Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 26 de Setembro de 2011, aworldtowinns.co.uk

Israel: Um estado sangrento

O primeiro-ministro israelita Benjamim Netanyahu exigiu nas Nações Unidas o reconhecimento de Israel como estado judaico como condição prévia para aceitar o reconhecimento da Palestina pela ONU. Mas o conceito e a prática de Israel como estado judaico são a essência do problema.

Em primeiro lugar, que tipo de estado é esse? Ele diz que Israel é não só o estado do povo judaico que aí vive mas também o de todos os judeus do mundo. Nenhum outro estado no mundo se baseia numa etnia.

Esta ideia de um estado que representa um povo e não um território baseia-se no feudalismo, quando o essencial era a lealdade pessoal que ligava os súbditos ao seu monarca. Na história recente, o exemplo mais famoso de um estado baseado num “povo” (etnia) e não num território definido foi a Alemanha que, sob o domínio nazi, anexou a Áustria e a Alsácia-Lorena com base na “germanidade” dos seus habitantes. Durante a maior parte do período a seguir à 2ª Guerra Mundial, a Alemanha Ocidental manteve-se fiel ao conceito de definir os alemães pelo seu “sangue”.

O argumento de Netanyahu é que Israel deve ser reconhecido como estado judaico porque a Palestina foi o local onde o povo judaico começou a existir e estabeleceu uma comunidade há quatro mil anos. Na realidade, a maioria dos habitantes judaicos da Palestina saiu de lá há cerca de dois mil anos, embora alguns tenham ficado para trás. Mas, ainda mais importante, alegar que um lugar “pertence” a um povo é totalmente anti-cientifico. Segundo a própria Bíblia do Velho Testamento que Netanyau cita, Abraão, o fundador do Judaísmo, veio originalmente de Ur, no que é agora o Iraque. Além disso, vários povos tinham vivido na Palestina muitos milhares de anos antes disso. E, por fim, o povo hoje conhecido como palestiniano não é menos descendente dos habitantes dessa terra nos tempos bíblicos e, na realidade, muitos deles podem ser descendentes de judeus que se converteram ao Islamismo ou ao Cristianismo.

O essencial aqui não é tentar desvendar e resolver a que povos essas terras realmente “pertencem”, mas sim mostrar que todo esse método de decidir isso através da herança é insustentável e ridículo. Como diz o ditado: “Toda a gente vem de outro lugar”. A humanidade moderna é o resultado de constantes migrações entrelaçadas, a partir de África.

O verdadeiro argumento dos sionistas é que, segundo a religião deles, deus prometeu-lhes essa terra. De facto, toda a ideologia sionista baseia-se em afirmações místicas similares, não só porque se baseiam no não provável (a religião), mas porque, enquanto projecto político, o Sionismo vai buscar a sua legitimidade ao romantismo reaccionário. Qualquer tentativa de lhe aplicar a razão é logo apelidada de anti-semitismo.

A loucura dessa ideia é ainda mais flagrante quando Israel tenta pô-la em prática. Se Israel é o estado de todos os judeus, então como definir o que é um judeu? Tradicionalmente, o Judaísmo define um judeu também por herança, através da mãe. Ao ser fundado, Israel adoptou deliberadamente a definição nazi: um indivíduo com pelo menos um progenitor judaico, independentemente das suas convicções religiosas. Isso permitiu convenientemente a Israel ampliar a sua fonte de potenciais imigrantes, incluindo, por exemplo, cerca de um milhão de judeus soviéticos que os EUA pagaram à URSS para que os enviasse para Israel. Muitos deles não eram praticantes e tinham poucos ou mesmo nenhum dos atributos culturais que antes distinguiam as comunidades judaicas da Rússia (tal como o idioma iídiche). De facto, muitos deles foram para Israel porque esse era o único lugar para onde podiam imigrar nos termos do acordo EUA-URSS. Um grande número deles foi quase de imediato para os EUA ou para a Europa.

Ironicamente, as autoridades judaicas ortodoxas que regulam muito da vida israelita (apesar de a Ortodoxia ser uma tendência minoritária entre os judeus no mundo) não reconhece muitos dos imigrantes como judeus, pelo que há aí duas categorias de imigrantes: os considerados judeus para fins de imigração e os considerados não judeus pelo sistema judaico (e, por isso, por exemplo, não autorizadas a casar com um judeu nem a ser enterradas num cemitério judaico). Esta divergência em relação a quem é judeu torna difícil às autoridades preencherem o quadradinho marcado “religião” nos bilhetes de identidade israelitas, embora os nomes árabes bastem para fazer a diferença.

Uma vez mais, a nossa intenção aqui não é tentar fazer sentido das diferentes alegações sobre quem é judeu, mas apenas mostrar a loucura de todo o projecto.

O que torna isso ainda mais complicado é que os judeus israelitas têm um estatuto privilegiado. Não só têm direitos sobre a terra palestiniana e outros direitos de que mesmo os palestinianos que são cidadãos israelitas não desfrutam, têm acesso a um padrão de vida e a um estilo de vida que se baseiam não no seu próprio trabalho árduo mas sim nos fundos dos governos e doadores ocidentais e nos benefícios de uma economia que é quase integralmente uma extensão do capital ocidental. (Porque é que os geeks informáticos israelitas são recompensados pela sua astúcia, enquanto os rapazes e raparigas de Gaza com conhecimentos informáticos provavelmente não obterão mais que frustração, se não forem mesmo castigados?) De facto, os israelitas estão a receber os benefícios de viverem do lado imperialista da divisão do mundo em países oprimidos e opressores e da grande riqueza que essa situação permite que os imperialistas extraiam. Esse financiamento significa não apenas fazer do minúsculo estado sionista uma grande potência militar mas também garantir que Israel se mantém um lugar atraente para viver para pessoas habituadas aos padrões de vida norte-americanos e europeus e dispostas a lutar para os manter.

Qualquer pessoa que pense mais profundamente porque é que o Ocidente tem feito isso, perceberá antes de mais porque é que o estado de Israel existe. Durante a I Guerra Mundial, a Grã-Bretanha decidiu encorajar a imigração judaica para a Palestina como contra-peso aos emergentes movimentos nacionalistas árabes. A Grã-Bretanha esperava vir a estabelecer um estado colonial semelhante aos que foram chave no domínio britânico da África Meridional, da Austrália e de outras zonas do globo. Mas foram os EUA que desempenharam o papel central na criação do estado de Israel, arrebatando-o aos britânicos. Washington acabou por se tornar no padrinho oficial de Israel, como parte dos esforços norte-americanos para estabelecer a sua própria hegemonia no Médio Oriente contra os seus rivais árabes e europeus. Ninguém que conheça a história britânica e norte-americana do início e meados do século XX pode alegar seriamente que, quando Israel foi criado, havia em qualquer desses países algo semelhante a um “lóbi judaico”, numa era em que o anti-semitismo era particularmente excessivo nos dois países.

De facto, os governos tanto dos EUA como da Grã-Bretanha foram quando muito indiferentes ao destino dos judeus às mãos dos nazis durante a II Guerra Mundial. Por exemplo, recusaram-se a fazer bombardeamentos que interditassem as linhas férreas que levavam os judeus para os campos da morte nazis e, em geral, tentaram manter a morte dos judeus em segredo do grande público. É conhecido que as autoridades norte-americanas recusaram a entrada a refugiados judaicos, os quais foram mandados de volta para a morte na Europa ocupada. A razão para a Grã-Bretanha e depois os EUA terem sido favoráveis à criação de Israel não foi nenhuma preferência especial pelos judeus.

As considerações de justiça também não tiveram nada a ver com isso. Veja-se o exemplo moderno da Sérvia. Porque é que quando a Sérvia começou a reivindicar partes da Bósnia com base em existirem aí comunidades sérvias e anexou o Kosovo porque era historicamente o centro nacional da Sérvia e tentou expulsar os não sérvios do que considerava serem territórios sérvios, os EUA lideraram a NATO no bombardeamento da Sérvia até à submissão e levaram a tribunal os seus dirigentes governamentais, acusados de limpeza étnica e outros crimes contra a humanidade, enquanto quando Israel faz a mesma coisa, os EUA proporcionam-lhe bombardeiros e oferecem-lhe a protecção global das bombas atómicas norte-americanas?

Isto não se pode explicar com um “lóbi judaico” nem com uma inexistente procura de justiça. Só se pode explicar pelo que os EUA vêem como os seus interesses imperiais no Médio Oriente. Porque Israel depende do financiamento e da protecção militar dos norte-americanos e europeus, e devido ao estatuto privilegiado dos seus cidadãos que a isso está associado – ao contrário, por exemplo, dos egípcios, a quem o domínio ocidental trouxe um grande sofrimento e humilhação nacional –, é um bastião inteiramente fidedigno dos interesses norte-americanos na região. E é a pedra de toque de todo o sistema de estados reaccionários e dependentes dos imperialistas que encarceram os povos árabes.

Não há nada de normal em relação a Israel e ainda menos e relação ao “estado judaico” tal como os sionistas o definem. No fim de contas, que outro estado não tem nenhum território nem fronteiras definidas? E que outro estado está dispensado de cumprir o direito internacional?

É verdade que no momento de fundação de Israel as Nações Unidas (encabeçadas pelos EUA e com a infeliz cumplicidade da então socialista URSS) previram dois estados, um judaico e um palestiniano, ambos membros da ONU. Mas, hoje em dia, Israel ocupou 78 por cento da antiga Palestina. Ocupou Jerusalém Leste com uma guerra e agora alega ter direito a governar todo o território e a “judaizá-lo” através da expulsão dos seus habitantes palestinianos. Mais de meio milhão de israelitas estão a viver na Cisjordânia em colónias subsidiadas pelo governo, ocupando as terras altas militarmente estratégicas e ricas em água e compartimentando o resto da Cisjordânia num labirinto de comunidades palestinianas muitas vezes isoladas e cortadas umas das outras por postos de controlo militares israelitas e por estradas em que só os israelitas são autorizados a conduzir.

Quando Netanyahu se queixa que Israel não pode aceitar “um regresso às fronteiras de 1967 com trocas de terras” porque essas fronteiras são “impossíveis de defender”, o que ele quer dizer é que Israel quer ficar com toda a Jerusalém (um direito que até agora nem mesmo os EUA reconheceram) e a maioria dos colonatos, e com os Montes Golan que roubou à Síria e o direito a manter uma presença militar israelita na Cisjordânia até à fronteira com a Jordânia, cercando os palestinianos por todos os lados.

Na realidade, as condições que o Presidente da Autoridade Palestiniana Mahmoud Abbas está a propor como base para a paz com Israel são idênticas às que os EUA propuseram durante décadas, uma posição reiterada pelo Presidente norte-americano Barack Obama há apenas um ano atrás. Se as negociações entre Israel e Abbas não chegaram a parte nenhuma, foi porque em vez de congelar a construção de novos colonatos como os EUA pediram e como Abbas exigiu como condição prévia para as conversações, Israel tem-na acelerado. De facto, o número de colonos na Cisjordânia triplicou desde que o actual “processo de paz” foi iniciado há duas décadas em Madrid. Netanyahu e outros líderes israelitas têm dito explicitamente que, no que lhes diz respeito, as negociações podem continuar durante décadas, enquanto eles continuam a expandir os colonatos.

Vários observadores de Israel têm salientado que o país passou de se auto-definir pelas suas kibbutzim (as comunidades agrárias agora amplamente defuntas em que os imigrantes israelitas supostamente iriam construir comunidades igualitárias em terras roubadas) para ser definido na prática pelo seu movimento de colonos e pela intolerante corrente fascista e “nacional religiosa” que lhe está associada. Os colonos devoram muito do orçamento (daí o descontentamento dos judeus laicos de Telavive), dominam cada vez mais o corpo de oficiais das forças armadas e definem os termos do debate político. Muitos desses colonos são fanáticos religiosos abastados de Nova Iorque e de outros lugares, representando uma fantasia de “viverem na terra” (em última análise, com a benevolência e o apoio financeiro dos EUA). Estão altamente armados e muitas vezes envolvem-se em violência gratuita contra palestinianos comuns seus vizinhos. Mesmo os judeus considerados insuficientemente piedosos são por vezes atacados pelos fundamentalistas judaicos. Não é um grande exagero quando os judeus laicos dizem que temem a “iranização” de Israel. E é este o “estado judaico” que supostamente os palestinianos devem reconhecer?

O apelo ao reconhecimento pela ONU de um estado palestiniano baseia-se essencialmente numa aceitação da actual situação. Isso significaria um reconhecimento de facto de Israel enquanto estado judaico e implicaria o abandono do direito ao regresso de milhões de palestinianos que ainda têm as chaves ou os documentos das casas de que foram expulsos em Israel. Não há nenhuma razão para acreditar que um tal “mini” estado palestiniano venha a ser qualquer outra coisa que não estar debaixo das botas de Israel, do ponto de vista económico, político e militar. Mesmo que até certo ponto fosse financiado pelos EUA e pela Europa, isso iria simplesmente agrilhoá-lo ainda mais firmemente a uma aceitação do domínio israelita.

Como não há nada no pedido de Abbas que os EUA não tenham proposto e que de alguma forma possa pôr Israel em risco, porque é que a liderança israelita não o aceita? Aqui, podemos inferir três hipóteses. Parte da razão é que Israel ainda não acabou de engolir as terras palestinianas. Um outro factor é que Israel quer ser reconhecido como tendo o direito e sendo capaz de fazer tudo o que quiser, e não apenas a negar uma iniciativa palestiniana mas também a humilhá-los ainda mais e a esmagá-los enquanto povo. Provavelmente, a razão mais importante é que obrigar Israel e os EUA a aceitarem um acordo com base numa iniciativa palestiniana poderia encorajar o movimento palestiniano e espicaçar a nova geração a um maior activismo. O próprio facto de uma solução de dois estados pouco vir a mudar na vida diária dos palestinianos poderia desacreditar os líderes dependentes dos norte-americanos como Abbas e radicalizar ainda mais algumas pessoas.

Dito isto, deve acrescentar-se que uma aceitação israelita de algum tipo de mini-estado palestiniano ainda não é impossível.

A intransigência israelita criou um sério problema aos EUA e aos regimes dependentes dos EUA em toda a região, desde a Arábia Saudita e a Jordânia ao Egipto (cuja junta militar pode andar a alegar representar uma ruptura com a subserviência de Hosni Mubarak em relação a Israel, mas continua a usar as suas armas para proteger do povo egípcio os interesses israelitas). Muita gente em todo o Médio Oriente vê Israel não apenas como o inimigo do povo palestiniano mas também como um elemento chave de todo o sistema regional que aprisiona todos os povos árabes. Como tem sido o caso noutras conjunturas críticas da história árabe do século XX, muitos árabes de vários países estão outra vez pouco tolerantes a governos vistos como lambe-botas dos israelitas, talvez porque esses regimes nunca pareceram tão frágeis. Os EUA também não estão ansiosos em serem identificados como demasiado próximos de Israel, o que fragilizaria os regimes minimamente remendados que, de uma forma ou de outra, os EUA estão a tentar consolidar no meio da agitação no mundo árabe, como no Egipto. Ao mesmo tempo, esta agitação tornou ainda mais claro que nunca que Israel é o país com quem os EUA podem contar completamente e cujo governo é o menos provável de ser derrubado pelo seu povo de uma forma que ameace os interesses norte-americanos.

Abbas, a quem os EUA primeiro fizeram promessas e depois traíram, e que Israel tem tratado como um insecto irritante, pode pensar que é astuto – ou pelo menos que não tem nenhuma outra opção – ao usar contra ele as próprias posições anteriores de Obama a favor de uma solução de dois estados. Isto visa colocar os EUA numa posição em que ou aceita a proposta de Abbas de entrada da Palestina na ONU (o que não fará) ou a veta, o que revelará ainda mais a realidade da relação EUA/Israel e dificultará os esforços norte-americanos para recuperarem das suas perdas políticas na “primavera árabe”. Mas esta estratégia baseia-se na aceitação definitiva dos EUA como árbitro final e, independentemente do que aconteça, a causa palestiniana não ficará defendida por isso.

Os palestinianos estão a sair à rua em manifestações e outras formas de acção em novos números e formas (tais como os protestos em massa dos refugiados palestinianos nas fronteiras do Líbano e outros países com Israel, que tanto apavoraram as autoridades israelitas). Recentemente, o pessoal diplomático israelita fugiu da sua embaixada em Amã, na Jordânia, por causa de um rumor de que multidões poderiam atacá-la, tal como tinha acontecido no Egipto.

Contudo, também é verdade que hoje em dia muitos palestinianos acham difícil acreditar que possam fazer alguma coisa que realmente derrote Israel, que tem toda a Palestina sob um controlo militar sem precedentes. Isto pode ser verdade, neste momento. Tanto a luta armada dos anos 60 e 70 como os movimentos desarmados da Intifada colidiram com sérios obstáculos. Mas a dinâmica entre a causa palestiniana e a luta dos outros povos árabes desempenha há muito tempo um papel central na região e o seu potencial não deve ser menosprezado. Já colocou sérios problemas aos esforços dos EUA para manterem o Egipto pós-Mubarak sob o seu controlo. É um factor importante na denúncia da hipocrisia e da dependência em relação aos EUA da maioria dos regimes da região, mesmo a Arábia Saudita cujas credenciais fundamentalistas islâmicas estão a par da sua derradeira subserviência aos interesses norte-americanos e portanto israelitas.

A inconsistência lógica é comum na política. Os EUA encabeçaram o bombardeamento da Líbia, para provocarem a mudança de regime que desejam, em nome da “protecção de vidas civis”, ao mesmo tempo que apoiam a família real do Barém (e os seus protectores sauditas) no assassinato em massa de manifestantes civis. Provavelmente também podem conseguir apoiar Israel ao mesmo tempo que tentam encontrar um papel para o seu indisciplinado fantoche Abbas. Mas as pessoas no mundo árabe estão a observar, e estes crimes terão consequências políticas na forma de pensar e na acção de muitos árabes.

O Médio Oriente e a ordem estabelecida pelos norte-americanos está mais volátil que nunca. E a causa palestiniana é, potencialmente, tanto um motor como uma beneficiária dessa instabilidade. Não estamos em tempos em que nada pode ser feito pelas pessoas que procuram uma mudança radical. São tempos que devem ser agarrados e cujo potencial só pode ser completamente percebido se as pessoas com uma compreensão e uma perspectiva suficiente estiverem na linha da frente.

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