Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 12 de Fevereiro de 2013, aworldtowinns.co.uk
A Tunísia num impasse
Por Samuel Albert
O assassinato do líder da oposição Chokri Belaid trouxe a Tunísia para a crise mais profunda desde que o ex-Presidente Zine al-Abidine Ben Ali foi expulso em Janeiro de 2011.
Há muitas décadas que o país não via este tipo de assassinato a sangue frio de um político proeminente, talvez desde a independência de França em 1956. As pessoas inundaram a Avenida Bourguiba em Tunes e as ruas de outras cidades no dia do funeral de Belaid, 8 de Fevereiro, exigindo a demissão do actual governo liderado pelo partido islamita Ennahda em coligação com dois partidos de menor dimensão frequentemente descritos como de “centro-esquerda”. Elas gritaram as palavras de ordem que foram tão radicais há dois anos, sobretudo “O povo quer a queda do regime”, e actualizando a reivindicação símbolo desse movimento com “Ennahda dégage” (“Ennahda vai-te embora”).
Mas a situação hoje é muito mais complexa que então, e isto não pode ser uma repetição desses dias.
Uma das razões para isto é que a ideia de que as eleições poderiam servir de instrumento neutro usado pelo povo para impor a sua vontade não só é uma ilusão sobre o futuro, tal como o era antes, mas é uma importante arma nas mãos dos islamitas. Embora o Ennahda só tenha obtido cerca de 40 por cento dos votos nas eleições parlamentares de Outubro de 2011, é indisputavelmente o maior partido e tem direito, dentro dos limites da lei que a oposição jurou cumprir, a liderar o governo. Assim, o Ennahda pode mesmo difamar os seus opositores como “antidemocráticos”, mesmo quando também usa a violência ilegal contra os seus opositores, que são deixados a chamar pela polícia e pela protecção governamental que nunca obtêm.
A verdadeira questão não é quem é que pode conseguir mais votos mas quem irá ter o poder e que tipo de sociedade vai ser a Tunísia. O Ennahda parece compreender isto melhor que a maioria da oposição laica. Rached Gannouchi, o dirigente do partido, passou muito dos últimos dois anos a dar entrevistas tranquilizadoras em que afirmava que mudou desde os anos 1990, altura em que ele alinhava com os sanguinários fundamentalistas armados da Argélia, e passou a ver a necessidade da “tolerância” e de algo menor que um regime inteiramente religioso. Ao mesmo tempo, as milícias islamitas, entre as quais a Liga para a Protecção da Revolução, têm atacado todo o tipo de manifestações de ideias que elas consideram contrárias ao Islão. O governo do Ennahda por vezes condena esses ataques, mas não tem actuado contra as milícias. Pelo contrário, em alguns casos tem punido as vítimas. De facto, muitas pessoas chamam à Liga a ala armada do Ennahda, embora nas ruas seja difícil distinguir os seguidores do Ennahda dos declaradamente salafistas fundamentalistas.
Por exemplo, uma turba atacou a casa do dirigente do canal televisivo que transmitiu o filme Persepolis, o qual foi então proibido. Os islamitas também atacaram o festival de arte contemporânea Tunis Spring, agredindo pessoas e destruindo obras de artes. O governo respondeu abrindo uma queixa contra os organizadores da exposição por insulto aos valores religiosos. Os recentes ataques contra as reuniões de organizações de mulheres foram prefigurados ainda antes de o Ennahda ir para o governo, quando os islamitas atacaram uma manifestação de mulheres a 8 de Março de 2011. Poucos, mesmo nos partidos que se dizem de esquerda, se preocuparam a considerar isso uma linha de demarcação, e ficou impune. Os imãs salafistas que emitem abertamente apelos à morte de dirigentes da oposição mantêm-se imperturbados nas suas mesquitas.
A ideia extremamente generalizada de que o Ennahda é pelo menos indirectamente responsável, se não está mesmo directamente implicado no assassinato de Belaid, baseia-se em dois factos. Um é que alguns dias antes de ser morto, Belaid avisou publicamente que o Ennahda o queria matar. O outro é que o comité principal do Ennahda tinha emitido pouco tempo antes um pedido de libertação de dois milicianos presos pelo espancamento e morte em Outubro passado de outro dirigente da oposição, Lofti Naguedh, na cidade de Tataouine, no interior da Tunísia. Numa altura em que as pessoas estão a encher as ruas como nunca antes desde há dois anos para exigirem a dissolução da Liga para a Protecção da Revolução, o presidente da Tunísia, Moncef Marzouki, um antigo activista dos direitos humanos e supostamente um importante líder laico, avisou que não se tirassem conclusões precipitadas sobre quem foi responsável pelo assassinato de Belaid e apelou à unidade de todos os tunisinos.
A oposição exigiu que o governo se dissolvesse e pediu novas eleições. O primeiro-ministro Hamadi Jebali, um dos líderes do Ennahda devido à sua colocação por esse partido, respondeu oferecendo-se para remodelar o seu governo e substituir os ministros por “tecnocratas” sem partido, até à realização das próximos eleições parlamentares. (Isto incluía os Ministérios da Justiça e do Interior detidos pelo Ennahda – mas não a sua própria demissão.) Para muita gente, incluindo os partidos da oposição, isto foi “demasiado pouco, demasiado tarde” e uma forma de proteger o Ennahda. Outros dirigentes do Ennahda, entre os quais Ganouchi, recusaram-se a aceitar isto e exigiram que nada mudasse. O partido do presidente Moncef anunciou inicialmente que ia abandonar o governo, e depois que ficava. O mesmo fez o outro partido liberal no governo, o Ettakatol, que defendeu implicitamente que as únicas opções eram a continuação do governo de coligação com o Ennahda ou deixar o Ennahda sozinho no governo. A oposição ficou com poucos contra-argumentos.
Um outro factor que complica a situação é que enquanto Ben Ali, apesar da sua real base de massas, estava impossibilitado de levar os seus apoiantes para as ruas para impedir a sua queda, este não é o caso do Ennahda. A 9 de Fevereiro, reuniu alguns milhares de pessoas em Tunes em defesa do governo. Embora o número de manifestantes tenha sido reduzido em comparação com o da manifestação anti-islamita do dia anterior, ainda assim os islamitas estão na ofensiva e não têm medo de um confronto. Eles não estão prestes a fugir do país como Ben Ali e a clique dele.
A marcha pró-Ennahda trouxe outro factor extremamente importante: os islamitas estão a ter uma oportunidade para se apresentarem como os verdadeiros patriotas tunisinos. Isto acontece apesar do facto de o programa e os objectivos deles não terem nada a ver com a libertação do país do seu actual estatuto de subcontratante do capital francês e fonte de trabalho manual e intelectual barato. O que eles estão a tentar criar é uma sociedade islamizada que irá manter as actuais relações económicas de opressão e exploração entre a Tunísia e o capital ocidental, e as actuais relações económicas e sociais entre os próprios tunisinos, incluindo entre exploradores e explorados e, mais abertamente, entre homens e mulheres.
Mas os liberais dentro e fora do actual governo e dos partidos de “esquerda” reunidos na Frente Popular (liderada pelo assassinado Belaid e por outros) não têm nenhum verdadeiro programa de transformação da Tunísia. Muitos são claros na sua esperança de que o investimento francês e de outras potências imperialistas ocidentais (e o turismo) fornecerá a saída para a desastrosa situação económica da Tunísia.
Além disso, os islamitas conseguiram salientar que a direcção máxima da UGTT, a União Geral dos Trabalhadores Tunisinos que convocou uma greve geral para o dia do funeral de Chokri Belaid, não tinha apelado a nenhuma acção contra Ben Ali até horas antes de ele fugir do país, e parecia ter tido uma espécie de entendimento tácito com o antigo regime. (Embora também seja verdade que secções locais da UGTT e activistas políticos que trabalhavam nos sindicatos desempenharam um importante papel no derrube de Ben Ali.)
Pior que tudo, foram os islamitas e não a Frente Popular que iniciou o slogan “France dégage”, visando o que eles chamaram de interferência francesa nos assuntos da Tunísia. O presidente francês François Hollande elogiou a “voz corajosa” de Belaid. O seu Ministro do Interior Manuel Valls condenou vigorosamente o assassinato de Belaid e fez avisos sobre a ascensão do “fascismo islâmico”. Esta etiqueta pareceu designar tendências políticas que vão contra os interesses franceses. A França nunca usou esta linguagem contra governos fundamentalistas pró-ocidentais em países como a Arábia Saudita, e todos os governos franceses anteriores, tanto os de direita como os “socialistas” de hoje, sentiam-se bastante confortáveis com o regime pró-francês de Ben Ali que encarcerou Belaid e muitos outros.
Esta hipocrisia suprema precisa de ser denunciada e ridicularizada. Mas foram os islamitas e não a “esquerda” quem, em resposta, ergueram cartazes a dizer: “Atenção, a Tunísia não é o Mali”. O facto de serem os islamitas a erguer a bandeira da oposição ao neocolonialismo francês é uma situação verdadeiramente terrível que revela a bancarrota dos liberais e da “esquerda” e que pode fortalecer ainda mais os fundamentalistas religiosos.
Há inquestionavelmente uma corrente extremamente forte de oposição ao domínio islâmico, mas o que é que está a ser apresentado como alternativa? Por quê podem e devem as pessoas lutar? O movimento popular derrubou Ben Ali, e posteriormente uma série de manifestações e outros protestos militantes derrubaram governos que teriam sido essencialmente uma continuação desse regime, mas agora tanto os islamitas (o Ennahda e os salafistas que muitas vezes se lhe sobrepõem) como os partidos políticos de centro e de esquerda alegam representar essa “revolução” que de facto abriu as portas do governo a todos eles.
O pedido da oposição para novas eleições (de qualquer forma previstas para Março) e uma nova assembleia constituinte para substituir o actual órgão encarregue de escrever a constituição, o qual está num beco sem saída, é basicamente um apelo à manutenção da actual situação. Eles não têm nenhuma mudança real a propor, apenas um apelo à justa oposição das pessoas à mudança que os islamitas oferecem: uma sociedade baseada na imposição violenta da lei e da moralidade islâmicas.
Uma das grandes vitórias do movimento que derrubou Ben Ali foi o libertar do debate e da discussão sobre importantes questões políticas e sociais a todos os níveis da sociedade. Muitas das pessoas que não são encorajadas a falar em qualquer sociedade baseada na exploração têm exigido ser ouvidas. Os activistas políticos, os intelectuais e todo o tipo de pessoas comuns estão absolutamente correctos em temer que lhes seja dito que se calem em nome do Islão, tal como o foram quando eram governados pelo supostamente laico Ben Ali. Mas a liberdade de expressão e mesmo o mais maravilhoso dos fermentos sociais não são suficientes para mudar a sociedade por si só. Tem de haver uma visão concreta de uma verdadeira alternativa que possa começar a romper com as condições desfavoráveis do actual debate islamita/liberal e tornar-se numa força material entre o povo.
Em termos objectivos, há factores muito favoráveis à revolução, mas também dificuldades. As linhas de demarcação que se fizeram sentir em finais de 2010 e em 2011 tornaram-se mais profundas ou mais aprofundadas que nunca antes. Um deles é o facto de a posição da Tunísia na “divisão internacional do trabalho” imposta pelo capital e pelo lucro imperialista criou uma enorme brecha entre as cidades do litoral e as do interior, as quais foram deixadas a apodrecer na estagnação económica e no desespero. Os jovens de Sidi Bouzid, a cidade onde a 10 de Dezembro de 2010 a auto-imolação do jovem vendedor ambulante Mohammad Bouazizi desencadeou o movimento que derrubou Ben Ali, organizaram recentemente violentas revoltas contra o governo central em várias ocasiões, sobretudo na sequência do assassinato de Belaid. O mesmo aconteceu em Saliana, onde em finais de Novembro uma violenta revolta de jovens contra o governador nomeado pelo Ennahda revelou um enorme sentimento de raiva devido à frustração das esperanças inspiradas pelo derrube de Ben Ali.
Gafsa, uma cidade mineira da Tunísia sul-central, também explodiu. Tal como noutras cidades do interior, as pessoas destruíram os escritórios locais do Ennahda. Alguns dirigentes de partidos de esquerda (incluindo pessoas que se proclamam de comunistas) gostam de apontar para o fósforo de Gafsa como uma exportação que poderia estimular a economia, supostamente tal como o petróleo noutros países. Contudo, de uma forma típica do que acontece em países dominados pelo capital estrangeiro, essas minas não têm criado muitos empregos, pelo que mesmo os “bons tempos” do fósforo não são uma grande ajuda para a maioria das pessoas. Da mesma forma, o potencial agrícola de parte do interior (Sidi Bouzid é um bom exemplo) tem sido desperdiçado porque é mais lucrativo importar alimentos que desenvolver a agricultura para consumo interno. Assim, lugares não muito longe da costa estão efectivamente cortados do resto do mundo pela falta de boas estradas e outras infra-estruturas essenciais.
Também na capital há um grande número de pessoas que não têm tido uma vida aceitável na cidade. Pode-se dizer em definitivo que as actuais indústrias e a economia do país em geral não podem libertar a Tunísia da dependência estrangeira nem servir de base a uma transformação radical da sociedade que permitiria, e requereria, um florescimento das pessoas que hoje é completamente impossível.
Para muitos jovens tunisinos, “a vida é apenas lixo”, tal como disse recentemente um jovem à BBC. Não pode haver muita esperança no futuro do país se ele continuar polarizado entre, por um lado, os islamitas que alegam representar uma resposta à inaceitável humilhação, opressão e vidas perdidas impostas pelo “Ocidente” ao mesmo tempo que tentam encontrar um lugar no sistema imperialista global e, por outro, uma oposição que não pode conceber nada melhor que tentar viver com o capital ocidental, e de facto depender dele, e que aceita a dominação política e os valores hipócritas que andam juntos com tudo isto.
A necessária batalha ideológica contra o islamismo não pode nem deve ser feita através de um apelo aos “ideais ocidentais” (como os representados pelo Presidente e pelo Ministro do Interior de França), incluindo a ideia de democracia parlamentar que o monopólio da classe capitalista francesa acha ser uma forma perfeitamente aceitável de governação, embora nem sempre nos países que eles extorquem. A ideia de que a Tunísia se poderá tornar numa França, e que a França ou outras potências (como a China) poderão sequer ajudar a que isso aconteça, é apenas mais uma ilusão tal como a da harmonia entre todas as classes prometida pela religião. Por uma razão, é que extorquir países como a Tunísia é uma parte chave da forma como a França conseguiu ser como é.
Não é de admirar que pelo menos algumas das pessoas que foram muito activas nos últimos anos andam deprimidas e desmobilizadas, em parte porque temem que não possam ganhar a maioria da população, enquanto os islamitas, que não são a maioria, parecem estar a avançar a toda a força para o poder político. A perspectiva de mais eleições e mais ciclos de várias coligações governamentais deveria ser pouco apelativa, porque foi assim que o país passou dos inebriantes dias de há dois anos ao que é hoje.
A questão não é como ganhar eleições, e de facto algumas pessoas parecem estar fartas daquilo a que chamam sem qualquer distinção “os partidos políticos”. A questão é saber quais são os interesses mais fundamentais da vasta maioria dos tunisinos, que tipo de sociedade poderá satisfazer essas necessidades, que tipo de poder político poderá pôr a Tunísia numa via inteiramente diferente daquela para onde hoje se encaminha, e como se poderá fazer isso acontecer.
A Tunísia e o Egipto são países muito diferentes de muitas formas importantes, económica, social e psicologicamente, mas há importantes semelhanças nos dilemas enfrentados pelas pessoas que há dois anos quiseram fazer uma revolução e que ainda hoje querem uma mudança radical. Há uma necessidade de reconhecer e avaliar o irreconciliável antagonismo entre os países imperialistas e os países que estes dominam. E também há uma necessidade de reconhecer e avaliar que tipo de revolução é a única saída real do impasse que tanto os liberais como os islamitas representam: uma revolução que busque uma verdadeira libertação do imperialismo como condição prévia para a construção de uma sociedade baseada nos interesses da vasta maioria do povo e da humanidade em geral, e não no lucro e nos ditames dos imperialistas e exploradores locais e dos representantes do mercado mundial.