Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 5 de Novembro de 2007, aworldtowinns.co.uk

A Jornada na Praça Trafalgar e o governo britânico proxeneta

A Praça Trafalgar, no coração da Londres turística e um monumento ao império britânico visitado por centenas de milhares de pessoas todos os anos, esteve diferente durante este Setembro passado. Durante várias semanas foi o local de uma instalação de arte que expôs o lado negro de Londres, da Grã-Bretanha e do mundo actual, chamada A Jornada (The Journey). Essa jornada poderia ter início em muitos lugares – no Sudoeste Asiático, na Europa de Leste, em África, por exemplo. O seu destino poderia muito bem ser o coração de Londres ou de outras grandes cidades europeias, como no caso de Elena, Corina, Nina e muitas centenas de milhares de outras jovens que fizeram essa jornada na esperança de uma vida melhor, apenas para acabarem na escravidão sexual.

Instalada no sector norte da Praça Trafalgar, A Jornada levava os visitantes através de uma série de sete vagões (contentores de transporte cobertos com graffiti do lado de fora a anunciar “Carne bem fresca!”) montados como um comboio, cada um criado por um artista diferente. O seu objectivo era dar aos visitantes a oportunidade de verem e pensarem naquilo por que passam as jovens escravizadas.

A parte mais chocante era o vagão montado como se fosse um pequeno quarto onde essas mulheres “trabalham” ou “vivem”. Uma cama suja cujo centro se movia para cima e para baixo chamava primeiro a nossa atenção. No quarto estavam espalhados lençóis vermelhos imundos e preservativos novos e usados. Aqui e ali, podia-se ver lenços sujos. A luz vermelha viva e chocante deixava-nos perceber que se tratava de um lugar de sofrimento. Mas isso não era tudo. A humidade do quarto e os cheiros cada vez mais intoleráveis tornava os visitantes desejosos de passarem ao vagão seguinte.

Aí, quadros e textos nas paredes contavam histórias. A própria Elena narrava a sua história nos auscultadores: como tinha sido vendida aos traficantes por 500 libras (cerca de 700 €) na Lituânia e que quando chegou à Grã-Bretanha teve que servir 30 clientes por dia. A sua história prosseguia mas, embora ela tivesse mais para dizer, havia pessoas à espera no quarto atrás de nós. Tivemos que continuar a andar.

Finalmente chegámos a um quarto onde as paredes e mesmo o tecto estavam cheios de cartazes com textos de entrevistas. Lemos o que elas diziam e o que lhes foi respondido por funcionários do Ministério do Interior (Home Office) quando algumas dessas mulheres ousaram tentar ter um estatuto legal para ficarem na Grã-Bretanha. Havia muitas páginas de texto, mas na essência eram todas semelhantes. Os funcionários do Ministério do Interior recusam-se a acreditar no que essas mulheres lhes dizem. Ao fazê-lo, o Ministério do Interior está a fazer o que os traficantes precisam que faça. Por exemplo, os agentes recusam-se a aceitar que essas mulheres tenham sido iniciadas à prostituição através de violações. Recusam-se a aceitar que foram forçadas ou enganadas para deixarem as suas terras natais e que se as fizerem regressar elas ficarão em perigo. Esse padrão continua sem fim.

O trabalho e a presença da actriz Emma Thompson, vencedora de um Prémio da Academia, do bem conhecido escultor Anish Kapoor e de Sandy Powell, uma designer vencedora de um Prémio da Academia, contribuíram certamente para a divulgação que atraiu um grande número de pessoas a visitar A Jornada.

A instalação foi organizada pela Fundação Helen Bamber, que ajuda pessoas que foram torturadas. Thompson, que trabalha com essa fundação, disse numa entrevista: “O nosso compromisso para com pessoas que sofreram está cheio de tesouros. (...) Eu não me interesso verdadeiramente por pessoas que não sofreram muito.” (Guardian, 3 de Outubro)

Um folheto da Fundação Bamber explica: “Todos os anos, milhares de jovens são atraídas para a Grã-Bretanha e brutalmente coagidas a uma vida de exploração sexual. Compradas e vendidas, elas não são marcadas com ferros de uma forma visível nem algemadas, mas ficam confinadas em estúdios locais de massagens e, atrás das respeitáveis cortinas limpas dos subúrbios, forçadas a servir cliente após cliente.”

Depois o folheto afirma: “Ao mudarmos a política do governo, podemos transformar uma jornada degradante numa de esperança e oportunidade.” As amplamente publicitadas visitas à exposição da Secretária britânica do Interior, Jacqui Smith, e do Secretário da Cultura, James Purnell, podem ter dado esperança aos activistas da fundação de que isso realmente poderia acontecer. Além disso, a 1 de Outubro as autoridades lançaram uma operação a que deram o nome de código Pentameter 2, um ataque a bordéis e a traficantes sexuais que envolveu, pela primeira vez, todas as forças da polícia em toda a Inglaterra e Irlanda. Três dias depois, anunciaram que tinham sido resgatadas três mulheres.

De facto, essa operação seguiu-se a um esforço semelhante de quatro meses no ano passado, do qual resultaram 134 pessoas acusadas. Mas apenas foram libertadas 90 mulheres e raparigas de 500 bordéis, estúdios de massagens, casas e outras instalações e não é claro o que lhes aconteceu.

Embora Smith tenha classificado correctamente o tráfico sexual de “forma moderna de escravidão”, disse que não podia dar uma garantia clara de que as pessoas resgatadas não enfrentariam a deportação como migrantes ilegais. Pelo contrário, disse ela, se essas mulheres fossem protegidas da deportação, isso “provavelmente seria geralmente visto como mais um factor de atracção.” (Guardian, 4 de Outubro de 2007)

Será que esta exposição foi um desperdício para ela? Será que ela realmente pensa o que a sociedade masculina sempre nos ensinou – que a prostituição é uma “escolha de modo de vida”? Será realmente possível que ela acredite que se as escravas sexuais não forem castigadas por terem ido às autoridades, isto atrairá mais mulheres a tornarem-se escravas sexuais?

Quaisquer que possam ser as intenções de Smith, ela está a dar uma mensagem clara: se as mulheres traficadas saírem da clandestinidade, arrepender-se-ão. E, obviamente, também está a enviar uma mensagem clara aos traficantes de que podem contar com o governo britânico para forçarem essas mulheres a continuarem o seu “trabalho”.

A maior parte das jovens e adolescentes são traficadas por gangues ou por empresários individuais. Prometem-lhes um bom emprego, mas assim que atravessam a fronteira são leiloadas e vendidas ao seu próximo dono. Nesta altura, já “devem” uma enorme quantidade de dinheiro – por vezes £20,000 (20 mil €) – para a jornada. Serão forçadas a trabalhar para pagarem essa dívida servindo 30 a 40, ou mais, clientes por dia, sete dias por semana. Isso significa que durante anos todos os seus rendimentos servirão para pagar as suas dívidas aos traficantes e o “aluguer” ao dono do bordel. Se não atraírem clientes suficientes, não só serão tratadas cruelmente e espancadas, como não poderão reembolsar as suas “dívidas”.

A maioria delas não consegue regressar a casa. Ficam prisioneiras, não só das quatro paredes, mas de uma situação sem saída. São ameaçadas com tortura e morte se tentarem escapar. É-lhes dito – e elas sabem que muito frequentemente isso é verdade – que se escaparem, a sua família, a sua irmã ou os seus pais nas suas terras, terão que pagar. De qualquer forma, se regressarem a casa, o que enfrentará uma jovem que já foi prostituta?

Veja-se a história de Nita, uma albanesa sequestrada e vendida para a escravidão por soldados sérvios. Depois de seis anos de prostituição forçada, um homem que conhecia o seu marido ajudou-a a fugir. Quase milagrosamente, encontrou o marido em Londres. Mas quando ele vê o pedido de asilo que os serviços do Ministério britânico dos Negócios Estrangeiros a fizeram preencher, ele fica a saber o que ela esteve a fazer enquanto estiveram separados, e abandona-a, grávida do seu segundo filho. “Nita tem agora 29 anos. O seu pai, a sua irmã e a sua filha bebé, que ela viu pela última vez naquela terrível noite de inverno em que ela foi levada e violada, estão quase certamente mortos. Se a enviam para casa, as poucas pessoas que ainda se poderiam lembrar dela em Pristina saberiam o que lhe aconteceu. ‘Acho’, diz ela, ‘que ninguém me quer de volta’. Os traficantes albaneses e italianos certamente se lembrariam dela. Com pouca educação, sem família e sem dinheiro, ela pressagia que para alimentar o novo filho teria poucas alternativas a não ser ir para as ruas. Ela espera que seja um rapaz. ‘Se for uma rapariga, andarei sempre assustada que ela possa vir a ter a mesma vida que eu tive’.” (“Mulheres e crianças à venda”, Caroline Moorehead, New York Review of Books, 15 de Outubro de 2007)

A história de Jenna, de 20 anos, da Roménia – que disse ter tido bastante “sorte” por ter sido comprada por um cliente e libertada – é típico de mais alguns milhares de mulheres e ilustra o que o sistema faz quando essas mulheres procuram ajuda oficial: “Eu fui traficada através da França e contrabandeado para a Grã-Bretanha. Dois homens encontraram-se comigo e com outras mulheres em Londres e fomos todas levadas para um apartamento. (...) Os homens violaram-me e ameaçaram-me. Eu não podia sair sozinha nem falar a ninguém fora do apartamento. (...) Os homens disseram-me que eu lhes devia muito dinheiro e que teria que trabalhar para o reembolsar. Trabalhei nalguns bordéis e mais tarde um homem ‘comprou-me’ e libertou-me, (...) mas o Serviço de Acusação da Coroa decidiu não processar o caso de tráfico. (...) O caso de violação só pode seguir em frente se os homens voltarem à Grã-Bretanha, mas eles regressaram à minha cidade na Roménia, pelo que eu não posso voltar a casa.” (Guardian, 11 de Fevereiro de 2005)

O acima citado artigo da New York Review of Books também conta a história de uma jovem do Ruanda chamada Mary que, após vários anos de abuso e escravidão em Londres, conseguiu escapar. Ela agora tem SIDA. Ela não volta para casa porque também aí as forças de segurança abusaram dela e fá-lo-iam de novo. A sua família foi morta numa limpeza étnica. Ela agora está a fugir da polícia britânica e dos agentes da imigração, uma vez que o seu pedido de asilo foi rejeitado. Entrou na clandestinidade e tem um emprego onde recebe em dinheiro vivo. Para não chamar a atenção, não faz amigos, não fala com ninguém e vive só. “Vivo dia a dia. O que realmente sinto agora é que devia ter morrido com a minha família no genocídio. Já não sei que esperar. Mas se vierem atrás de mim, corto a garganta.”

Quando estas mulheres tentam escapar, toda a sociedade e as suas leis, tal como na maior parte do Ocidente democrático e noutros lugares, se levantam contra elas. A escravidão permanente – ou a prisão, a deportação e depois talvez a escravidão de novo: é isto que elas enfrentam às mãos dos traficantes e dos seus cúmplices, os parlamentos, os governos, os burocratas e a polícia. Um facto mostra-o claramente: A Convenção da ONU Contra o Crime Transnacional, aprovada em 2000, é completamente omissa quanto à ajuda às vítimas.

A desculpa para isso, nos países ocidentais, é que as políticas contra o tráfico sexual estão interligadas à questão da imigração.

As leis ocidentais contra os imigrantes são uma fonte da opressão legal dos imigrantes comuns que deixaram o seu país por várias razões, normalmente porque as guerras encorajadas pelas potências ocidentais nos seus países ou o saque económico dos seus países por essas mesmas potências tornam impossível a vida nos seus países. O resultado não é acabar com a imigração, mas tornar os imigrantes “ilegais” – uma fonte de mão-de-obra barata e subjugada. Mas o sofrimento dessas mulheres é ainda mais multiplicado.

Quando os governos aprovam leis anti-imigração, estão a pôr uma pressão indirecta (e por vezes directa) sobre essas mulheres e a abrir caminho aos seus captores para exercerem um maior controlo sobre elas e a explorarem-nas e abusarem-nas ainda mais cruelmente. Como mostram as operações policiais Pentameter 1 e Pentameter 2, sempre que estes governos decidem “ajudar” as mulheres em escravidão sexual, visam alguns bordéis e apanham mulheres que provavelmente vão ser deportadas. Em última análise, o principal efeito é pôr mais pressão sobre as vítimas, que se vêem com ainda menos esperança de qualquer saída aceitável da sua situação e tornam-se ainda mais profundamente escravizadas face aos seus donos.

Falando sobre a Pentameter 2, Aiden McQuade, da Anti-Escravatura Internacional, disse que “a maior parte das pessoas traficadas para Inglaterra tinha sido deixada com o estatuto de imigração ilegal pelos traficantes como forma de controlo: ‘Demasiadas vezes é muito aparente que o estatuto de irregular deve ser considerado um indicador de trabalho forçado em vez de ser encarado pelo que aparenta’.” (Guardian, 3 de Outubro de 2007)

O Ministério britânico do Interior – tal como os seus parceiros similares no poder noutros países – gostaria de esconder a extensão da escravidão sexual na Grã-Bretanha. Na recente operação Pentameter 2, as autoridades publicitaram amplamente a estimativa de que na Grã-Bretanha cerca de 4000 mulheres e homens traficados foram forçados à prostituição. Mas há razões para crer que este número está muito abaixo dos verdadeiros números. Um relatório publicado pelo jornal Observer (18 de Abril de 2004) diz que na Grã-Bretanha há 80 mil mulheres que trabalham como prostitutas. Diz-se que cerca de 80% das 8000 prostitutas que trabalham nas centenas de bordéis, saunas e agências de acompanhamento de Londres são estrangeiras, a vasta maioria da Europa de Leste e do Sudeste Asiático. O mesmo relatório indicava que “cada ano, são trazidas ilegalmente para a UE cerca de 600 mil pessoas, a vasta maioria delas para exploração sexual”.

Quando um importante responsável governamental britânico responde a A Jornada advertindo que o tratamento humanitário das mulheres traficadas seria um “factor de atracção”, não podia ficar mais claro o carácter insensível das políticas oficiais e das medidas governamentais a esse respeito. Contudo, e ao mesmo tempo, a prostituição e o tráfico de seres humanos estão profundamente enraizados no funcionamento do sistema como um todo. O indisputado domínio do lucro que é a essência da nossa era capitalista e a opressão das mulheres que surgiu muito antes do capitalismo e que o capitalismo apenas pode perpetuar, cruzam-se ao tornarem os corpos das mulheres em mercadorias que podem ser compradas e vendidas, o tipo de troca promovida mil vezes por segundo no mundo dos artigos legais onde “sexy” e “compra-me” são sinónimos.

Além disso, os mecanismos do capitalismo e do imperialismo deram lugar à prostituição global a uma escala sem precedentes. A intensificação da globalização nas duas últimas décadas fez escalar enormemente o tráfico internacional de mulheres e crianças, a uma escala nunca vista antes dos anos 90.

“Os funcionários da Organização Internacional do Trabalho apenas dizem que crêem que entre 700 mil e dois milhões de mulheres e crianças são traficadas todos os anos algures através de uma fronteira internacional, alimentando uma indústria com lucros calculados algures entre 12 e 17 mil milhões de dólares por ano. Segundo as Nações Unidas, há actualmente 127 ‘países fonte’ que fornecem um grande número de prostitutas, sobretudo na Ásia e na Europa de Leste, e 137 ‘países destinatários’.” (NYRB, 15 de Outubro de 2007)

Isto é, de certa forma, um fenómeno novo, e não apenas “a profissão mais velha do mundo”. É mais uma grotesca manifestação do crescente desequilíbrio do mundo, com a acumulação de riqueza num dos lados e a acumulação de miséria no outro – onde a economia capitalista globalizada, tal como um remoinho, engole milhões de pessoas e as suga para baixo.

(A Jornada viajará para outras cidades da Grã-Bretanha e, dizem os organizadores, “esperançosamente para a Europa de Leste”. Ver www.the-journey.co.uk e os vídeos no YouTube.)

NT: Ver também gettyimages.pt/evento/sex-trafficking-art-installation-trafalgar-square-76967837

 

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