Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 10 de Dezembro de 2007, aworldtowinns.co.uk
A “Nakba”: A limpeza étnica e o nascimento de Israel
Os palestinianos chamam ao que lhes aconteceu em 1948 a Nakba – a palavra árabe para catástrofe. Foi perpetrada por líderes sionistas que tencionavam formar o estado de Israel em terras palestinianas sem os palestinianos.
Durante a Nakba, quase um milhão de palestinianos (metade da população nessa altura) foram brutalmente afastados das suas terras, aldeias e casas, fugindo apenas com os bens que conseguiram levar. Muitos foram violados, torturados e mortos. Para garantirem que não haveria nenhuma razão para os palestinianos regressarem, as suas aldeias e mesmo muitas oliveiras e laranjeiras foram tão eficientemente arrasadas que sobram poucos restos visíveis. Quando a Nakba terminou, tinha havido 31 massacres documentados e provavelmente outros. Cerca de 531 aldeias e 11 bairros urbanos foram esvaziados dos seus habitantes.
Os antigos nomes árabes das aldeias e ruas foram hebraizados. Mesquitas e igrejas cristãs antigas foram destruídas. Parques temáticos, florestas de pinheiros (árvores não nativas da região) e colonatos israelitas foram estabelecidos sobre muitas das antigas aldeias palestinianas. Tudo isto visava eliminar qualquer vestígio físico de que a terra tinha pertencido aos palestinianos e dar um objectivo à Nakba.
Quantas vezes tivemos uma discussão sobre o drama dos palestinianos com apoiantes da existência do estado israelita e enfrentámos o argumento de que o problema surgiu da intolerância palestiniana em relação aos colonos judeus? Quantas pessoas sabem – ou admitem – que desde o início o sionismo tinha planeado expulsar permanentemente o povo palestiniano da sua terra? Em muitos países ocidentais, a negação da Nakba é tão obrigatória quanto a negação do Holocausto é condenada. Como é que isto aconteceu?
O livro A Limpeza Étnica da Palestina (One World Publisher, Oxford, 2006) do historiador e conferencista decano israelita Ilan Pappé da Universidade de Haifa analisa o período da Nakba. A premissa é de que a Nakba não foi mais que um acto de limpeza étnica, normalmente considerado pelo direito internacional um crime contra a humanidade. Em apoio desta teoria, o autor esboça várias definições de diferentes fontes actuais, entre as quais “uma zona etnicamente mista transformada num espaço étnico puro”. Ele mostra como o massacre e/ou expulsão forçada dos arménios na Turquia, dos tutsis no Ruanda e dos croatas e bósnios na antiga Jugoslávia é afim ao que os sionistas fizeram aos palestinianos numa escala massiva em 1948 e ainda o estão a fazer hoje. Pappé também delineia uma ligação entre limpeza étnica e colonialismo, tal como aconteceu na América do Norte e do Sul, bem como em África e na Austrália.
A sua investigação baseia-se em três fontes primárias: o material recentemente divulgado (anos 90) dos arquivos militares israelitas, o diário de David Ben-Gurion onde estão registados resumos de muitas das suas reuniões, uma releitura de material de arquivo mais antigo pelo prisma do paradigma da limpeza étnica e o uso extensivo de arquivos palestinianos de história oral.
Pappé fornece uma breve resenha histórica até à Nakba e alguns capítulos no final do livro sobre a actual situação dos palestinianos. O que se segue é uma descrição temporal muito abreviada dos acontecimentos que antecederam a Nakba.
Os primeiros colonatos sionistas começaram em 1878, quando a Palestina, como muito do Médio Oriente, fazia parte do Império Otomano. Em 1917, com o fim da II Guerra Mundial e a derrota dos otomanos, o exército britânico marchou até à Palestina e tomou o seu controlo. Mais tarde, nesse mesmo ano, o britânico Sir Balfour emitiu a Declaração de Balfour que prometia um “território nacional” aos judeus em terras palestinianas, apesar de, segundo a maioria dos registos, os judeus constituírem apenas 8% da população, ou mesmo menos segundo algumas estimativas. A Liga das Nações legalizou a ocupação britânica ao dar-lhe um mandato para administrar a Palestina. Em 1938, começaram importantes combates entre judeus e palestinianos. As bombas da organização militar sionista Irgun mataram 119 palestinianos; as bombas palestinianas mataram oito judeus. Em 1947, a Grã-Bretanha comunicou às recém-formadas Nações Unidas que se retiraria da Palestina. Em Novembro, a ONU formulou o plano de divisão da Palestina em dois estados. Em Dezembro de 1947, os sionistas iniciaram as expulsões em massa de palestinianos. Quando os britânicos retiraram em Maio de 1948, os sionistas declararam a independência. A Nakba continuou até aos primeiros meses de 1949.
O livro de Pappé revela como o movimento sionista planeou meticulosamente, executou, mentiu, e depois negou a sua apropriação da terra palestiniana e a remoção (pela força ou pelo terror) da sua população. Ele mostra as políticas israelitas contra a minoria palestiniana dentro de Israel, bem como na Cisjordânia e em Gaza, no seu devido contexto histórico, repondo a verdade sobre a conceptualização da situação que os palestinianos hoje enfrentam. Pappé apenas toca brevemente no papel de Theodor Herzl, o fundador do movimento sionista no início dos anos 1800, para mostrar quão profundamente enraizado está o conceito de “transferência” da população indígena, a forma como o “problema demográfico” é visto hoje pela maioria dos israelitas como uma continuação da visão exclusivista sionista original. Um mapa de 1919 mostra claramente as intenções sionistas de se apoderar de toda a Palestina. Os ideólogos de Herzl declararam que havia “estrangeiros” a viver na sua terra bíblica, e por estrangeiros eles queriam dizer todos os que não fossem judeus, embora a maioria dos judeus da Palestina tivesse partido a seguir ao período romano. E mesmo hoje em dia, uma sondagem recente indicava que 68% dos judeus israelitas queriam que os cidadãos palestinianos de Israel fossem “transferidos”.
Muitas das revelações do livro dizem respeito a David Ben-Gurion, um dos principais cérebros e supervisores do projecto sionista e da limpeza étnica que o implementou. A partir de meados dos anos 20, Ben-Gurion foi o ministro da defesa (ou ministro da guerra) não oficial do estado ainda não oficialmente formado e tornou-se depois o seu primeiro-ministro fundador. Ele trabalhou a nível internacional, bem como localmente, na organização de outros sionistas em torno dos seus métodos e objectivos. Foi em sua casa que a limpeza étnica foi inicialmente discutida com um conjunto de especialistas em segurança e “questões árabes” (judeus que tinham crescido na região e sabiam falar árabe) que aconselhariam os futuros governos de Israel (Pappé chama-lhe a Consultância). A sua visão para chegar a um estado sionista era ambiciosa e estratégica. Ele pensava que apenas poderia ser conquistado pela força, mas que os sionistas teriam que esperar pelo momento histórico oportuno para poderem lidar “militarmente” (como dizia Ben-Gurion) com a realidade demográfica no terreno: a presença de uma maioria populacional nativa não-judia. Em 1937, quando os britânicos ofereceram à comunidade judia um futuro estado (numa percentagem muito menor da terra que a ONU viria a dar-lhes em 1948), ele aceitou isso como um bom começo para a ideia que tinha formalizado. Ele tinha planos mais ambiciosos. Em 1942, Ben-Gurion declarou publicamente a reivindicação sionista a toda a Palestina, mas depois achou que isso não era realista e que 80% seriam suficientes para um estado israelita viável.
O livro fala sobre um importante projecto estratégico liderado por Ben-Gurion – o “projecto aldeias” para cartografar toda a Palestina. Através da utilização de fotografia aérea, registaram detalhes de todas as aldeias palestinianas: as suas estradas de acesso, a qualidade da terra, as fontes de água, as principais fontes de rendimentos, a composição sociopolítica, as afiliações religiosas, os nomes dos seus muhktars (chefes tradicionais das aldeia), a relação com outras aldeias, a idade de cada homem e um índice de “hostilidade” face ao projecto sionista medido pelo seu envolvimento na revolta de 1938 contra a política britânica de permitir um aumento da imigração de judeus para a Palestina (incluindo os que podiam ter matado judeus).
Os envolvidos no mapeamento das aldeias perceberam que essa cada vez maior base de dados não era um mero exercício académico de geografia. Uma pessoa que participou numa dessas operações de recolha de dados em 1940 recordou muitos anos depois: “Nós tínhamos que estudar a estrutura básica da aldeia árabe. Isso queria dizer a sua estrutura e a melhor forma de a atacar... qual seria a melhor aproximação à aldeia, se por cima ou por baixo. Tivemos que treinar os nossos ‘arabistas’ (orientalistas que operavam uma cadeia de colaboradores) sobre a melhor forma de trabalhar com informadores.”
O livro descreve outra preocupação de Ben-Gurion e da Consultância – o “equilíbrio demográfico” entre judeus e árabes na Palestina. Sempre que havia uma maioria palestiniana a viver numa zona isso era considerado um desastre. A política pública que foi adoptada foi a de promover uma imigração judia generalizada. Mas os judeus, que se estavam a mudar para a Palestina desde os anos 20, preferiam viver nas zonas mais urbanas que eram habitadas em igual número por judeus e palestinianos, enquanto as zonas rurais eram esmagadoramente habitadas e cultivadas por palestinianos. Os sionistas perceberam que a imigração não iria contrabalançar a maioria palestiniana e que seria necessária a utilização de outros meios. Já em 1937, Ben-Gurion tinha falado da sua cabala de que a “realidade de uma maioria palestiniana compeliria os colonos judeus a usar a força para provocarem o ‘sonho’ – de uma Palestina puramente judia”. “Temos que enfrentar esta nova realidade com toda a sua severidade e distinção. Este equilíbrio demográfico põe em causa a nossa capacidade para mantermos a soberania judia.” “Eles podem seja presos em massa ou expulsos; é melhor expulsá-los.”
Quando os britânicos decidiram partir em 1947, a questão da Palestina foi transferida para a ONU que, tal como os britânicos, também aceitou as reivindicações sionistas sobre a Palestina e que a partição da Palestina era a melhor forma de resolver a questão. Mesmo que se aceite a lógica sionista, uma partição segundo a população relativa teria destinado menos de 10% da terra para um estado judeu. Mas, após consideráveis negociações, a Resolução 181 da ONU sobre a Partição, de Novembro de 1947, destinou aos sionistas 56% da Palestina. Embora Jerusalém, por causa do seu significado religioso para o Judaísmo, o Cristianismo e o Islão, tenha sido mantida uma cidade internacional, muitas das terras mais férteis foram incluídas no lado sionista. Embora novamente desiludido, Ben-Gurion apreciou o reconhecimento internacional do estado judeu, ao mesmo tempo que ignorava a parte que estipulava quanto e que território. Ele declarou que as fronteiras de Israel “seriam decididas pela força e não pela resolução de partição”. Ben-Gurion habilmente evitou a pouca oposição mundial que havia aos seus esquemas. Embora os sionistas tenham proclamado publicamente que apoiavam a Resolução, no país começaram a implementar os seus próprios planos. Este ignorar das negociações “antes de a tinta chegar sequer a secar” tornou-se numa característica das subsequentes e das actuais negociações em que Israel tem participado.
Pappé relata como os líderes árabes se opuseram à partição da Palestina e boicotaram essas negociações da ONU. Eles recusaram-se a participar na base de que uma divisão da sua terra com uma comunidade de colonos (que até aí era um terço da população, possuindo apenas 6% da terra e que há muito tinha proclamado que queria desarabizar a Palestina) era ilegal e injusto. A Resolução 181 criou uma imensa ansiedade para os palestinianos. Eles pressentiam o confronto iminente com os sionistas. O massacre começou em Dezembro de 1947, mesmo antes de os britânicos terem abandonado a Palestina.
Pappé detalha a combinação entre um planeamento meticuloso com a permissão de iniciativas “não autorizadas” dos grupos militares mais terroristas, como a Irgun, o bando Dura e os Palmach (unidades especiais de comandos que abriram caminho ao estabelecimento de colonatos judeus). Com um grupo de pessoal militar e civil que incluíam algumas personalidades famosas como Moshe Dayan (um chefe militar que foi chefe do exército durante a crise do Suez em 1956 e ministro da defesa durante o período da Guerra dos Seis Dias em 1967) e Yitshak Rabin (um general e duas vezes primeiro-ministro, assassinado em 1995), Ben-Gurion estabeleceu e supervisionou os diferentes planos de preparação das forças militares da comunidade judia para uma ofensiva contra os palestinianos. O Plano C (uma versão revista dos Planos A e B) revelava as acções a serem desenvolvidas: matar a liderança política palestiniana e os que a apoiavam financeiramente, matar os palestinianos que actuaram contra judeus, matar oficiais e funcionários e atacar as aldeias que pareciam mais militantes e que poderiam resistir a futuros ataques do exército israelita e danificar as fontes de sustento palestiniano. Depois, o Plano Dalet (ou Plano D) foi traçado, um esboço para a expulsão sistemática e total dos palestinianos da sua pátria. O Plano D descrevia as operações da seguinte forma: “destruir aldeias (ateando-lhes fogo, explodindo-as e enterrando minas nos seus escombros) e sobretudo os centros populacionais que sejam difíceis de controlar de uma forma constante; ou montar operações combinadas de controlo segundo as seguintes directrizes: envolver as aldeias; proceder a uma busca dentro delas. Em caso de resistência, as forças armadas deviam ser eliminadas e a população expulsa das fronteiras do estado.”
No decurso da execução do Plano D, os líderes sionistas não estavam muito preocupados com a resistência por parte dos palestinianos ou de outros árabes que pudessem vir em sua defesa, porque a oposição dos estados árabes era pouco empenhada e os seus soldados mal treinados e equipados.
Os líderes sionistas falavam publicamente na possibilidade de um “segundo Holocausto”, desta vez às mãos dos árabes, mas em privado estavam plenamente conscientes de que a retórica de guerra dos estados árabes não correspondia a uma preparação séria no terreno. Frequentemente, os titubeantes líderes militares dos estados árabes foram ignorados por alguns soldados árabes que tomaram a iniciativa e lutaram corajosamente para defenderem os palestinianos. O principal medo da liderança sionista era o exército britânico. Mas, embora ainda permanecesse na Palestina, o exército britânico raramente interveio contra os massacres, mesmo quando a população árabe local suplicava que o fizesse.
As expulsões começaram em Dezembro de 1947 nas aldeias e nas principais cidades. O texto que se segue é uma descrição condensada do livro de Pappé sobre o que aconteceu em Haifa à vista dos britânicos. Na manhã seguinte à aprovação da resolução da ONU, o Hagana (o principal grupo militar que se viria a tornar no exército israelita) e a Irgun (uma cisão precoce do Hagana, liderada pelo futuro primeiro-ministro Menachem Begin, que depois também se tornou parte do exército) desencadearam uma campanha de terror entre os 75 000 residentes palestinianos de Haifa. Colonos judeus que tinham chegado nos anos 20 e vivido nas colinas ao redor da cidade participaram nesses ataques ao lado das unidades militares sionistas.
Foram usadas várias tácticas. Bombardeamentos e disparos frequentes de lugares escondidos foram dirigidos contra a população palestiniana, petróleo misturado com combustível foi vertido nas estradas e ateado, barris cheios de explosivos foram feitos rolar até às zonas palestinianas. Quando os palestinianos apavorados saíam para apagar os fogos, eram atingidos com disparos de metralhadora. Judeus disfarçados de palestinianos levaram carros cheios de explosivos para serem reparados em garagens palestinianas e fizeram-nos detonar. Numa refinaria em Haifa, judeus e árabes trabalhavam lado a lado e tinham uma longa história de solidariedade na sua luta por melhores condições de trabalho contra os seus patrões britânicos. A Irgun, que se especializou em lançar bombas contra multidões árabes fez o mesmo nessa refinaria. Os trabalhadores palestinianos reagiram matando 39 trabalhadores judeus, uma das piores e também uma das últimas escaramuças de retaliação nesse período. Depois, as unidades do Hagana dirigiram-se a um dos bairros árabes de Haifa, Wadi Rushmiyya, expulsaram as pessoas e fizeram explodir as suas casas. O exército britânico fingiu olhar para o outro lado enquanto estas atrocidades estavam a ser cometidas. Duas semanas depois, o Palmach entrou no bairro Hawassa em Haifa onde cerca de 5000 dos árabes mais pobres viviam em péssimas condições. As cabanas e a escola local foram feitas explodir, obrigando as pessoas a fugir. Pappé considera isto como o início oficial da operação de limpeza étnica na Palestina urbana.
Em Março de 1948, Ben-Gurion comentou à Agência Executiva Judia: “Acho que a maior parte das massas palestinianas aceita a partição como um facto consumado e não acredita que seja possível superá-la ou rejeitá-la... A maioria decisiva deles não nos quer combater.”
Os exércitos dos países árabes não estavam à altura das bem equipadas unidades militares clandestinas sionistas que tinham recebido armas da Inglaterra, da União Soviética e da Checoslováquia. Forcas árabes irregulares emboscaram colunas israelitas mas evitaram atacar os colonatos. A Consultância decidiu que uma vingança desumana não era suficiente e que precisavam de mudar para actos mais drásticos.
Ben-Gurion usou as tentativas do mundo árabe para salvar os palestinianos para empolar o factor medo entre a comunidade judia, que ele cuidadosamente nutriu até ao ponto de eliminar qualquer oposição que essas tácticas pudessem gerar. A “segurança” do estado judeu (nessa altura como ainda hoje) tornou-se no temor anulador que permitiu que muitos israelitas, bem como gente de fora do país, virassem as costas ao que a liderança sionista estava a fazer, aquilo em que consistia o seu plano.
Até Março de 1948, a liderança sionista ainda retratava as suas actividades como vingança por actos árabes hostis. Depois, dois meses antes de os britânicos partirem, declararam abertamente que ocupariam a terra e expulsariam a população local à força. Quando os britânicos saíram em Maio, os sionistas proclamaram o seu estado. Foram oficialmente reconhecidos pelos EUA e pela URSS. A expulsão desumana entrou em alta velocidade e a palavra vingança já não era usada para descrever o que as forças militares israelitas estavam a fazer. Ben-Gurion disse: “Cada ataque tem como objectivo acabar em ocupação, destruição e expulsão”. Já não havia mais necessidade de distinguir entre “inocentes” e “culpados”. Ataques preventivos e danos colaterais tornaram-se aceitáveis e necessários.
Deir Yassin
Numa colina a oeste de Jerusalém fica a cidade de Deir Yassin. O massacre aí é bem conhecido em todo o mundo, mas vale a pena mencionar aqui como ele reflectiu a natureza sistemática do Plano D aplicado a centenas de aldeias em toda a Palestina. Pappé descreve como, a 9 de Abril de 1948, os soldados judeus irromperam na aldeia e atingiram as casas com disparos de metralhadora e mataram muita gente. “Os aldeãos que restaram foram então agrupados num lugar e assassinados a sangue-frio, os seus corpos foram abusados enquanto várias mulheres foram violadas e depois mortas.”
Fahim Zaydan, que nessa altura tinha doze anos, recordou como viu a sua família ser assassinada à frente dos seus olhos: “Eles levaram-nos um após o outro; abateram um velho e quando uma das suas filhas chorou, também foi abatida. Então chamaram o meu irmão Muhammad e abateram-no à nossa frente, e quando a minha mãe gritou, curvando-se para ele – levando a minha pequena irmã Hudra nas suas mãos, ainda amamentando-a – eles também a abateram.”
“O próprio Zaydan também foi atingido, quando estava de pé numa fila de crianças que os soldados judeus tinham formado contra uma parede que eles depois encheram de balas ‘apenas por diversão’, antes de partirem. Ele teve sorte em sobreviver apesar das suas feridas.”
Quando as aldeias eram invadidas e destruídas e os seus habitantes reunidos, tomavam-se decisões sobre quem viveria e quem morreria. Oficiais dos serviços de informações no terreno ajudavam os oficiais militares nessa decisão. Os oficiais dos serviços de informações, com a ajuda de colaboradores locais (espiões encobertos) apontavam para diversas pessoas ao principal oficial dos serviços de informações.
Israel e os palestinianos hoje
Como resultado da Nakba, há agora quase 4,5 milhões de palestinianos dispersos por todo o mundo, além dos 1,4 milhões sob ocupação do exército israelita na Cisjordânia e 1,3 milhões em Gaza, uma faixa do deserto antes escassamente povoada agora cheia de sobrelotados campos e cidades de refugiados. Cerca de 1,5 milhões de palestinianos continuam a morar na própria Israel como cidadãos de segunda classe. A população judia de Israel ronda cerca de 5,5 milhões. O estado sionista inclui agora cerca de 78% da Palestina histórica, sem contar com o ainda crescente número de colonatos israelitas na Cisjordânia. Não há nenhum paralelo no mundo – um estado construído conscientemente, desde o seu início, para um povo e uma cultura, com uma base religiosa e sem uma verdadeira fronteira permanente.
O argumento de Pappé de que a Nakba foi um acto de limpeza étnica é convincente. A geografia humana e física da Palestina foram transformadas pelo conscientemente punitivo plano sionista de fazer desaparecer a história e a cultura da Palestina e assim negar qualquer futura reivindicação que os palestinianos possam fazer sobre a sua terra. Ao longo dos anos desde a Nakba, a máquina assassina que é o exército israelita continuou a fazer o seu trabalho sujo. Pappé lista os seguintes momentos: Kfar Qassim em Outubro de 1956, as tropas israelitas massacraram 49 aldeãos que regressavam dos seus campos; Qibya nos anos 50, Samoa nos anos 60, as aldeias da Galileia em 1976, os campos de refugiados de Sabra e Shatila no Líbano em 1982, Kfar Qana em 1999, Wadi Ara em 2000 e o campo de refugiados de Jenin em 2002. O massacre de palestinianos por Israel nunca acabou.
Pappé termina o livro dele com a esperança de que os israelitas despertarão da sua visão distorcida do desejo de retribuição, racismo escondido e fanatismo religioso, e que despertem para a verdade retratada nesse livro. Ele pensa que não aceitar o direito de regresso dos palestinianos é o mesmo que continuar a defender enclaves “brancos” tipo apartheid e a apoiar a Fortaleza Israel. Ele diz que os palestinianos e os judeus coexistiram pacificamente antes da Nakba e que mesmo agora muitos têm fortes laços sociais que mostram que os dois povos podem viver em harmonia. Ele apela à transformação de Israel num estado laico e democrático.
O livro de Pappé não foca o papel central que Israel passou a desempenhar como bastião dos interesses imperiais norte-americanos no Médio Oriente. Sem o apoio militar e político do governo dos EUA e o inigualável apoio financeiro que são centrais para a sociedade israelita e o seu modo de vida (3 mil milhões de dólares por ano de ajuda governamental dos EUA, em conjunto com o financiamento privado oficialmente encorajado), Israel não seria o que é hoje – se é que sequer existiria. Contudo, o livro vale a pena ser lido pela sua precisão histórica e como recordação viva da tragédia que foi a Nakba.
(Nota do Tradutor: Todos os mapas são da edição portuguesa do livro de Tariq Al-Khudayri, Palestina — A Saga de Um Povo, ainda que originalmente possam provir de outra fonte.)