Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 15 de Janeiro de 2007, aworldtowinns.co.uk
A gripe das aves num mundo imperialista
1ª Parte: O perigo
(Primeiro de uma série de dois artigos.)
No hemisfério norte, o início da estação da gripe humana tem sido acompanhado de más notícias sobre a gripe das aves, já que novas eclosões da doença entre as galinhas ocorreram na Indonésia, na Tailândia e no Japão e começaram a disseminar-se ao longo do Delta do Mekong, no Vietname.
Até agora, a gripe das aves tem estado limitada sobretudo às aves. Já morreram mais de 150 pessoas desde que, em 1997, o vírus conhecido como H5N1 matou uma criança em Hong Kong, mas a vasta maioria dos seres humanos que a contraíram foram infectados através de um contacto directo com aves. Houve alguns casos de possível e mesmo provável transmissão entre seres humanos, mas ainda não estão comprovados e continuam muito raros.
Para que a gripe das aves se torne numa ameaça generalizada para os seres humanos, terá que sofrer uma mutação. As mudanças genéticas aleatórias que frequentemente ocorrem nos vírus podem vir a produzir uma nova variante da doença que se poderia espalhar entre as pessoas da mesma forma que outros tipos de gripe: sobretudo através da tosse e dos espirros. Nesse caso, quase toda a gente em todo o mundo ficaria exposta num espaço de meses.
Sabe-se agora que os vírus da gripe causaram muitas pandemias nos últimos cem anos, entre as quais três pandemias globais de gripe no século XX. (Uma pandemia é uma epidemia de grandes dimensões.) A de 1968-70, normalmente chamada “gripe de Hong Kong”, foi a mais moderada e matou cerca de um milhão de pessoas em todo o mundo. A de 1957-58, chamada “gripe asiática”, aniquilou cerca do dobro desse número. A mais mortal, em 1918-20, denominada “gripe espanhola” (embora haja indícios de ter surgido primeiro nos EUA), matou entre 20 e 100 milhões de pessoas – ninguém tem a certeza. Nenhuma outra doença na história aniquilou tanta gente tão rapidamente.
Um grande número de peritos acredita que, mais cedo ou mais tarde, vai voltar a acontecer uma dessas mutações. David Nabarro, um alto funcionário da Organização Mundial de Saúde (OMS) e o coordenador da ONU para a gripe, disse: “Tenho a certeza que virá a ocorrer uma nova pandemia de gripe. Segundo a história natural destas coisas, tenho quase a certeza de que em breve haverá uma outra pandemia.”
Dado que, por definição, poucas pessoas estariam imunes a uma nova variante da gripe, o número de pessoas que viria a adoecer poderia ser extremamente elevado – na casa das centenas de milhões ou mesmo milhares de milhões. Quão doentes – ou seja, quantas pessoas morreriam com ela – é outro factor que não pode ser previsto, uma vez que a nova forma da doença ainda não emergiu. Num dos extremos da escala das doenças infecciosas virulentas, algumas não são perigosas a nível mundial porque são demasiado letais – as pessoas que ficam doentes morrem depressa demais para que elas se espalhem efectivamente. Um exemplo disso é o vírus do ébola. No outro extremo da escala, as variedades sazonais comuns da gripe afectam milhões e milhares de milhões de pessoas todos os anos mas, a não ser que elas estejam fragilizadas por outras razões, relativamente poucas pessoas morrem devido a elas. O facto de mais de metade das pessoas afectadas com a actual variante do H5N1 terem morrido não nos permite prever o que aconteceria com uma nova variante. Mas é motivo para uma preocupação muito séria.
A gripe de 1918 circulou pelo mundo em várias vagas. A primeira demorou nove meses a infectar quase todos os países. No início, o vírus da gripe estava no seu estado mais letal. À medida que continuava a sua mutação, foi enfraquecendo. Por isso, o número de mortes variou de lugar para lugar dependendo do momento em que a doença os atingia – e atingiu muitos lugares duas e três vezes. Na Turquia e no Irão, os números de mortos foram muito elevados. Em certas zonas da Índia central, onde a taxa de mortalidade era a mais alta do mundo, os registos coloniais britânicos indicam que morreu quase oito por cento da população e os números reais podem ter sido mais elevados. O Japão e algumas ilhas conseguiram evitar o pior limitando as viagens, mas outras ilhas e populações isoladas foram devastadas. A Europa e os EUA foram duramente atingidos. Em França, morreram cerca de 400 000 pessoas. Algumas cidades norte-americanas foram muito afectadas. Noutras, como em Filadélfia, quase todas as famílias tiveram alguém doente. Carros puxados a cavalo foram enviados a todas as ruas, com pregoeiros a gritar “Tragam os vossos mortos!”; pás mecanizadas foram usadas para abrir valas comuns. A vida industrial e económica da cidade ficou quase totalmente paralisada. Como descreveu John Barry em The Great Influenza [A Grande Gripe], a estrutura política e social da cidade estava à beira do colapso quando de repente a doença desapareceu.
Num período de dois anos, em que quase toda a população mundial foi exposta à doença, um número suficiente de pessoas desenvolveu uma resistência e ela desapareceu completamente. Um estudo recente, que envolveu o exame dos tecidos de um cadáver congelado há muito tempo, revelou que a gripe de 1918 teve origem nas aves. A opinião científica actualmente prevalecente é de que provavelmente todos os vírus humanos da gripe tiveram origem nas aves.
Um estudo publicado na revista médica internacional The Lancet (21 de Dezembro de 2006) estimava o número de mortes que uma hipotética nova erupção de uma gripe semelhante causaria hoje, com base numa análise estatística das mortes registadas em 1918-20. O número proposto é de 62 milhões de mortos. O estudo concluiu que provavelmente esse seria o “limite superior” – o pior cenário.
Mas apesar de este número aterrador ter feito manchetes, o estudo ia muito mais fundo. Os investigadores estudaram a relação entre essas mortes e a pobreza. A relação não era directa por muitas razões, algumas delas a aleatoriedade e outros factores não relacionados com a classe social (por exemplo, a densidade local da população – os navios militares norte-americanos que se dirigiam para a Europa tornaram-se caixões flutuantes). Não havia então nenhuma cura nem tratamento efectivo para a gripe “espanhola”, numa altura em que até a sua causa era um mistério, pelo que os cuidados médicos não eram relevantes. De facto, o estudo diz que as razões para a relação entre o rendimento das pessoas e o saber-se porque é que morreram continuam a não ser completamente compreendidas. Os autores acreditam que a saúde geral das vítimas, a alimentação e outras doenças (“co-infecções”) representaram o papel principal – embora não o único – na determinação de quem sobreviveu ou não.
Porque é que a experiência da gripe de 1918 é pertinente quando olhamos para o que pode vir a acontecer agora? Não deu a ciência médica enormes saltos desde então?
Em primeiro lugar, não é completamente claro o que é que a medicina poderia fazer se emergisse uma nova pandemia letal de gripe. Têm sido feitos esforços para a criação de protótipos de vacinas mas, como a doença ainda não existe, é impossível ter-se a certeza de qual o efeito que elas teriam. O artigo da The Lancet diz que, mesmo com uma preparação antecipada, poderiam passar facilmente seis meses entre o aparecimento da doença e o desenvolvimento e produção de uma vacina efectiva. É realmente verdade que a medicina contemporânea possui algumas ferramentas potencialmente poderosas, sobretudo os antivirais como o Tamiflu que não conseguem curar a gripe mas que mostraram ser eficientes a ajudar as pessoas infectadas com as actuais variantes da gripe. Também há medicamentos antibacterianos que poderiam prevenir ou tratar as pneumonias que surgem após uma infecção viral, as quais podem ter sido a principal causa de morte em 1918-20. Os anti-inflamatórios também poderiam ajudar a evitar a morte de pessoas doentes, porque o seu próprio sistema imunitário reagiria fortemente. Mas a OMS tem avisado que mesmo alguns dos melhores sistemas médicos do mundo poderiam ficar sobrecarregados e provavelmente colapsar.
Alem disso, a grande preocupação do estudo tem por base mais as realidades sociais do que as possíveis insuficiências da ciência contemporânea face a esse desafio. A sua análise estatística das mortes de 1918-20 levou-os a concluírem: “O fardo da próxima pandemia de gripe estará esmagadoramente centrado no mundo em desenvolvimento”. Cerca de “96 por cento dessas mortes ocorrerão no mundo em desenvolvimento”, disseram eles.
Um editorial que acompanhava o artigo explicava com uma simplicidade chocante porque é que é válida a comparação que o estudo faz entre 1918 e hoje: “A iniquidade [desigualdade] da Saúde é pouco menor agora que em 1918 e é pouco provável que os avanços médicos dos últimos 96 anos venham a beneficiar muito do mundo em desenvolvimento em qualquer futura pandemia... É pouco provável que, durante uma pandemia, as grandes reservas de antibióticos e antivirais venham a estar à disposição da maioria dos países com poucos recursos. Por isso, talvez a melhor estimativa para a mortalidade numa possível pandemia em 2007 seja a mortalidade de 1918 – uma acusação bastante condenatória da iniquidade global dos sistemas de saúde.”
Em países onde outras doenças já estão muito difundidas, a análise que o relatório faz da experiência da gripe de 1918 torna horrivelmente claro que muitos milhões de pessoas estão em sério risco. Sabe-se que a malária, por exemplo, deixa as pessoas particularmente vulneráveis a morrer com a gripe. E, no mundo actual, quase quinhentos milhões de pessoas têm malária. Outro factor do nosso tempo é a existência sem precedentes de quase 40 milhões de pessoas com VIH/SIDA – e com um sistema imunitário enfraquecido ou inexistente. Estes são os pontos de partida para enredos quase demasiado horrendos para serem enfrentados.
A malária e a SIDA são doenças principalmente (embora longe de o serem exclusivamente, sobretudo no caso da última) de países pobres. Este foi um factor que levou os autores do estudo a concluir que a África e a Ásia poderiam ser os locais onde ocorreriam mais mortes.
Porém, a questão decisiva, ao contrário do que diz o estudo, não é a pobreza mas sim o sistema social. Os autores acham que as diferenças entre os rendimentos per capita (por pessoa) determinam cerca de metade das diferenças nas taxas de mortalidade entre os diversos países. No entanto, quando a China ainda era um país socialista sob a liderança de Mao, embora os rendimentos per capita fossem menores que os actuais, a situação da saúde das pessoas era muito melhor que actualmente. Em apenas algumas décadas de revolução, a China eliminou muitas das doenças que tinham vitimado a sua população. Quando a sociedade chinesa se guiava pelo princípio de “Servir o povo”, a distribuição de recursos, a participação consciente e a mobilização das massas populares de muitas formas diferentes mais que duplicou a esperança média de vida. Desde a restauração do capitalismo (nos factos, se não mesmo nas palavras) em que a direita tomou o poder após a morte de Mao, o sistema de cuidados de saúde nas zonas rurais foi largamente desmantelado e deixou dois terços da população – 800 milhões de pessoas – com reduzido acesso aos cuidados de saúde. Guiadas pelo novo princípio de que “Ficar rico é glorioso”, quando uma epidemia do vírus SARS atingiu as zonas rurais da China em 2003, em vez de tudo fazerem para a travar, as autoridades encobriram-na para protegerem os negócios e o seu próprio poder.
Também no que diz respeito à questão do sistema social, embora o estudo faça uma distinção crucial justamente entre o que chama de “países em desenvolvimento” e “países desenvolvidos”, concluindo que o perigo é muito diferente nesses dois casos, a diferença entre eles não é apenas o seu grau de desenvolvimento. Uma característica principal do actual sistema económico, social e político globalizado é o domínio da maioria dos países e povos do mundo pelos capitalistas monopolistas de um punhado de países imperialistas. A diferença crucial não são os rendimentos dos países, mas sim que nos países dominados a economia – e, em última análise, quase tudo o resto – responde às necessidades do capital financeiro estrangeiro.
É inevitável que surjam novas doenças potencialmente perigosas com qualquer sistema social, mesmo num futuro distante. Certamente que não foi o capitalismo que criou a gripe das aves. Mas a forma como os seres humanos estão organizados no mundo imperialista de hoje é um enorme obstáculo a que se possa lidar com o problema.
Continua na 2ª Parte: Que vamos fazer em relação a isso?