instrumento central da velha ordem feudal e também eram usadas pelos novos revisionistas.
Antes da Revolução Cultural, a maioria dos servos nunca tinha discutido questões que eram definidas para eles pelas autoridades religiosas. Arar com instrumentos de ferro, curtir couros, empacotar leite, tosquiar ovelhas, a acupunctura, a cirurgia, os antibióticos, trabalhar o metal — tudo isto colidia com os tabus dos dogmas lamaístas. As mulheres estavam constrangidas por inúmeros tabus. Muitos animais eram considerados demasiado sagrados para serem comidos. Nos anos 50, muitas vezes os primeiros estudantes tibetanos de medicina rezavam intensamente à noite, implorando aos deuses que os perdoassem pelos pecados que tinham cometido durante o dia.
Foram descobertas novas maneiras de ajudar as pessoas a se libertarem dos grilhões da superstição. Servas corajosas organizaram equipas para caçarem animais sagrados e “brigadas do ferro” para romperem com os tabus sobre o uso de arados de ferro. Em 1966, 100 mil camponeses levaram a cabo uma campanha de massas de dois meses para exterminarem as ratazanas da terra, um tipo de roedores que estava a comer os cereais deles. No passado, os monges teriam protegido esses ratos e dito que eram reencarnações sagradas de piolhos do corpo de Buda.
A expansão da ideologia comunista — sobretudo as obras do Presidente Mao Tsétung — representou um papel chave nesta revolução das mentes. Os altos responsáveis revisionistas tinham-se oposto à publicação do Livro Vermelho de Mao em tibetano. Mas, pouco depois, foram distribuídas dezenas de milhares de cópias bilíngues do Livro Vermelho — em bolsas vermelhas ao estilo tradicional tibetano. Memorizar citações chave e canções revolucionárias tornou-se particularmente popular, porque muitos pobres não sabiam ler.
Nas encostas das montanhas apareceram esculpidas enormes citações revolucionárias do Presidente Mao, em vez das orações esculpidas. Nas passagens das montanhas, novas bandeiras vermelhas mostravam que as massas detinham o poder.
Alguns pastores das pradarias do Tibete descreveram como as Brigadas de Propaganda Mao Tsétung do EPL os ajudaram a lidar com um desastre invernal. No passado, teriam aceitado o “destino” deles e muitos teriam morrido. Agora, tinham desenvolvido planos colectivos para salvar vidas e rebanhos. Um velho pastor disse: “Com o Pensamento Mao Tsétung, ousámos lutar até com deus!”
Desmantelando as fortalezas feudais dos lamas
“Os ídolos foram criados pelos camponeses, e serão os próprios camponeses quem os há-de pôr a um canto, no momento devido.” — Mao Tsétung9
Foram os milhares de mosteiros que inspiraram um grande temor supersticioso. Nos arrebatadores dias da Revolução Cultural, as próprias fortalezas feudais foram visadas. Num gigantesco movimento de massas, os muitos mosteiros do Tibete foram esvaziados e fisicamente desmantelados.
Os apoiantes do feudalismo tibetano dizem frequentemente que esse desmantelamento foi uma “destruição gratuita” e um “genocídio cultural”. Mas essa perspectiva ignora a verdadeira natureza de classe desses mosteiros. Eles eram fortalezas armadas que durante séculos tinham pairado sobre as vidas dos camponeses. Com a linha revisionista, muitos mosteiros tinham sido mantidos a funcionar com subsídios governamentais. Essas fortalezas criavam um justificado temor de que o passado pudesse regressar — atrás dos muros dos mosteiros foram congeminadas sucessivas conspirações. Desmantelar esses mosteiros foi tudo menos “gratuito”. Foram actos políticos conscientes de libertação das massas!
Todos os relatos disponíveis concordam em que o desmantelamento foi quase exclusivamente feito pelos próprios servos tibetanos, liderados por activistas revolucionários. Aos portões formavam-se grandes concentrações de ex-servos que depois ousaram entrar pela primeira vez nos santuários sagrados. A riqueza que lhes tinha sido roubada durante séculos foi revelada a todos. Alguns artefactos históricos particularmente valiosos foram preservados para a posteridade.
Os preciosos materiais de construção das fortalezas foram retirados e distribuídos entre as massas para a construção de casas e estradas. Um exilado descreveu como blocos sagrados de madeira foram retirados pelos servos e usados como combustível ou esculpidos como cabos de novas ferramentas agrícolas. Alguns elementos recuados alegam terem sido criticados por não terem participado. Muitas vezes, ídolos, textos, bandeiras e rodas de oração e outros símbolos foram destruídos publicamente — como poderosa forma de romper com superstições velhas de séculos. Como comentário final aos sonhos restauracionistas, frequentemente as forças armadas revolucionárias faziam voar bem alto as ruínas.
Numa época posterior da Grande Revolução Cultural Proletária, alguns mosteiros lamaístas foram restaurados, para que pudessem servir tanto como santuários religiosos como museus de relíquias nacionais. Mas o veredicto da Revolução Cultural foi que esses mosteiros nunca deveriam existir de novo como fortalezas feudais que viviam do sofrimento das massas.
As difíceis lutas sobre os “quatro velhos” e os “quatro novos”
Tal como todas as revoluções, a Revolução Cultural no Tibete avançou através de complexos debates e lutas. Os “quatro velhos” foram criticados e a revolução lutou pela implementação dos “quatro novos” — novas ideias, novos costumes, nova cultura e novos hábitos. Importantes questões foram levantadas e sucessivamente debatidas: quais são as práticas da cultura feudal reaccionária e quais são as da cultura nacional tibetana? Será revolucionário ou chauvinista han promover as novas formas culturais que a revolução tinha desenvolvido nas regiões han do leste da China? Será feudal usar os velhos penteados de tranças da servidão, ou será apenas tibetano? Será reaccionário abençoar uma pessoa quando a conhecemos — e quão reaccionário será isso?
O chauvinismo han (os preconceitos antitibetanos entre a etnia maioritária han) continuava a ser um problema. Han Suyin dá uma prova disso no livro dela de 1977 sobre o Tibete, em que ela defende o ponto de vista de alguns membros do Partido de que o ensino superior no Tibete devia ser na língua han porque, segundo ela, a língua tibetana era incapaz de exprimir as ideias de temas modernos como a química.
Ao mesmo tempo, outras pessoas defendiam a linha de Mao sobre as etnias minoritárias. Durante o período em que essa linha deteve o poder, houve um novo florescimento da cultura tibetana. Foram desenvolvidas as primeiras máquinas de escrever em tibetano — permitindo uma comunicação mais fácil e registos em tibetano. Foi promovido um dialecto tibetano único para que as pessoas das várias regiões pudessem comunicar. Os filmes foram dobrados em tibetano. Foram publicados milhões de livros em tibetano — muitos deles relacionados com a teoria e a prática da libertação. Foram publicadas pequenas histórias e peças tibetanas. E muitas festividades tibetanas foram transformadas para celebrarem os novos triunfos das massas — as Comunas Populares e as suas novas boas colheitas.
A medicina tibetana tradicional foi estudada e, pela primeira vez, as suas descobertas herbáceas foram tornadas disponíveis às classes mais desfavorecidas.
Novos líderes revolucionários germinaram entre os tibetanos. Em 1975, metade dos principais líderes eram naturais do Tibete. Metade deles eram novos quadros no início dos seus 30 anos — frequentemente de famílias de antigos servos ou escravos. As mulheres tornaram-se líderes a todos os níveis. Havia um município em que o comité revolucionário era constituído apenas por mulheres. Dos 27 mil quadros tibetanos, 12 mil eram mulheres. Uma mulher tibetana, Phanthog, escalou o Monte Evereste em 1975!
Durante a Revolução Cultural, um jovem revolucionário filho de um pastor-escravo chamado Jedi disse: “Onde é que eu estaria, o que seria de nós, povo do Tibete, se o Presidente Mao e a Revolução não tivessem chegado até nós?”
As últimas grandes batalhas
“Estamos a fazer coisas que os nossos antepassados nunca tinham tentado, seguimos uma via que eles nunca seguiram.” — Um veterano comunista tibetano, 1975
Um observador capturou uma verdade fundamental sobre a Grande Revolução Cultural Proletária no Tibete: “Já não se vêem servos esfarrapados a carregar as liteiras de nobres vestidos com roupas quentes, anéis de turquesas e pulseiras de ouro”. O velho e odioso sistema do feudalismo lamaísta foi eliminado pelas próprias massas. A vida das massas melhorou. As doenças diminuíram. A população aumentou. O entorpecedor isolamento do velho Tibete estava quebrado. A alfabetização e o conhecimento científico básico propagaram-se entre as massas. Mesmo os inimigos do maoismo admitem que o grande fosso entre ricos e pobres desapareceu.
Ao mesmo tempo, a Revolução Cultural representou muito mais que a derrota histórica do feudalismo. Durante dez anos impediu os revisionistas de implementarem os esquemas deles — de tornarem as massas tibetanas em escravos assalariados numa China capitalista.
Mas a luta de vida e morte entre o maoismo e o revisionismo não estava terminada!
Em 1971, foi derrotado em Pequim um golpe de estado militar dos revisionistas ao mais alto nível. O poderoso general Lin Piao foi desmascarado e demitido. Alguns dos mais chegados apoiantes dele eram líderes proeminentes do Comité Revolucionário do Tibete e perderam o poder. Na luta que se seguiu, Ren Rong, um dirigente da “Corrente Adversa de Fevereiro”, emergiu repentinamente como novo líder do Tibete. Um arrepio frio e direitista assomou sobre o Tibete.
No Tibete, foi lançada uma campanha em defesa das chamadas “quatro liberdades fundamentais” (de praticar a religião, de negociar, de emprestar dinheiro com juros e de contratar operários e criados). Essa expressão das “quatro liberdades” não era defendida desde antes da insurreição dos proprietários de servos de 1959. Os tibetanos da classe alta reapareceram em postos elevados. Foram abertas negociações com o dalai-lama — procurando trazê-lo de volta a uma posição proeminente.
As forças revolucionárias reagruparam-se e contra-atacaram. No final de 1972, uma nova campanha criticou “as extravagâncias burguesas, a busca do lucro capitalista e o desperdício económico”. Em 1973, foram repentinamente interrompidas as intrigas com o dalai-lama. E, em 1974, foi lançada uma campanha nacional contra a restauração capitalista, chamada “Campanha de Crítica a Lin Piao e Confúcio”. No Tibete, ela foi usada para aprofundar a consciência anti-religiosa das massas — e para reafirmar o veredicto revolucionário de que os aristocratas-monges como o dalai-lama eram “lobos vestidos de monges”. Em toda a China, a mensagem principal dessa campanha foi que “os seguidores da via capitalista continuam a seguir a via capitalista” e isso era muito verdadeiro.
A luta entre as forças de Mao e as forças revisionistas agudizou-se em toda a China. E, no final, os revisionistas conseguiram desencadear um golpe decisivo contra as forças revolucionárias maoistas. Em Outubro de 1976, pouco após a morte de Mao, a direita revisionista organizou um golpe de estado em Pequim. Prenderam os mais próximos apoiantes de Mao e desencadearam uma purga de revolucionários a nível nacional. Restauraram todas as políticas que Mao e a Revolução Cultural tinham rejeitado. Deng Xiaoping, o inimigo de Mao, tomou o poder.
No Tibete, o programa dos revisionistas foi integralmente aplicado no final dos anos 70. Isso levou à repressão militar do povo tibetano nos anos 80, à restauração dos direitos monásticos, à exploração por atacado das riquezas minerais e da madeira do Tibete e à utilização da “cultura tibetana” comercializada como uma Disneylândia New Age para turistas ricos — tudo isto apenas foi tornado possível porque a Grande Revolução Cultural Proletária e a linha de Mao foram derrotadas. Na 4ª Parte desta série, iremos examinar estes acontecimentos em mais pormenor.
Continua na 4ª Parte: Regressa a opressão — após o golpe de estado na China
NOTAS
7 Citações de Mao Tsétung, p. 172 (Lisboa: Hugin Editores, 1998), citando Mao Tsétung, “O pseudo comunismo de Kruschov e as lições históricas que ele dá ao mundo”, 14 de Julho de 1964, disponível em marxists.org/portugues/mao/1966/citas/cap29.htm.
8 Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto do Partido Comunista, p. 72 (Lisboa: Publicações Nova Aurora, 1976), disponível numa tradução diferente em marxists.org/portugues/marx/1848/ManifestoDoPartidoComunista/cap2.htm.
9 Mao Tsétung, “Relatório sobre uma Investigação Feita no Hunan a Respeito do Movimento Camponês”, op. cit., p. 60.
Publicado originalmente no jornal Revolutionary Worker/Obrero Revolucionario n.º 752, 17 de Abril de 1994:
- revcom.us/a/firstvol/tibet/tibet3.htm (em inglês) e
- revcom.us/a/firstvol/tibet/tibet3s.htm (em castelhano).
A série completa está disponível através do índice ou em PDF: